UM ANO DE GUERRA DA UCRÂNIA, E ENTÃO?
Mateus Dalmáz, professor de História e Relações Internacionais da Univates, analisa o conflito e aponta perspectivas
Por José Horta
DA REDAÇÃO – 24 de fevereiro de 2022. As imagens ainda estão vivas para o todo mundo. Kiev, a capital da Ucrânia, apresentava uma quilométrica fila de carros. Eram pessoas fugindo em direção à Polônia. Os ucranianos sabiam que o pior começava a acontecer: a guerra. Agora, após um ano de guerra da Ucrânia, algumas perguntas emergem: qual o estágio do conflito? E quais foram mesmo os motivos da invasão russa? Vale a pena relembrar a trama política que levou ao cenário beligerante antes de avaliar a situação atual. São essas perguntas que o Mateus Dalmáz, professor de História e Relações Internacionais da Univates, responde nesta entrevista exclusiva concedida ao DIÁRIO.
Mateus Dalmáz é doutor em História. Ele coordena esse curso e o de Relações Internacionais na Universidade do Vale do Taquari – Univates (Lajeado/RS). Também é autor dos livros A Imagem Do Terceiro Reich Na Revista Do Globo. 1933-1945 – Coleção História (2002 – Ed. EdiPUCRS) e Argentina e Relações Interamericanas na revista O Cruzeiro (1946-1966): Modelos de desenvolvimento na América Latina (2019 – Novas Edições Acadêmicas). Em um de seus artigos, que inclusive intitula essa entrevista, professor Mateus Dalmáz explica que “desde o final da Guerra Fria, a Rússia vem tentando manter a liderança política e econômica que tradicionalmente exerceu no leste europeu, especialmente nas regiões que pertenceram à União Soviética. Fragilizada economicamente desde os anos 1980, a Rússia assistiu à expansão do Ocidente sobre a região no decorrer das últimas décadas: tanto a União Europeia quanto a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) incorporaram Estados que, no passado, orbitavam na esfera de influência soviética. Percebe-se, aqui, uma disputa de poder entre grandes potências: Estados Unidos (via Otan) e União Europeia, de um lado, com interesse em ampliar conexões econômicas, políticas e militares na região; e Rússia, de outro, tentando manter a hegemonia no leste europeu”.
Em 2014, para dissuadir a Ucrânia de se aproximar da União Europeia, o governo de Vladimir Putin ocupou militarmente a Crimeia (no sul da Ucrânia) e apoiou as independências de Luhansk e Donetsk (no leste), regiões com população russófona. “Em 2022 foi a vez da Otan acenar com um convite à Ucrânia para ingresso no pacto militar liderado por Washington. A reação de Putin foi movimentar tropas militares até a Ucrânia, caso a Otan não limitasse a área de atuação no leste europeu. A resposta do Ocidente foi ameaçar os russos com sanções econômicas. Putin, então, ocupou Luhansk e Donetsk, no Donbass. O Ocidente, assim, impôs sanções econômicas às duas cidades. A Rússia, então, invadiu militarmente territórios para além da região do Donbass, iniciando uma intervenção em larga escala. A reação do Ocidente, desta vez, foi estender as sanções econômicas para a Rússia”, explica Dalmáz.
Após a Rússia anexar a Crimeia, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado americano e um dos nomes mais importantes da diplomacia global, apontou já em março de 2014 que o possível ingresso da Ucrânia na Otan poderia causar problemas. Em um artigo para o jornal The Washington Post, Kissinger escreveu: “A Rússia tem que aceitar que a Ucrânia não pode se tornar um satélite da Rússia e o Ocidente tem que compreender que a Ucrânia não poderá nunca ser apenas um país estrangeiro”. Para Kissinger, era claro, já naquela época, que a Ucrânia deveria ser sempre uma ponte entre a Rússia e o restante da Europa. Premonitório, o ex-secretário de Estado listou as medidas essenciais a serem adotadas para evitar um conflito. A primeira era que a Ucrânia não devia ter permissão para entrar na Otan, o braço armado dos aliados europeus, mas devia ter a liberdade de associação econômica e política com quer quiser. A segunda, a Rússia não poderia anexar a Crimeia. Ela devia ter eleições livres, com a presença de observadores. E o status da frota do mar negro, base naval Russa, deveria ser claro. Mas o mundo não ouviu os conselhos de Kissinger.
Tudo indica que a Otan e a União Europeia desejam estender ainda mais a guerra. “Porque as duas pretensões russas durante o último ano de beligerância têm se revelado gradual e progressivamente não favoráveis a Putin. A primeira delas, que foi dissuadir a expansão da Otan no leste europeu, não apenas não vem se concretizando como também tem tido um efeito contrário: o pacto militar liderado pelos Estados Unidos vem obtendo mais aliados, coesão, contingente e justificativas para seguir existindo, mesmo após o final da Guerra Fria; a segunda pretensão, que foi proteger a população russófona no leste da Ucrânia, tem se mostrado ineficiente, já que a maioria dos mais de 6 mil mortos e 9 mil feridos no conflito é de pessoas da região do Donbass, onde o apoio à causa russa vem se tornando menor”, observa professor Mateus Dalmáz.
Outra observação, feita pelo professor Dalmáz, é que “para Putin, a guerra vem servindo de sustentação “ideológica” do governo, que, em nome do esforço bélico, reforça o discurso nacionalista (com apelo à identidade nacional), militarista (com uso de “hard power”, isto é, do poder político, econômico e militar) e expansionista no leste europeu, o espaço geopolítico considerado, pela Rússia, como fundamental para as pretensões do Kremlin de voltar a ser uma superpotência. O ônus das sanções econômicas, em parte, vem sendo diluído pela compra do petróleo e do gás natural russo pela China e pela Índia, pela inflação desses produtos na Europa central e pela alta taxa de juros praticada pelo banco central russo”.
Ele ressalta também em seu artigo, que a “manutenção do conflito também vem sendo a tendência por parte do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, uma vez que a Ucrânia tem solicitado, obtido e aceitado ajuda militar por parte dos membros da Otan: blindados dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Alemanha; mísseis dos Estados Unidos; drones da Turquia. A participação indireta do Ocidente na guerra tem sido responsável pelo terceiro estágio dos confrontos: no primeiro, de fevereiro a abril de 2022, a Rússia cercou Kiev e bombardeou o norte da Ucrânia; no segundo, de abril a julho de 2022, os ataques russos se concentraram no leste e no sul; no terceiro, desde julho (até o momento), graças ao apoio material da Otan, tem ocorrido uma contraofensiva ucraniana, no nordeste e no sul, razão pela qual a guerra tem se prolongado, sem que Moscou obtenha, de Kiev, a confirmação de que não fará parte das organizações internacionais ocidentais”.
Por fim, observa: “O estágio atual da guerra, então, é de manutenção do estado de beligerância, uma vez que, a longo prazo, o Ocidente deseja desgastar a Rússia, a Ucrânia orbitar no Ocidente, a Rússia manter “status” de grande potência, a China dominar a economia do leste europeu. Enquanto isso, seguem os milhares de mortos e os milhões de refugiados”.
E nesta semana, às vésperas do primeiro aniversário da invasão russa na Ucrânia, alguns pronunciamentos chamaram atenção. Vladimir Putin, e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, subiram o tom das acusações mútuas e – em rara convergência de opiniões – sinalizaram que o conflito está distante do fim.
Na última segunda-feira (20), Joe Biden visitou Zelensky em Kiev, e conforme matéria veiculada pela BBC, “em uma espécie de testemunho do fracasso russo em conquistar o território vizinho”. Putin deu sua resposta em um discurso no parlamento russo, em Moscou, onde voltou a acusar EUA e Europa de serem os responsáveis pela guerra e de usarem conceitos como “democracia” para “esconder seus atos totalitários”. Porém, reconheceu a dificuldade do momento, tanto para o país como para os familiares de soldados russos mortos no conflito na Ucrânia. Obviamente, ambas declarações tiveram réplicas, tréplicas, sinalizando que por enquanto, a trégua não vem. Some-se a isso o fato de que Putin voltou a fazer ameaças nucleares contra o Ocidente ao prometer a entrada em serviço de um novo míssil dois dias depois de suspender a participação de seu país no último tratado de controle dessas armas. Ele também disse que “dará atenção à tríade nuclear”, jargão para os três meios de emprego de ogivas nucleares: mísseis em solo, bombardeiros e submarinos. E anunciou a produção em massa de 2 dos 3 modelos hipersônicos que já tem em operação, o Kinjal (lançado de caças) e o Tsirkon (usado em navios).
E nesta quinta-feira (23), a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) pediu uma “paz abrangente, justa e duradoura” e novamente exigiu que a Rússia retire suas tropas e pare de lutar. Desde o começo da guerra, essa foi a quarta vez que a ONU pediu o fim da invasão das tropas russas na Ucrânia.
O hino da Rússia diz: “As vastas amplidões aos sonhos e à vida/ Os anos vindouros nos abrem/ A dedicação à Pátria nos dá força/Assim foi, assim é, e assim sempre será!/ Glória a nossa pátria livre/ Sólida união dos povos irmãos/ Com a sabedoria ancestral do povo!/À glória Pátria, de ti nos orgulhamos!”. Em contrapartida, o hino ucraniano ressalta: “A Ucrânia não pereceu, nem sua glória e a sua liberdade/ O destino voltará a sorrir, para nossa irmandade/ Como orvalho sob o Sol, o Inimigo perece/ Governaremos nossa terra, que só à nós pertence!/ Lutaremos de corpo e alma pela liberdade/ Somos irmãos Cossacos, mantendo nossa integridade!”
Se os governantes de Rússia e Ucrânia levarem ao pé da letra o que falam seus hinos, esse conflito realmente está longe do fim.
A ENTREVISTA
Qual a verdadeira motivação de Vladimir Putin tentar invadir a Ucrânia. Foi pelo fato do país vizinho querer entrar para a Otan ou o desejo de Putin em ter a ‘Rússia Imperial’ novamente?
A invasão da Rússia na Ucrânia pode ser considerada como uma reação de Putin ao avanço do Ocidente, via Otan e União Europeia, no leste europeu. Trata-se de uma área que fez parte da esfera de influência russa, durante a Guerra Fria, e que, desde os anos 1990, tem passado por um processo de abertura às redes econômicas, políticas, militares e sociais ocidentais. A Rússia deseja manter a liderança que tradicionalmente exerceu sobre a região, não tanto para resgatar uma ideia de “Rússia Imperial”, e sim, para manter o status de grande potência e candidata a superpotência (algo atingível quando se detém, em escala global, poder econômico, militar e diplomático). A maior dificuldade da Rússia, desde a crise que fragmentou a União Soviética, vem sendo a questão econômica, uma vez que as demandas internas e o PIB reduzido diminuem a capacidade russa de manter a hegemonia no leste europeu. Quanto mais Estados dessa região se aproximarem do Ocidente, menor será a capacidade russa de exercer liderança econômica, política e militar regional. Para manter, portanto, o status de grande potência e as aspirações para voltar a ser uma superpotência é que a Rússia tem feito uso de diferentes medidas para dissuadir a Ucrânia de pender para o lado ocidental: em 2014, ofereceu pacote de parceria econômica a Yanukovych, acusou os Estados Unidos de intervenção quando da queda do presidente ucraniano, invadiu a Crimeia, apoiou independências de Luhansk e Donetsk; em 2022, ocupou o Donbass e iniciou ataques em larga escala, atingindo Kiev.
Em 5 de março de 2014, o jornal Washington Post publicou um artigo de Henry Kissinger intitulado “Para solucionar a crise Ucrânia, comece pelo fim”. Essa guerra tornou-se algo previsível assim que a Rússia anexou a Crimeia?
Não se tornou previsível, pois, a exemplo do que havia ocorrido com a Geórgia, em 2013, uma movimentação militar russa tinha sido suficiente para dissuadir aquele Estado de se aproximar do Ocidente. Após a ocupação da Crimeia, em 2014, os acordos de Munsk tiveram o efeito de “congelar” a crise ucraniana: manutenção da Rússia na Crimeia, não-reconhecimento da independência de Luhansk e Donetsk, não-entrada da Ucrânia na União Europeia. Oito anos depois, foi necessária uma nova investida do Ocidente sobre a Ucrânia, dessa vez com a Otan, para provocar novas reações de Moscou. Pode-se considerar, então, que a Otan cutucou a Rússia. E, ao cutucar, sim, previa-se uma invasão.
O linguista Noam Chomsky disse em 2014, “mesmo se Mahatma Gandhi fosse o presidente da Rússia, a solução estrategicamente lógica seria a mesma tomada por Putin”. Não existiria outra saída para Putin se não a guerra?
Houve outras ações russas, antes da invasão. Primeiro, ainda em 2014, a Rússia ofereceu um conjunto de medidas econômicas para cobrir a oferta da União Europeia. Em seguida, a tomada da Crimeia foi providenciada como forma de dissuadir a Ucrânia e o Ocidente de promoverem uma aproximação mútua. Em terceiro, a Rússia condicionou a não-invasão com o compromisso, por parte da Otan, de limitar expansão no leste Europeu. Somente após o insucesso das tentativas anteriores de dissuasão é que Putin optou por ataques em larga escala no território ucraniano. Deste modo, percebe-se que a intransigência da Otan também foi determinante para o estado de beligerância atual.
Alguns analistas internacionais avaliam que se a ex-chanceler alemã Ângela Merkel estivesse no poder, ela poderia dialogar com Putin. O que o senhor pensa dessa hipótese?
Não faria diferença a presença de Ângela Merkel na trama política. Afinal, o papel da União Europeia, independente de seus porta-vozes, é o de ser coadjuvante na questão ucraniana. Por que coadjuvante? Porque a tomada de decisão de convidar a Ucrânia para ingressar na Otan, de não limitar o avanço da Otan no leste europeu, de lançar sanções econômicas à Rússia ao invés de frear o contingente militar da Otan foi muito mais dos Estados Unidos do que da União Europeia. Para o bloco europeu, não era vantajoso o desaquecimento de relações econômicas com a Rússia, devido à dependência europeia em relação ao petróleo e ao gás natural russos. Entretanto, a Europa não detém hegemonia militar sobre sua própria região, uma vez que os Estados Unidos têm bases militares estratégicas no território, especialmente através da Otan. A União Europeia, portanto, pressionada pelos Estados Unidos e também pelas sociedades civis ocidentais, que reforçaram a russofobia com a guerra, não teve outra alternativa que não fosse o endurecimento do discurso em relação a Putin e o apoio às sanções econômicos e ao apoio material da Otan aos esforços militares da Ucrânia, que vem mantendo uma contraofensiva aos russos desde julho de 2022.
Falando em dialogar, Vladimir Putin parece não ser muito afeito a conversar. Citamos dois exemplos. Em agosto do ano 2000, o submarino nuclear Kursk, afundou após a explosão de um torpedo, e o destino da sua tripulação de 118 homens foi a morte, já que Moscou recusou ajuda internacional. Depois houve o teatro Dubrovka, em outubro de 2002, quando terroristas chechenos fizeram artistas e plateia como reféns. Então, Putin após algumas tentativas fracassadas de acordo, mandou jogar um gás no teatro e todos morreram. Para Vladimir Putin, negociar ou aceitar ajuda é algo muito desafiador?
A narrativa de que Putin não negocia e não aceita ajuda é bastante ocidental. É veiculada por quem toma parte na rivalidade com os Russos e reproduz o ponto de vista estadunidense e europeu a respeito do Kremlin. Percebe-se, aqui, que a disputa de poder entre Rússia e Ocidente não é apenas econômica, política, militar e diplomática: também há uma guerra de narrativas, com o Ocidente, de um lado, construindo a imagem de uma Rússia não-democrática e de um Vladmir Putin intransigente; e com a Rússia, de outro, desenvolvendo uma retórica de Ocidente expansionista, militarista, interventor e anti-Rússia. Quem tem razão? Eu diria que os dois. Ambos defendem seus interesses e criam a narrativa que melhor lhes convêm.
Em relação ao cientista político e filósofo Alexandr Dugin. Ele realmente tem tanta influência assim sobre Putin como o Ocidente costuma dizer?
É muito difícil medir a influência de Dugin em Vladmir Putin. O cientista político russo, de fato, tem publicado textos anti-liberalismo e anti-Ocidente, além de ser uma referência de estudos sobre geopolítica para as forças armadas russas. O governo Putin, por sua vez, vem sendo protecionista, nacionalista, militarista e, nas relações exteriores, tem elaborado um forte contraponto à política externa estadunidense, basicamente compondo alianças com os desafetos americanos. A convergência de características entre o perfil do governo Putin e o conteúdo dos textos de Dugin é evidente. Contudo, não há necessariamente uma influência do pensador no presidente Russo, afinal, os traços que marcam o governo Putin têm raízes históricas, desde os tempos do czarismo, passando pela Era Soviética, o que diminui o impacto de um pensador contemporâneo sobre o atual governo russo.
Depois de Putin, o nome russo que mais aparece no noticiário durante essa guerra é o do ministro de Relações Exteriores Sergey Lavrov. Ele seria uma nova versão de Andrei Gromiko, que era conhecido por ‘Mr. NO’, devido a sua capacidade de dizer ‘não’?
Não me parece que a associação entre Sergey Lavrov e Andrei Gromiko tenha fundamento. Gromiko foi um diplomata e político com grande ascensão na hierarquia política da antiga União Soviética. A diplomacia conduzida por Gromiko seguiu a lógica da Guerra Fria, quando a União Soviética era uma superpotência, num sistema internacional bipolar, tendo os Estados Unidos no outro polo de poder. Coube a Gromiko conduzir Moscou nos termos da coexistência pacífica com Washington, no sentido de preservar o status quo russo daquele momento. Lavrov, por sua vez, é responsável pela diplomacia de uma Rússia que deixou de ser superpotência e que tem o status de grande potência ameaçado pelos problemas econômicos internos da Rússia, pelo avanço do Ocidente no leste europeu e pela ascensão econômica da China, especialmente na conjuntura da Guerra da Ucrânia. A atuação de Lavrov, portanto, é muito mais no sentido de recuperar um terreno perdido (para o Ocidente, para a China), do que o de preservar a esfera de influência consolidada, como nos tempos de Gromiko. Além disso, Putin e Lavrov estão muito próximos da extrema-direita russa, enquanto que Gromiko foi uma figura destacada da extrema-esquerda. São, portanto, de campos políticos bastante opostos.
A respeito de Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, que não tinha experiência política, era um ator de um seriado “O Servidor do Povo”, algo que o ‘credenciou’ a se candidatar ao cargo de presidente. A atuação de Zelensky diante da tentativa de invasão russa surpreendeu o mundo? Quais características que o senhor vê em Volodymyr Zelensky?
Zelensky tem trazido duas novidades durante o ano de beligerância com a Rússia: coletivas de imprensa com roupa informal e disposição para estender a guerra e vencer a Rússia no “cansaço”. Por que a postura de Zelensky é uma novidade? Porque seus antecessores foram mais diplomáticos no trato com a Rússia e mais comedidos nas tratativas de aproximação ao Ocidente. Zelensky tem se mostrado um entusiasta da entrada da Ucrânia na União Europeia e na Otan, estando disposto a confrontar as forças russas no próprio território, o que tem um custo humano muito alto. A aposta de Zelensky é a de que os desgastes econômicos e políticos sofridos por Putin sejam suficientes para que Moscou ceda a meta de impor um limite à expansão da Otan no leste europeu. Putin quer uma Otan longe e uma Ucrânia perto. Zelensky, do contrário, deseja se afastar da influência de Moscou e aposta que, no futuro, a Ucrânia poderá ingressar nas organizações internacionais ocidentais. Nesse sentido, Zelensky não tem trabalhado pelo fim da guerra, e sim, pela aliança com o Ocidente. Até o momento, o presidente ucraniano tem sido um porta-voz do ponto vista ocidental sobre a Rússia e das pretensões ocidentais no leste europeu.
Acreditava-se que a Rússia facilmente invadiria a Ucrânia em virtude de ser um dos exércitos mais poderosos do mundo, mas as coisas não se saíram bem assim. O que houve? Após um ano de combates, qual o estágio atual da guerra entre Rússia e Ucrânia?
Até o momento, pode-se identificar três fases da guerra: na primeira, de fevereiro a abril de 2022, a Rússia invadiu o Donbass e estendeu os ataques até Kiev; na segunda, de abril a julho, as operações militares russas se concentraram no leste, para controlar os portos de Mariupol e Odessa; na terceira, desde julho, a Ucrânia tem feito uma contraofensiva, com suporte material da Otan, onde se destaca a resistência ucraniana em Kharkiv. Para avaliar o êxito russo, é preciso considerar as metas de Putin com a guerra. A intenção da Rússia é assegurar o controle do leste da Ucrânia e não derrubar o governo Zelensky. Nesse sentido, a guerra convencional colocada em prática por Putin, com uso do efetivo das forças armadas, tem conseguido manter a presença russa no Donbass. A possibilidade da Ucrânia retomar a região é mínima. Putin, assim, pressiona o governo Zelensky a ceder aos pedidos russos, que são: reconhecer a perda dos territórios ocupados, não fazer parte da União Europeia e da Otan. Trata-se de uma estratégia de longo prazo, apostando no desgaste que um conflito prolongado pode provocar na sociedade civil ucraniana e na demanda pelo fim das hostilidades que essa situação pode provocar. Observando a guerra por essa ótica, a Rússia não está usando todo o potencial bélico, e sim, o necessário para controlar o leste.
E quanto a ajuda internacional clamada por Zelensky. Ela está dentro do previsto? Como o senhor avalia a posição até agora tomada pelos Estados Unidos? E uma pergunta que não quer calar, essa guerra vai até quando?
Não há interesse por parte da Otan em se envolver diretamente num conflito com a Rússia. O custo de uma guerra dessa dimensão e a imprevisibilidade do resultado são motivos fortes para que a tensão entre as grandes potências não atinja um estado de beligerância. A Otan, então, conforme o previsto, opta por fornecer ajuda material à Ucrânia, como forma de estender o conflito. Por que? Porque, para o Ocidente, em especial para os Estados Unidos, a guerra tem sido útil para prejudicar a Rússia economicamente, alimentar a russofobia no Ocidente, desgastar Putin internamente, retrair o apoio da população russófoba do leste ucraniano e fragilizar o status de grande potência da Rússia. A guerra também tem feito a economia russa se tornar coadjuvante da chinesa, o que altera, a longo prazo, a relação entre Rússia e China, deixando o governo de Pequim como o mais forte na relação com Moscou. A guerra tende a se estender, portanto, pois Ocidente, China, Ucrânia e Rússia trabalham com a ideia de que, a longo prazo, os objetivos, interesses e metas de cada um possa ser alcançado: o Ocidente quer fragilizar a Rússia; a Ucrânia quer se aproximar do Ocidente; a Rússia quer limitar a expansão da Otan; a China quer a supremacia econômica no mercado russo.
A respeito do Brasil, no que essa guerra nos afetou? A diplomacia brasileira, por enquanto, está usando a ‘neutralidade interesseira’?
Para o Brasil, a guerra provocou efeitos econômicos, como a elevação do preço dos grãos provenientes da Ucrânia, contudo, não impactou na política exterior do país. Vale lembrar que, mesmo que não tenha sido de forma ininterrupta, desde os anos 1930 a diplomacia brasileira vem utilizando um pragmatismo nas relações internacionais em nome da autonomia decisória e do interesse nacional. Uma das estratégias mais utilizadas pelo Brasil, há décadas, é o uso do “soft power”, isto é, dos valores culturais compartilhados com diferentes sociedades do mundo como forma de viabilizar aproximações, acordos e convergências. Entre esses valores estão a defesa da democracia e do direito à autodeterminação dos povos. A atual política externa brasileira tem tratado a Guerra da Ucrânia como sendo um conflito condenável, justamente porque a guerra se opõe aos valores defendidos pelo Brasil. Por outro lado, o Brasil também evita romper relações com as partes envolvidas no conflito, uma vez que o interesse brasileiro é manter negócios e diplomacia intensos com todas as partes. Afinal, além dos laços históricos com o Ocidente, o Brasil tem no Brics uma relevante rede econômica com países do chamado “sul global”, entre eles a Rússia e a China. Por isso, não parece vantajoso para o Brasil adotar uma retórica hostil contra os atores internacionais envolvidos no conflito. A proposta apresentada pelo presidente Lula a Joe Biden e a lideranças europeias, de criar um grupo multilateral para discutir um cessar-fogo, expressa a posição de primar pelo diálogo e pela resolução pacífica de conflitos por parte da diplomacia brasileira, a qual também deseja, com essa estratégia, credenciar o Brasil como um liderança do hemisfério Sul, com capacidade para mediar conflitos, algo que poderia fortalecer a pretensão brasileira de, a longo prazo, ingressar com cadeira permanente no conselho de segurança da ONU (Organização das Nações Unidas).
Independentemente do resultado desse conflito, para a opinião internacional, no que tange aos principais nomes dessa guerra, Zelensky seria o vencedor; enquanto Putin, o perdedor?
Classificar um lado como “perdedor” ou “vencedor” depende da perspectiva que é feita sobre a guerra. Do ponto de vista do impacto humano, não há vencedores, pois os tomadores de decisão de cada ator internacional envolvido na trama vêm optando pelo longo prazo para atingir suas metas, o que estende o estado de beligerância e atinge a sociedade civil ucraniana; do ponto de vista do interesse de cada ator internacional, se houver limite de expansão da Otan no leste europeu, a Rússia será a vitoriosa; se não houver, o Ocidente será o vitorioso. O conflito parece deixar claro que, independentemente do desfecho, já há um grande beneficiado: a China. E um grande prejudicado: a Ucrânia.
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NÚMEROS DA GUERRA
Conforme matéria publicada nesta quinta-feira (23) no site Globo.com, o conflito tem “quase 180 mil soldados russos mortos ou feridos e quase 100 mil militares ucranianos: este é o balanço, segundo a Noruega, da guerra para os dois exércitos. Outras fontes ocidentais citam 150 mil baixas de cada lado”.
A mesma matéria cita o número de civis mortos: “Entre 30 mil e 40 mil morreram em um ano de conflito, segundo fontes ocidentais. No fim de janeiro, a ONU calculou em 18 mil o número de civis mortos e feridos, mas reconheceu que “os números reais são muito mais elevados””.
A Faculdade de Economia de Kiev calculou os danos em US$ 138 bilhões (cerca de R$ 712,81 bilhões) e as perdas para a agricultura em mais de US$ 34 bilhões (cerca de R$ 175,62 bilhões). Mais de 3 mil escolas e 239 centros culturais foram afetados, segundo a Unesco.
Já a Agência Reuters informou, em janeiro de 2023, que pelo menos 15 mil pessoas são consideradas desaparecidas, aproximadamente 14 milhões de pessoas estão desalojadas e cerca de 140 mil prédios foram destruídos. O dano à propriedade é estimado em aproximadamente US$ 350 bilhões.
Várias agências apresentam números díspares a respeito desse conflito, só que só reforça a máxima creditada ao dramaturgo da antiga Grécia, Ésquilo: “Na guerra, a verdade é sempre a primeira vítima”.
- Foto feita no dia 24 de fevereiro de 2022. Explosão em Kiev (Foto: escritório presidencial da Ucrânia)
- Ainda no dia 24 de fevereiro, população foge de Kiev (Reprodução UOL)
- Menina na janela de um trem que saiu levando mulheres e crianças que fugiram dos combates em Bucha e Irpin no dia 4 de março de 2022 (Foto: Getty Images)
- Criação com as bandeiras da Rússia e Ucrânia (Crédito – Divulgação -Wikimédia Commons)
- Professor Mateus Dalmáz é doutor em História e coordena esse curso e o de Relações Internacionais na Universidade do Vale do Taquari – Univates (Lajeado/RS). Também é autor dos livros A Imagem Do Terceiro Reich Na Revista Do Globo. 1933-1945 – Coleção História e Argentina e Relações Interamericanas na revista O Cruzeiro (1946-1966): Modelos de desenvolvimento na América Latina (Foto: arquivo pessoal)
- Mapa do conflito (Crédito – Viewsridge – Reprodução – Wikimedia Commons-compressed)
- Vladimir Putin em 1966, 1980 e atualmente. Ele foi de ex-agente da KGB à presidência da Rússia (Fotos: arquivos Russos/Avalon/Fotos Públicas)
- Zelensky em quatro atos: Vencendo a “Dança dos Famosos” ucraniano, atuando em “O Servidor do Povo”, sendo empossado presidente da Ucrânia e concedendo coletivas de imprensa com roupa informal (Fotos: reproduções/Money Times)
- Muitas vezes associados, o professor Mateus Dalmáz explica as diferenças de posicionamento entre Andrei Gromiko e Sergey Lavrov (Fotos: David Hume Kennerly http://www.fordlibrarymuseum.gov – The Times)
- Em matéria publicada no dia 17 de abril de 2022, a BBC manchetou: “Aleksandr Dugin, o ‘Rasputin de Putin’, que moldou sua visão sobre a Rússia e o mundo”. Dugin é conhecido por suas visões ultranacionalistas e considerado por alguns o pensador mais influente da Rússia. Alguns o chamam de “Rasputin de Putin”, em referência a Grigori Rasputin, o místico que cativou a corte imperial da Rússia um século atrás. Mas o professor Mateus Dalmáz observa que “não há necessariamente uma influência do pensador no presidente Russo, afinal, os traços que marcam o governo Putin têm raízes históricas, desde os tempos do czarismo, passando pela Era Soviética, o que diminui o impacto de um pensador contemporâneo sobre o atual governo russo (Fotos: arquivo pessoal/Getty Images)
- Presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o líder chinês, Xi Jinping. Professor Mateus Dalmáz enfatiza que “a guerra também tem feito a economia russa se tornar coadjuvante da chinesa, o que altera, a longo prazo, a relação entre Rússia e China, deixando o governo de Pequim como o mais forte na relação com Moscou” (Foto: Reuters)
- O presidente americano, Joe Biden, aperta a mão do ucraniano Volodymyr Zelensky durante visita surpresa a Kiev realizada na última segunda-feira (20) (Foto: Evan Vucci/AFP)