- Eugênio Maria Gomes
Do outro lado do telefone, uma voz pedindo ajuda: “há um casal de idosos, na lateral da Catedral, em situação de miserabilidade. Estão dormindo ao relento, sem qualquer cuidado em relação à higiene, estão magros e entregues à própria sorte. Será que o senhor não consegue ajuda para eles?”. O casal ao qual a pessoa se referia era formado pelos conhecidos “Carioca e Nora Ney”.
Meu primeiro contato com o casal se deu na virada do milênio, quando atuava na Secretaria de Ação Social, da Prefeitura Municipal de Caratinga. Eles tinham moradia – não sei se era própria ou alugada – porém, viviam embriagados pelas ruas da cidade, buscando uma ajuda aqui, outra ali, para sustentar um vício que, aos poucos, os consumia. Porém, eles tinham algo de muito especial: estavam sempre juntos. Não importava se o tempo estava quente ou frio, se chovia ou fazia sol, se era noite ou dia, o certo era que onde estava o Carioca, lá estava também a Nora Ney. A Secretaria os atendeu durante todo o tempo, sempre com ajudas paliativas, até porque eles não aceitavam nenhum tipo de auxílio que fosse mais consistente, que pudesse retirá-los daquela condição de mendicância e de vulnerabilidade social.
Terminada a minha participação no governo, durante muitos anos continuei a encontrá-los pelos caminhos da vida e, vez ou outra, batiam à minha porta, solicitando uma ajuda financeira, tendo sempre como referência uma conta de luz atrasada, o corte no fornecimento de água ou uma receitar para aviar. Ambos sempre foram muito magros, maltrapilhos e, via de regra, estavam embriagados.
Logo após receber o telefonema fiz alguns contatos com algumas instituições sociais e órgãos governamentais, solicitando uma intervenção que pudesse amenizar tanto sofrimento. Eles haviam improvisado uma cama de papelão próximo à igreja, enrolavam-se em cobertores tipo “bicicleta” e dividiam o espaço com dezenas de pombos, ávidos pelos restos de alimento espalhados em seu entorno. Paralelamente providenciamos roupas para os dois com o intuito de levá-los para um banho, para tentar melhorar aquela imagem quase sub-humana. Não conseguimos levar a termo a efetivação da ajuda. Não pareceu ao grupo ser sensato a locomoção dos dois de automóvel e, também, a utilização da residência de um dos membros da equipe para o acolhimento. .
O certo é que, em poucos dias, a Nora Ney foi a óbito, enquanto acompanhava o marido em um atendimento na UPA. Com isso, o Carioca conseguiu ser removido pela Secretaria de Ação Social. Eu sei das tentativas de algumas instituições sociais de retirá-los, sem sucesso, do local onde escolheram para viver e morrer. Eles não aceitavam se separar e, em Caratinga, não há lugar destinado à recuperação da mulher viciada, como existe para o homem.
Por mais que tentemos justificar o não atendimento adequado e humanizado ao casal “Carioca e Nora Ney”, a culpa por essa ocorrência há de habitar nosso ser por um bom tempo. Sim, somos todos culpados por este casal perder sua casa e ganhar as ruas, por suas feridas, por sua pele fétida, por sua magreza, pelo frio que sentiram, pelo estômago vazio e pela morte de um deles. Se não sentirmos culpa por isso, teremos perdido a essência de criaturas de Deus que somos e estaremos fazendo vista grossa aos ensinamentos de Cristo, quando nos disse “Porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes”.
Sim, somos todos culpados por esse triste desfecho. A Igreja é culpada, as Ongs são culpadas, os transeuntes são culpados, os poderes públicos são culpados. Quem passou por eles e ajudou com algo, é culpado, assim como os que sequer souberam da existência do casal são culpados. Em pleno século XXI, uma mulher morreu, depois de passar momentos de dor e tristeza, na Praça da Matriz. O atestado de óbito acusou enfarto, mas sabemos que também já teve pneumonia, passou fome, sentiu frio e, sua esquelética figura certamente foi resultado de muitas e muitas infecções. Só sei que, uma mulher morreu, antes que pudesse ser ajudada, cuidada, mesmo se negando a aceitar ajuda. Precisamos ter vergonha e nos aprimorarmos como seres humanos, mesmo que seja através da culpa. Só assim poderemos continuar acreditando que a humanidade tem salvação.
A perda de um ser humano, na forma de “farrapo humano”, fruto de uma vida cruel, quase anônima no atendimento na UPA, espelha a profunda falta de solidariedade, de amor ao próximo, de comprometimento e de uma genuína e verdadeira ligação com o Divino. Envoltos em nossas orações, entorpecidos em nossos cânticos de louvor, dentro de uma Catedral iluminada e aquecida, rezamos por nossas almas e rogamos ao Deus dos Miseráveis que nos conceda a salvação! Embora, ali, bem perto de nós, dois “pequeninos” jaziam no abandono e no esquecimento…
Meus Deus! Quanta hipocrisia…
Pie Jesu, Qui tollis peccata mundi. Dona eis réquiem!
Funcionário da Funec e escritor.