EGITO – A Pirâmide de Degraus de Saqqarah: Parte III ― A Rocha Calcária**[2]
A necrópole de Saqqarah está assentada numa região desértica e montanhosa, sobre um terreno rochoso, sedimentar, com predominância de lâminas espessas compostas de um calcário branco e duro. As camadas de calcário afloram a poucos metros da superfície nos morros que circundam as margens férteis do Rio Nilo, numa grande extensão do seu vale. Isso é possível observar nos cortes deixados ao longo de estradas ou mesmo em pedreiras de extração desse material. O solo rochoso de Saqqarah, assim disponível, é uma sugestão natural para o seu emprego na construção em pedra, independentemente da sua função arquitetônica ou estrutural, tendo em vista a estratificação geológica apresentada, em camadas planas, com diversas espessuras entremeadas de sedimentos horizontais de areia compacta. Isso facilita a extração mecânica da rocha, que poderia ser retirada com alguma técnica e jeito, utilizando-se das ferramentas simples ― como o martelo de pedras; cunhas de madeira, talhadeiras; alavancas e ponteiros de bronze ―, já empregadas no Egito na época das primeiras construções em Saqqarah, conforme testemunham, por exemplo, as ferramentas de bronze encontradas em escavações arqueológicas nessa região.
Rocha sedimentar típica encontrada em estado natural na região de Saqqarah. Observa-se que as camadas de calcário são intercaladas com areia, numa nítida separação entre elas, o que facilita a extração da rocha para o emprego na construção. Ferramentas de bronze, ponteiros e talhadeiras, encontradas nas escavações em Saqqarah, expostas no Museu Imhotep.
Certamente a extração de rocha sedimentar, como o calcário, já era conhecida dos construtores de Saqqarah, mesmo antes do Antigo Império, mas que somente tomou força a partir da aspiração de um soberano cuja sabedoria lhe permitiu confiar ao sumo sacerdote e vizir, Imhotep, o seu principal conselheiro, a condução ― projeto, planejamento, administração e construção ―, da mais fantástica e mais audaciosa obra jamais realizada pela humanidade: o complexo funerário de Saqqarah. O lugar sagrado para o seu descanso eterno e adoração dos seus súditos próximos ou peregrinos provenientes de toda parte do mundo, desde a antiguidade.
Vista dos lados sul e leste da pirâmide de Djoser em que são observados os seis níveis.
Estavam, portanto, instaladas, do ponto de vista técnico, todas as condições propícias para se iniciar um desenvolvimento ininterrupto e definitivo na arte de construir com pedra, sobretudo, com vistas a preencher uma necessidade religiosa de perpetuar a existência dos reis e de seus descendentes para além da vida. Do ponto de vista econômico, a fartura obtida nas plantações, extrações e criações desenvolvidas ao longo dos séculos nas terras férteis das margens do Rio Nilo ― pertencentes ao único soberano, senhor de tudo e de todos ―, gerava excedentes que eram convertidos em impostos a serem pagos e recolhidos anualmente em função das cheias do Rio. Nesse tempo, o uso de blocos de calcário nas construções de mastabas, e em outras pirâmides posteriores à construção do complexo arquitetônico do rei Djoser, foi largamente difundido em toda região de Saqqarah e além de suas terras. Sobretudo pela facilidade da extração da rocha e pelo desenvolvimento regional de técnicas de trabalho em cantaria na construção estruturada de muros e paredes. Ajuntou-se a isso, a disponibilidade da mão de obra barata dos camponeses residentes no vale do Rio Nilo, que ficava sazonalmente ociosa nas entressafras de plantio e colheitas, durante as cheias do Rio. Nesse período a mão de obra ociosa era empregada na construção das pirâmides.Detalhes da quina localizada do lado Sudoeste da pirâmide, com destaque para o arranjo espacial dos blocos nos dois planos do muro do segundo degrau. As pedras foram assentadas nessa parte, sem nenhum preparo especial de acabamento, da forma com que foram extraídas da jazida.
A imaginação e a criatividade de Imhotep no domínio da forma e sua compreensão volumétrica do espaço disponível para criar um ambiente construído a partir de um projeto racional e representativo dos principais objetivos propostos, fizeram desse homem o criador da arquitetura ocidental, e a pedra disponível nas cercanias de Saqqarah tornou-se o seu principal material de construção. Detalhes do que fez Imhotep com o calcário disponível em Saqqarah: coluna restaurada, composta de aduelas finamente encaixadas na galeria de entrada do campo sando e alegoria original papiriforme de uma falsa coluna no muro da parte nordeste do complexo funerário.
Imhotep inaugura, portanto, a arquitetura em pedra polida, marcando para sempre os princípios do trabalho com esse material, explorando de forma racional e segura suas mais distintas formas e funções. Importa observar com atenção o Imhotep engenheiro ― indissociável do arquiteto ― quando busca, cria e encontra recursos técnicos no uso dos mais diversos encaixes da cantaria para solucionar, ao mesmo tempo, os problemas de estabilidade e de equilíbrio de suas construções. Nasce aqui também com Imhotep o pensamento racional do engenheiro de estruturas, destinando parte de sua mente inventiva na busca das soluções nesse campo que possam, simultaneamente, prover ao arquiteto de liberdade para criar suas formas e arranjos e garantir a estabilidade dessas formas, ainda que suas dimensões superem ao imaginário contemporâneo. Devemos a Imhotep a criação dos mecanismos de intertravamento das pedras nas fileiras das estruturas, a partir do emprego da alternância do posicionamento dos blocos no assentamento dos muros e paredes. Esse procedimento foi empregado por Imhotep desde a construção da primeira fase da pirâmide de degraus, como se observa nos detalhes construtivos dos muros da primeira e da segunda fase localizados no lado sul da pirâmide.
Ele cria também nesse mesmo detalhe o arremate intertravado do canto, dando início a uma fileira com um bloco maior e outro menor a cada nível de pedra. Desta forma ele trava nas duas direções horizontais, na mesma fiada, as pedras de uma e de outra fileira, numa técnica de amarração jamais superada pela engenharia em todos os tempos, dado que esse procedimento é o mesmo utilizado nos dias atuais, em pleno século 21.
[1] *José Celso da Cunha, engenheiro civil, professor, escritor, doutor em Mecânica dos Solos-Estruturas pela ECP-Paris. É membro da ABECE e do IBRACON. E-mail: [email protected].
[2] **Com base na série do autor: “A História das Construções” ― www.autenticaeditora.combr . As fotografias das construções apresentadas neste artigo foram tiradas pelo autor.