A QUESTÃO NÃO ESTÁ EM PAUTA
Margareth Maciel de Almeida Santos
Doutora em Sociologia Política (IUPERJ)
Membro do Instituto Nacional dos Advogados do Brasil (IAB-RJ)
O tema reforma tributária está sendo muito discutido nos últimos meses. E por mais que seja um tema que afete a vida de muitas pessoas diretamente, ele está sendo pouco debatido pela sociedade civil. É importante dizer aqui que a reforma tributária não foi aprovada pelos senadores no primeiro semestre de 2022, mesmo que o presidente da Constituição e Justiça (CCJ), o senador Davi Alcolumbre (União-AP), prometeu que a reforma tributária teria prioridade na comissão. (Senado Notícias).
Dessa vez então, resolvi fazer algo diferente e entrevistar, minha filha, Gabriela Maciel Duarte Santos, tributarista e especialista no tema, para que ela possa trazer um panorama da situação e nos situar do momento em que está a discussão.
Gabriela, gostaria que você se apresentasse e falasse um pouco sobre as propostas de reforma tributária que estão sendo discutidas hoje no Congresso.
Antes de tudo, gostaria de dizer que é um prazer está aqui hoje, falando de um tema que é muito especial para mim e muito importante para toda a sociedade. Sou sócia do Maneira Advogados, escritório que tem sede no Rio de Janeiro e filiais em Belo Horizonte, São Paulo e Brasília, e atuo na área tributária com foco no contencioso e consultoria de tributos desde 2016. Hoje sou Mestranda em Direito na linha de desenvolvimento e políticas públicas da PUC Minas, além de ter assumido, recentemente, a coordenação do curso de pós-graduação de Direito Tributário e Aduaneiro também na PUC Minas.
Falar em reforma tributária não é novidade. Desde a redemocratização, em 1988, foram inúmeras tentativas feitas por diversos governos para que fosse aprovada uma reforma tributária ampla. Podemos citar, por exemplo, as tentativas de reforma fiscal no governo Collor, apresentada pela Comissão Executiva de Reforma Fiscal, mas que não foram para frente por causa do impeachment sofrido pelo então presidente.
Ocorreram tentativas de reforma também ao longo dos governos Itamar, FHC e nos dois primeiros governos do presidente Lula. Contudo, diante da dificuldade de negociação no Congresso Nacional entre os mais diferentes entes envolvidos na questão, o que se viu foi a aprovação de algumas modificações menores, mas nunca algo mais amplo.
No governo Bolsonaro, a questão voltou com tudo. Foram apresentadas duas Propostas de Emenda Constitucionais, quais sejam, a PEC 45/2019 e a PEC 110/2019, a primeira em trâmite na Câmara e a segunda em trâmite no Senado. As duas têm como objetivo mudar toda a tributação que incide sobre o consumo das pessoas (e que, hoje, afeta muito as pessoas de baixa renda) e reduzir a complexidade do sistema.
Para que isso ocorra, as duas propostas preveem (além de inúmeros outros pontos) a unificação dos principais tributos que incidem sobre o consumo de bens e serviços, dentre os quais estão o ICMS (Imposto incidente sobre a circulação de mercadorias de competência dos Estados), ISS (Imposto que incide sobre a prestação de serviços de competência dos Municípios) e o IPI (imposto que incide sobre a industrialização de produtos de competência da União), em um só, qual seja, o Imposto sobre bens e serviços – IBS.
E qual o principal impacto dessas propostas na vida do consumidor?
Quando falamos em tributação sobre o consumo, estamos falando de tributos que incidem sobre a compra de bens ou a prestação de serviços.
Se você compra uma mercadoria, embutido no preço dessa mercadoria vai ter um percentual do ICMS. O mesmo acontece se você contrata um serviço de alguém. No preço que você pagar ao prestador daquele serviço, terá um percentual de ISS embutido no valor.
O problema da tributação sobre o consumo é que ricos e pobres pagam exatamente o mesmo valor de tributo quando compram determinado bem ou contratam determinado serviço.
Por exemplo, um pacote de arroz da marca A custa R$ 10,00. Dentro desses R$ 10,00, temos R$1,80 de ICMS embutido. Uma pessoa que ganha um salário mínimo, ao comprar esse arroz, pagará os R$ 10,00 e, por conseguinte, os R$ 1,80 do ICMS. Exatamente o mesmo acontece com uma pessoa que ganha R$ 100.000,00. Ela também comprará o arroz marca A por R$ 10,00 e pagará R$ 1,80 de ICMS.
Ou seja, o preço do arroz vai ser o mesmo para todo mundo e, por consequência, o valor do ICMS também será o mesmo para todos, sejam eles ricos ou pobres.
Como se vê, muitos consideram a tributação sobre o consumo injusta, pois ela não leva em consideração o quanto cada um ganha – ou seja, ela não leva em consideração o que chamamos de capacidade contributiva, como ocorre com as alíquotas progressivas do Imposto de Renda.
Hoje, no Brasil, ricos e pobres, pagam exatamente o mesmo valor de ICMS/ISS/IPI, ao comprar os mesmos bens ou contratar os mesmos serviços. Ou seja, proporcionalmente os ricos pagam pouco imposto sobre o consumo, enquanto os mais pobres pagam, proporcionalmente, mais.
E, infelizmente, as alíquotas desses tributos que incidem sobre o consumo são altíssimas, podendo ultrapassar os 30%, dependendo de cada Estado. Ou seja, se um bem custa R$ 100,00, em alguns casos, R$ 30,00 seria referente aos tributos sobre o consumo.
A própria tributação do consumo é problemática: ela corresponde, no Brasil, a cerca de 43% do total da arrecadação, muito acima do percentual da tributação do consumo dos países que compõem a OCDE – os chamados países desenvolvidos, cujo foco da arrecadação, ao contrário do Brasil, recai sobre o patrimônio e a renda das pessoas físicas e jurídicas.
Diante desse cenário, as propostas de reforma tributária visam, além de simplificar todo o sistema tributário que é muito complexo, corrigir várias distorções que existem hoje e extinguir alguns tributos, unificando vários em um só – o que poderia resultar em uma carga tributária menor para o consumidor.
Além disso, ao unificar tributos que tem a mesma base de incidência, ou seja, o consumo, as propostas de reforma tributária buscam acabar com a competição entre diferentes entes (União, Estados e Municípios). Ou seja, visam acabar com o que chamamos de guerra fiscal. Isto porque, as vezes os Estados entendem que sobre determinado bem incide ICMS; mas, ao mesmo tempo, os Municípios entendem que sobre aquilo, na verdade, incide o ISS. Fora o IPI da União que também está presente em muitas situações.
Isso leva à uma situação de dúvida que pode colocar o consumidor em maus lençóis.
Além disso, no âmbito das propostas estão sendo discutidos mecanismos de devolução dos tributos pagos sobre os produtos consumidos pelas parcelas de menor renda da população. Ou seja, voltando para o exemplo do arroz, o consumidor que ganha um salário mínimo, comprovando a situação de baixa renda, poderia pedir de volta os R$ 1,80 pagos ao comprar o alimento.
Esses mecanismos, contudo, ainda estão em fase de estudos e as propostas, ainda em fase de aprovação pelo Congresso Nacional.
Se o objetivo das propostas é bom para o consumidor, principalmente de baixa renda, qual a dificuldade em aprová-las?
Puramente política. Como eu disse anteriormente, essas propostas de reforma tributária ampla envolvem todos os entes (União, Estados e Municípios) que possuem interesses distintos. Além de envolver diferentes setores da economia que também estão submetidos aos impactos dessas propostas.
Por exemplo, caso os tributos sobre o consumo fossem unificados no IBS, os Estados perderiam a arrecadação direta do ICMS e os Municípios perderiam a arrecadação direta do ISS. O IBS seria um tributo federal e os Estados e Municípios dependeriam mais de repasses feitos pela União. Os valores e a forma desses repasses certamente estariam previstos em lei, com a devida segurança jurídica. Contudo, mesmo assim, os entes alegam que poderiam haver perdas na arrecadação, o que gera certa desconfiança e dificuldade em se chegar a um consenso.
De todo modo, pelas últimas notícias veiculadas na mídia, parece que o novo Ministro da Economia, Fernando Haddad, está empenhado em fazer com que essas propostas sejam aprovadas logo, ainda no primeiro semestre de 2023 (https://www.cartacapital.com.br/economia/os-proximos-passos-da-reforma-tributaria-prioridade-de-lula-e-haddad-no-1o-semestre/). Vamos acompanhar as cenas dos próximos capítulos.
As prefeituras, como a Prefeitura de Caratinga, poderiam perder arrecadação com a aprovação dessas reformas?
A princípio não. Hoje, a principal fonte de arrecadação das prefeituras é o ISS. A regra geral de arrecadação do ISS diz que o imposto será pago para o Município onde está localizado o prestador do serviço (tributação na origem). Por conta disso, a arrecadação desse imposto fica muito concentrada nos grandes municípios, já que são neles que estão situadas as sedes da maioria das empresas prestadoras de serviço.
Nas propostas de reforma tributária, essa concentração da arrecadação do ISS para os grandes municípios tende a mudar. Isso porque, o objetivo do IBS é tributar os bens e serviços com base no princípio do destino. Ou seja, o imposto não vai ficar mais para a cidade onde está situada a empresa, mas sim para a cidade onde está situado o consumidor.
Essa transição da tributação na origem para a tributação no destino, ajudará a “espalhar” a arrecadação do tributo entre mais municípios, beneficiando os municípios menores. Além disso, haverá um prazo para que essa transição ocorra, para que todos possam se adequar as novas regras.
Para terminar nossa entrevista, qual o recado você deixa para as pessoas sobre o tributário?
A arrecadação tributária é extremamente importante, pois é através dos tributos pagos pela sociedade que a União, Estados e Municípios passam a ter recursos para instituir políticas públicas e prestar os serviços públicos que tanto dependemos.
Contudo, apesar da importância em contribuir com esses valores, o sistema tributário é muito complexo. Sendo assim, é fundamental que cada um tenha noção do que está sendo cobrado e do porquê está sendo cobrado, para que todos os direitos sejam resguardos. Por isso, aconselho a todos que fiquem atentos às mudanças, conversem com especialistas no assunto, peçam esclarecimentos, pois tudo que impacta no nosso bolso, é relevante.
Gostaria de agradecer a contribuição da Dra. Gabriela, por se tratar de um tema tão relevante principalmente quando há transição de poder e pode promover uma profunda reforma, com o aprimoramento das políticas públicas brasileiras, sobretudo da política fiscal e tributária.
Aproveito para lhes desejarem um bom Carnaval, depois de dois anos sem podermos aproveitar tranquilamente, poderemos sair nas ruas, ir ao clube, ou em casa mesmo. A proliferação de blocos vem aumentando mas vamos aproveitar com cautela e ter a felicidade de curtir bem, sem os excessos esse momento de grande folia.