Autor de biografia afirma que ainda é cedo para dizer qual é o tamanho exato de Marília dentro da música brasileira
DA REDAÇÃO – “Marília Mendonça. Rainha da Sofrência”, biografia e crítica escrita por Bruno Ribeiro, jornalista de Campinas, traz o legado e a influência da cantora dentro da música brasileira. Trata-se da primeira obra biográfica feita depois do acidente.
Em entrevista ao DIÁRIO, o autor comenta aspectos do livro, como a ascensão da cantora até atos da intimidade de Marília Mendonça, como uma carta escrita para a mãe aos sete anos de idade e o gosto pela literatura.
Você é letrista de samba e crítico musical. O que lhe motivou a escrever sobre Marília? Desde quando acompanha a cantora?
Embora eu seja letrista de samba, ouço outros tipos de música também. Até por força do ofício, para fazer uma crítica, não posso ter preconceitos. Gosto muito de bolero, por exemplo. E, quando ouvi Marília Mendonça pela primeira vez, o que mais me chamou a atenção foi a forte influência do bolero em suas composições. Eu acompanhava o seu trabalho desde 2016, quando a entrevistei na ocasião do lançamento de seu primeiro álbum (“Marília Mendonça Ao Vivo”), meu preferido de sua discografia. A morte dela me tocou profundamente. Como aponto no prefácio do livro, fiquei muito abalado pela forma trágica com que tudo se deu e senti a necessidade de escrever sobre Marília, de prestar minha última homenagem a ela. A princípio era para ser algo despretensioso, voltado para as redes sociais. Eu não cogitava publicar um livro, mas a riqueza do material que consegui levantar me levou a repensar a ideia inicial.
Como foi o trabalho de pesquisa e produção para a obra?
Comecei a escrever sobre a vida e a obra de Marília Mendonça no dia seguinte à sua morte. O ponto de partida foi uma entrevista que fiz com ela em 2016. Eu queria apenas resgatar a nossa conversa, transformá-la em prosa e publicá-la no meu blog. Porém, no decorrer da produção, senti a necessidade de checar ou ampliar informações. Falei com fãs e com músicos que trabalharam com a cantora, como o violonista Marcelo Modesto, de quem sou amigo. Vasculhei as redes sociais da Marília e de pessoas próximas a ela. Três meses depois, estava imerso em uma montanha de textos publicados na imprensa nos últimos dez anos – período compreendido entre o início de sua carreira de compositora profissional e o fim de sua existência física. Consultei centenas de reportagens, artigos, entrevistas e críticas sobre a Marília, assisti dezenas de vídeos e ouvi com atenção toda a sua obra gravada. O maior desafio foi juntar essas informações esparsas, encaixando-as de modo a criar um enredo e contar uma história, como as peças de um quebra-cabeça.
O ponto de partida que você escolheu para o livro foi a data do acidente fatal para depois reconstituir sua trajetória. Por que optou por essa ordem?
Escolhi começar a história pelo final numa tentativa de dar um toque “cinematográfico” à estrutura narrativa do texto. Eu não queria contar a história de Marília Mendonça de forma óbvia, em ordem cronológica, justamente para não ter que encerrar o livro com o episódio do acidente aéreo. Marília viveu tudo com muita intensidade e concluí que seria mais coerente terminar o livro de um modo mais generoso, mostrando o quanto a sua vida se misturava à sua obra. O último capítulo se chama “O Sentimento do Mundo” porque ela dizia sentir a dor alheia como se dela fosse – e esse era o segredo de suas composições.
Conhecida como “Rainha da Sofrência”, você descreve Marília Mendonça como “uma artista revolucionária dentro de seu segmento”. O que levou Marília ao auge do sucesso em tão pouco tempo?
É claro que não se pode descartar o investimento feito pela Workshow no lançamento de sua carreira de cantora. Ter o respaldo de uma grande agência conta muito no atual mercado da música. Mas isso não explica tudo, pois muitos artistas também tiveram um “padrinho” e não vingaram. Além disso, a própria Marília dizia que ela se lançou com o investimento mínimo, algo em torno de R$ 1 milhão – valor suficiente para gravar o DVD e bancar participações em programas de rádio e TV durante um curto prazo. O fato é que Marília se consolidou na cena musical graças ao seu enorme talento. Além de ter um timbre diferenciado – o contralto coloratura, considerado o tipo de voz feminina mais raro que existe – ela compunha músicas com refrãos fáceis, mas sem abrir mão da poesia. Quando ela surgiu, o mercado da música sertaneja estava saturado. Havia uma oferta grande de canções parecidas, que falavam de assuntos repetidos, como baladas ou coisas assim. E Marília chega misturando rock, bolero e forró eletrônico. As letras dela também traziam uma perspectiva nova: o olhar da mulher sobre temas que antes eram abordados apenas pelos homens, ou por mulheres que cantavam exatamente o que os homens queriam escutar. Ela era uma artista original e isso talvez explique a rapidez com que subiu tão rápido no conceito do público, sobretudo o feminino.
Você teve sua primeira e única conversa com Marília em 2016. Como foi esse contato com a artista e o que você se recorda sobre essa conversa?
Marília tinha uma capacidade incrível de deixar qualquer pessoa à vontade perto dela. Ela era uma menina na época, não tinha mais do que vinte anos, mas falava com propriedade sobre uma série de coisas. A minha impressão foi de que ela era muito madura para a sua idade. Ao mesmo tempo, esbanjava uma alegria típica da juventude. Marília me contou um pouco de sua infância, de como compunha e de como foi concebido o álbum de estreia. Tinha um papo tão agradável que me deu vontade de ser amigo dela.
No livro, você aborda um aspecto pouco conhecido da vida de Marília, que é o gosto pela literatura. O que mais lhe chamou atenção nesta questão?
A relação dela com os livros começou no colégio. Na transição da infância para a adolescência, Marília era uma garota tímida e quase não tinha amigos. Ela era alvo de bullying também. Sem motivo aparente, meninas maiores batiam nela, xingavam… E ela se refugiava na leitura. Ficava lendo no fundo da classe, protegida do mundo lá fora. Depois que aprendeu a tocar violão e passou a levar o instrumento para a escola, virou a popular da turma e a timidez foi embora. O gosto pelos livros, porém, continuou intacto. Um dos autores preferidos de Marília era o alemão Charles Bukowski. O clássico da literatura norte-americana “On The Road”, do Jack Kerouac, era seu livro de cabeceira. Dos escritores brasileiros ela gostava de Caio Fernando Abreu e era leitora compulsiva de biografias.
Na obra, você também apresenta um poema que Marília escreveu aos sete anos para a dona Ruth. O que esse texto revela sobre como era a relação de Marília com a mãe?
Ela escreveu uma cartinha para a mãe que dizia: “Às vezes a lua tem forma de vírgula para que nem no infinito o meu amor por você tenha ponto final”. Já era possível perceber a intenção poética nessa escrita singela – e a forma como a menina admirava a mãe. Dona Ruth era o anjo da guarda de Marília. Ela é quem defendia a filha do bullying que ela sofria no colégio, que a apoiou quando ela disse que queria cantar na noite… Marília dizia que a mãe era a sua maior referência e que havia se tornado uma mulher forte graças a ela. De fato, dona Ruth exercia grande influência sobre Marília, pois o pai da menina morreu quando ela ainda era pequena.
Você chegou a fazer contato com a mãe de Marília durante a produção deste livro? Sabe se ela teve acesso a ele?
Infelizmente não. Porque, como eu disse anteriormente, a minha ideia inicial não era escrever uma biografia, no sentido estrito do termo, mas um texto em homenagem à Marília, que partisse da análise de sua obra para contar a sua história. Acontece que as coisas tomaram outro rumo durante a processo de produção, dada a riqueza do material reunido, e preferi contar essa história a partir do que já havia sido publicado na imprensa. Mas eu gostaria muito de poder conversar com a dona Ruth, para incluir no texto passagens que só ela tem na memória e que certamente tornariam o livro muito mais interessante. Quem sabe isso não aconteça num futuro próximo, pensando em uma edição revista e ampliada?
Mesmo um ano após sua morte, Marília nunca deixou de estar entre os principais nomes das paradas musicais. O que isso demonstra?
Isso demonstra que Marília Mendonça foi maior do que o gênero musical que abraçou. Geralmente, com as exceções de sempre, artistas sertanejos têm curta durabilidade e vão da fama ao ostracismo muito rapidamente. Não me parece ser o caso dela. É claro que só o tempo dirá – ainda é cedo para dizer qual é o tamanho exato de Marília dentro da música brasileira –, mas a minha impressão é de que seu legado permanecerá vivo por muitos e muitos anos, como ocorre aos artistas que tocam o coração do público de uma forma especial. O povo brasileiro ama Marília Mendonça porque ela cantava histórias baseadas em fatos reais, que realmente acontecem com muitas pessoas, e porque nunca se preocupou em manter uma postura distante de artista. Ela foi autêntica até o fim e as pessoas perceberam isso.