Mestre e doutora em Literatura Brasileira disseca 29 canções de Renato Russo. O livro aborda se o líder da Legião Urbana foi ou não poeta
Por José Horta
DA REDAÇÃO – Nos idos dos anos 80, Herbert Vianna, vocalista e guitarrista dos Paralamas do Sucesso, saía de um show da Legião Urbana quando ouviu um jovem dizer “é Religião Urbana”. Essa declaração se deu em virtude da adoração que a banda despertava: o público cantava todas as letras e os shows pareciam rituais. E Herbert Vianna concordou com o jovem. Por muitas vezes Renato Russo (1960-1996) foi tachado de ‘messiânico’. As mensagens em suas letras, algumas delas com citações religiosas, poderiam levar para muitos esse entendimento. Mas para saber algo mais sobre o legado do líder da Legião Urbana, que no último dia 11 completou 25 anos de sua morte, chega ao mercado o livro ‘Renato, o Russo’ (Garota FM Books). A obra é de Julliany Mucury, mestre e doutora em Literatura Brasileira, e consumiu dez anos de pesquisa sobre o eterno líder da Legião Urbana.
11 de outubro de 1996
Sempre nos lembraremos onde estávamos quando morreu alguém que admiramos. Pois bem, em 11 de outubro de 1996, uma sexta-feira, estava em Ipatinga, trabalhava numa empresa de construção civil. Tinha afazeres no centro da cidade e passei numa banca de revistas. Hoje, 1996 parece uma galáxia distante, a internet não era acessível como em 2021, as notícias não ‘brotavam’ via celular. Logo no início da tarde daquele dia, assim que cheguei à banca, meu amigo Emerson Ramos trabalhava nesse local. De bate-pronto ele me disse: “O Renato Russo morreu!”. Me recordo que fiquei calado, respirei fundo e acendi um cigarro. “Parece que você perdeu um parente”, observou Emerson, que também é fã da Legião Urbana. Anos mais tarde ele fez o seguinte comentário sobre essa situação: “Foi algo que teria que ser filmado pelo (Ingmar) Bergman”.
Voltei para o escritório onde trabalhava e amiga Goretti Nunes me liga: “Zé, o Renato morreu”. Observem que Goretti se referiu como ‘Renato’, ao nível de intimidade, afinal ele foi o responsável por compor a maioria das músicas que já cantamos em nossas vidas. No dia seguinte fui para Bom Jesus do Galho, cidade onde residiam os meus pais, que sempre esperaram por mim. Minha mãe, a saudosa Dona Cotita, me recebe, abençoa e fala: “aquele cantor que você gosta morreu né. Lembrei de você na hora que vi a notícia no jornal”. Minha mãe gostava de “Será”, mas não por causa da Legião Urbana, mas, porque foi regravada pela Raça Negra.
Renato Russo cantava “te fiz comida, velei teu sono/fui teu amigo, te levei comigo/e me diz, pra mim o que é que ficou?”. Geralmente pessoas costumam entrar e sair de nossas vidas como clientes em supermercados, mas com Emerson e Goretti ficou a amizade que perdura até hoje. E passados 25 anos recorri a eles na hora de formular as perguntas para essa entrevista. Teve ainda a colaboração da amiga Maria do Rosário Rodrigues, professora que mora em Ipatinga. E mais uma vez como entoava Renato Russo, “… o sistema é ‘maus’, mas minha turma é legal…”
Importância
Embora a obra da Legião Urbana seja atemporal, afinal mudam as épocas, mas os sentimentos costumam ser os mesmos. Em 09 de outubro de 2016, o DIÁRIO fez uma matéria a respeito dos 20 anos da morte de Renato Russo. Dado Villa-Lobos foi entrevistado. Uma das perguntas era: Lou Reed tem um álbum chamado ‘Growing Up in Public’ (1980) e que serve de inspiração para essa pergunta. Digamos que a Legião soube como poucos crescer e amadurecer diante do público? A reposta foi a seguinte: “É verdade. O que colocamos nas canções era o que vivíamos à época de cada disco. No ‘Quatro Estações’ (1989) todos se tornaram pais com seus filhos, no “V” (1991) o Collor acabou com nossos sonhos e lá estava “Teatro dos Vampiros”. Amadurecemos e contamos essa história em prosa, versos e música”.
Essa resposta mostra a percepção que a banda tinha, sabia ser de seu tempo. A Legião Urbana começou de jeito cru, moldada pela estética punk, e primeiro disco de 1985 atesta isso; foram sublimes com o magnífico ‘Dois’ (1986); resgataram os primórdios em “Que Pais é Este” (1987); mostraram os vencedores do inverno, os filhos do verão, disseram que o outono é tão bem feito e a primavera brotou (obs.: trecho fortemente inspirado na letra de ‘The Game’ do Echo & the Bunnymen) em “As Quatro Estações” (1989); enigmáticos em “V” (1991); promovendo celebrações em “O Descobrimento do Brasil” e Renato Russo se despediu em público com a “Tempestade” (1995). Tem ainda “Uma Outra Estação” (1997) com raspas e restos que muitos nos interessam. Ele ainda fez álbuns onde cantava em inglês e em italiano. Enfim, um legado atemporal, que embalou muita gente e irá continuar embalando muitos que ainda acreditam num sentimento simples, embora muitas vezes menosprezado: a amizade.
Renato, o Russo
Conforme release assinado por Yasmim Lisboa, ““Renato é poeta?” Foi justamente esse o questionamento que inspirou a pesquisa de Julliany Mucury. O livro Renato, o Russo mergulha de maneira inédita na trajetória de um dos maiores poetas e cancionistas da história da música brasileira, desvendando as múltiplas qualidades e significados que formaram as personalidades do jovem Renato Manfredini Jr. e do artista Renato Russo. Depois de dez anos de pesquisas, coletas de dados e análises da obra do vocalista da Legião Urbana, a pesquisadora apresenta em detalhes o legado das poesias de Renato e a sua contribuição para a cultura e o pensamento do país”.
E nessa obra são dissecadas 29 letras de autoria de Renato Russo. “O Renato Manfredini Jr. escreve para nós. E o que ele quer nos dizer? Para responder a isso, eu fui em busca de 29 letras de autoria exclusiva do Renato, algumas delas descobertas há pouco tempo, e que dizem muito. Dá para a gente traçar um grande legado poético do Renato e o legado que ele quis deixar como mensagem, algo importante para ele, que se preocupava muito com as palavras”, explica Julliany Mucury.
Coincidência? Coisa do destino? Pode ser. Afinal como ele mesmo cantava: “E vinte e nove anjos me saudaram/E tive vinte e nove amigos outra vez”.
O livro ‘Renato, o Russo’ está à venda no site da livraria Travessa (https://www.travessa.com.br/)
A entrevista
Como no último dia 11 eram rememorados os 25 anos da morte de Renato Russo, a agenda de Julliany Mucury estava cheia. A série de compromissos profissionais só reforçava a importância do livro recém-lançado por Julliany Mucury. Fizemos contato na semana anterior, ela nos passou a agenda e falou que tiraria um descanso na terça-feira (12), mas que na quarta-feira (13) responderia a todas as perguntas na parte da tarde. E assim foi feito. Eis a entrevista. O nosso muito obrigado, Julliany Mucury.
Como surgiu a ideia de analisar a obra de Renato Russo?
A ideia surgiu de uma provocação feita no lançamento do livro do Carlos Marcelo, biógrafo de Renato Russo, quando o poeta brasiliense Nicolas Behr me perguntou se Renato era poeta.
Eleger a análise de um letrista do rock nacional como objetivo de sua tese literária “Renato Russo: Um Eu em Colisão Consigo Mesmo” provocou algum estranhamento por parte do meio acadêmico?
Por parte de alguns professores e dos próprios colegas também, embora a Universidade de Brasília tenha um campo de pesquisa intitulado “Literatura e Outras Artes”, e minha orientadora, Sylvia Cyntrão, trabalhe justamente com literatura e canção, não deixei de perceber preconceitos e provocações ao longo da minha trajetória.
Como se deu a escolha da letras que compuseram o estudo?
Tive de reduzir para caber num texto de tese e acabei por descobrir 29 letras de autoria exclusiva do Renato, o que não deixa de ser místico.
Por que “Acrilic on Canvas” é a sua letra preferida?
Porque é uma letra muito densa e que quando ouvi a primeira vez teve grande repercussão em meu imaginário, percebi na hora que havia algo a mais ali.
A tese referencia a diferença dos sentimentos de Renato Manfredini Jr e de Renato Russo? Como foi traçar essa dicotomia?
Mais que uma diferença de sentimentos de estar no mundo, eu identifiquei com clareza a diferenciação entre Renato Manfredini Jr. e Renato Russo, sendo este segundo uma persona bem estruturada por Renato para lidar com a imprensa, shows, holofotes e afins, o Junior ficava bem guardado e recluso, e precisava de drogas e álcool para se expor ao mundo.
Em algum momento você linka o apelido de Renato, o ‘Russo’, com as influências dos filósofos Jean-Jacques Rousseau e Bertrand Russell?
Esse link do nome Russo já é apontado claramente por Arthur Dapieve na biografia do Renato quando ele fala sobre as referências do artista e sobre como ele adota o “Russo” no sobrenome. Esses dois são referências claras.
Renato Russo fez referência a escritores, artistas, a textos bíblicos. Quando cantava ‘Ela gostava do Bandeira e do Bauhaus/De Van Gogh e dos Mutantes/De Caetano e de Rimbaud’ ele instigava, de certa forma, o fã a pesquisar quem são esses personagens ou apenas manifestava sua admiração por eles?
Depende do fã, muitos dos que ouviam “Eduardo e Mônica” se projetavam nos personagens da canção e queriam ser como eles, quem sentiu esse desejo com certeza buscou saber quem eram os artistas mencionados, para alegria do Renato, que não subestimou os fãs.
Renato Russo brincava com suas letras, como em ‘Meninos e Meninas’, ele diz ‘Eu canto em português errado/Acho que o imperfeito não participa do passado/Troco as pessoas/Troco os pronomes’. Esses versos soam como sinceridade, provocação ou um manifesto contra preconceitos alimentados pelas diferenças entre as pessoas, como a forma de falar em desacordo com as normas cultas da gramática que denunciam a segregação social?
Esses versos carregam o espírito da contra-cultura que o rock and roll e o punk representam e sim, estavam presentes na letra as intenções de burlar regras e ditames, como provocações mesmo!
Como a infecção pelo HIV influenciou o trabalho, a vida de Renato Russo?
O HIV positivo naquela época sofria muito com as reações aos medicamentos e com Renato não foi diferente, entre o diagnóstico positivo e sua morte decorreram 6 anos de muita produção e luta contra o tempo. No final o corpo do Renato sucumbiu e abandonou o projeto que sua mente brilhante ainda seria capaz de levar adiante. O HIV positivo mudou também a linha de composição do Renato e sua mensagem, sendo que ele não usava mais drogas e procurava a todo custo realizar sonhos como o disco em italiano e o outro em inglês, que foram projetos solo.
Outra coisa, ele tinha uma religiosidade muito forte. As citações bíblicas que comparecem nas letras de Renato Russo, além de versos como o que demonstra sua preocupação com a maldade que deixa Deus tão triste, são a revelação de uma fé cristã? Poderia nos explicar essa religiosidade?
A religiosidade do Renato era uma herança familiar, mas ele era místico, gostava muito de símbolos, signos e tarot. Um sujeito eclético e que pregava o respeito absoluto ao outro, independentemente de suas escolhas de vida.
Em 1934, o poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972) disse que “os artistas são a antena da raça”. O Renato Russo foi essa antena?
Sim, o Renato se encaixa perfeitamente no que significa ser uma antena da raça, que seria o sujeito à frente de seu tempo, capaz de compor poesias atemporais e significativas, reflexo do seu tempo histórico, político, social. Para Pound esta antena era vanguarda, guiando os que teriam acesso ao seu legado adiante, além do horizonte visível.
O que você destaca no legado deixado por Renato Russo?
Meu destaque para o legado do Renato é justamente a atemporalidade de seus escritos, como ele conseguiu captar em profundidade as angústias de toda sorte de seus iguais e como deixou uma mensagem positiva e de ressignificação do eu, mesmo saindo de um tempo tão difícil como foi a ditadura militar e convivendo com políticas que feriam profundamente suas crenças no lado bom da humanidade.
As letras assinadas por Renato Russo são atemporais. Esse fato garante vida longa ao conjunto da obra? Renato vai ser pra sempre assim, imortal?
A atemporalidade é justamente o que inscreve seu nome e legado na imortalidade, é preciso levar Renato aos jovens e manter viva a sua memória, hoje e sempre. Sua mensagem continua viva e capaz de direcionar a juventude a um pensamento crítico e de empoderamento de si mesma. Para a ação e questionamento, puro espírito punk rock, de não passividade, não letargia.
Muita coisa já foi escrita sobre Renato Russo, quais as abordagens diferenciam o seu texto dos demais? Por que o livro tem capas em cores diferentes?
Minha abordagem enfoca as letras de canção e busca evidenciar os motivos de sua permanência como artista, mais que uma biografia é minha contribuição para o entendimento de um tempo, 1980, um estilo musical, o rock and roll, e a fertilidade da década de 1980 em termos criativos em várias instâncias. Vai além do Renato, lançando sua alma no contexto em que viveu e o que ele deixou a partir disso como mensagem. E ainda não é assunto esgotado, há muito o que explorar quando se trata de Legião Urbana e Renato Russo.
Por que o livro tem capas em cores diferentes?
Simples, não conseguimos decidir e precisávamos lançar a campanha! Aí resolvemos deixar para o público a escolha. E deu super certo!
Renato Russo foi poeta ou cronista de sua época?
Foi poeta e cronista, foi um cancionista, um cantautor, alguém que teve a sensibilidade de perceber seu tempo e seu mundo e colocar isso na própria expressão de sua arte.