Entre bumerangues e dominós, Nasi segue chutando pedras e assobiando
Vocalista da banda Ira!, que se apresenta em Caratinga no dia 7 de maio, fala com exclusividade ao DIÁRIO
Por José Horta
DA REDAÇÃO – No próximo dia 7 de maio, às 22h, o Vila Matter receberá o show da banda Ira!. Essa será segunda vez que o grupo vai se apresentar em Caratinga. A primeira vez aconteceu em 13 de maio de 1990. Após quase 32 anos, ou seja, depois de 11.529 dias de luta, uma das maiores bandas do rock nacional pisará novamente em um palco da Cidade das Palmeiras. A expectativa é enorme, afinal nunca estaremos fartos do rock’n’roll.
DOSES DE IRA!
Trabalhar no jornalismo tem lá suas vantagens. Uma delas é ter contato com pessoas que admiramos. Mas é justamente nessas horas que existe um conflito entre o lado profissional e o lado pessoal. Afinal, como ser sucinto quando se quer falar muito? Como elogiar sem cair no pedantismo? Sendo assim, deixo a emoção falar mais alto, pois sempre tomei as minhas ‘doses cavalares de Ira!’ ao longo da minha vida.
Ira! sempre foi uma das minhas bandas favoritas. E como na minha adolescência, ‘plagiando’ Nick Hornby no livro ‘Alta Fidelidade’ (Ed. Rocco), página 133, pelo menos uma vez gostaria que a minha vida fosse igual uma canção do Ira!. Sei que não fui convocado para o serviço militar, nunca estive nos bares da Vila Madalena, não frequentei o Napalm ou Madame Satã. Fui criado na rua Major João Gualberto, em Bom Jesus do Galho, sendo assim, não pus meu capote na ruas pra me sentir bem. Sei que a banda sempre captou a rotina do jovem paulistano, mas mesmo diante de tantas diferenças, os sentimentos não podem ser tão diferentes, afinal quantas vezes mudei de comportamento e segui vivendo e não aprendendo, sempre cometendo os mesmos erros. Enfim, cometi as mesmas ‘Tolices’ da canção homônima do Ira!, também queria ouvir muito, mas os pais sempre me disseram o essencial. E por isso sou eternamente grato a eles. Felizmente, seu Juca e dona Cotita não eram verborrágicos.
Em minha opinião, os três primeiros álbuns do Ira! são os melhores. “Mudança de Comportamento” (1985), “Vivendo e Não Aprendendo” (1986) e “Psicoacústica” (1988) são fundamentais para entender o rock feito no Brasil, onde peso e melodia ajudaram a pavimentar esse estilo em nosso país. O Ira! sempre soube ser contemporâneo.
A banda tem ainda outras facetas, como valorizar seus primórdios, caso de “Clandestino” (1990), resgatar as amizades em “Meninos da Rua Paulo” (1991). Descobrir novos talentos, como gravando Júpiter Maçã (Miss Lexotan), Frank Jorge (Homem de Neanderthal). E me fala qual banda é capaz de colocar num disco só Ronnie Von, Ritchie, Walter Franco e Legião Urbana? O Ira! fez “Isso É Amor” (1999) numa das belas homenagens ao pop rock nacional. E uma parcela da nova geração pôde conhecer a banda através do aclamado “Acústico MTV” (2004), que contou com a participações de Samuel Rosa, Pitty e Paralamas do Sucesso.
E como se não bastasse, “Invisível DJ” (2007) é um álbum que tem entre seus admiradores Ed O’Brien, guitarrista do Radiohead. “Comprei o último disco deles e adorei”, revelou O’Brien numa entrevista concedida ao Fantástico em 2009. E “IRA” (2020) só atesta que a banda tem ainda muito a nos dizer.
NASI
Marcos Valadão Ridolfi, o ‘Nasi’, é o vocalista do Ira!. Sua vida se confunde com o rock feito em São Paulo. Ele levou ao extremo a tríade da fama. Veio do underground, atingiu o estrelato, até sua ‘roupa suja’ foi lavada em público, com direito a matéria no “Fantástico”. Mas sobreviveu e como canta no último álbum: “Muito bem acompanhado/De meu eu sozinho/E sigo pela calçada/Chuto pedras e assobio”.
E é o Nasi de bem com a vida que conversou com o DIÁRIO. Muito bem-humorado, falou de sua trajetória, citando inclusive a sua outra banda, Voluntários da Pátria, comentou os novos rumos da indústria fonográfica e do Brasil atual que anda nada cordial. Por fim, fez uma convocação para o show do dia 7 de maio, onde todos seremos bem-vindos.
Houve um hiato de 13 anos entre ‘Invisível DJ” e o álbum lançado em 2020. O que levou a banda a lançar este álbum em plena pandemia?
Pois é, houve esse hiato, né? Devido à nossa separação, isso todo mundo sabe. Na verdade, nós não lançamos o álbum na pandemia, esse álbum ficou pronto praticamente em janeiro de 2020. Quando lançamos o primeiro single, que começaram os primeiros sinais de pandemia, que ninguém sabia na época onde ia dar. Então, vejam só, se a gente não lançasse o disco e esperasse acabar a pandemia, esperaríamos dois anos, quer dizer, perderia qualquer sentido. Infelizmente, fizemos o menos pior. E o disco foi lançado em meio a uma pandemia, acho que foi uma oportunidade mesmo das pessoas em lockdown, em quarentena, tiveram oportunidade de ter um trabalho novo do Ira! para consolar sua solidão.
Os fãs, geralmente, são saudosistas, porém o Ira! sempre ousou e buscou novidades. Como resolver essa equação e todos ficarem bem?
Esse é um grande dilema artístico, em todas as áreas, né? Mas, eu acho que apesar do Ira! já teve discos que flertou com a música eletrônica, hip hop, com a MPB, mas, acho que o Ira! até pela idade que nós temos, tempo de história, temos uma maneira clássica de fazer rock. Temos um estilo inconfundível de fazer rock, então, acho que isso faça o que a gente fizer, tenha a influência fora do rock que tenha, ela vai ter sempre a nossa marca.
Nota-se, que ao contrário de alguns artistas, o Ira! soube amadurecer. De ‘Efeito Bumerangue’ à ‘Efeito Dominó’, o que mudou na forma de pensar em vocês?
Nunca tinha pensado nesse paralelo entre ‘Efeito Bumerangue’ e ‘Efeito Dominó’ (risos). Então, vamos tentar até falar de uma maneira filosófica. Acho que antigamente, obviamente, pela juventude, nós éramos mais, recebíamos às vezes o bumerangue de volta na nossa cabeça (risos). E hoje em dia, assim como o efeito dominó, nós temos uma maturidade para saber que as coisas têm uma progressão natural, construindo a nossa carreira passo a passo ou peça a peça.
Voltando ao início da banda. Nos anos 80 era considerado difícil um grupo de rock ter um contrato com uma gravadora. E agora, diante da internet, facilitou a divulgação ou acirrou a disputa por espaço, frisando que o Ira! já tem seu público cativo?
Nos anos 80, principalmente no início, o que as gravadoras procuravam era um rock irreverente, coisa mais comercial, com todo respeito aos artistas, mas, coisas como “Tic-Tic Nervoso” [canção da Banda Magazine], o som da Blitz. Só que já estava acontecendo nas garagens e nos porões de Brasília, de São Paulo, de outros estados, um som mais diferente, como Ira!, Legião, Capital, Titãs. Isso aos poucos começou a tocar no rádio, um rock mais existencialista, um rock mais questionador. Hoje em dia, como você falou, um artista não precisa de filtros mais para lançar seu trabalho, não preciso do filtro de uma direção artística de uma gravadora, de uma direção artística de uma rede de rádio, ele vai diretamente ao seu público. Por outro lado, isso também complicou pra nós, porque é muita quantidade, às vezes a gente olha que os filtros são importantes também, se forem filtros de qualidade. Mas, quando essa revolução digital aconteceu o Ira! já era uma banda já com um público bem considerável, cativo, então, não sofremos o que os artistas jovens de rock vêm sofrendo.
É difícil se adaptar às novidades do meio fonográfico, mesmo tendo passado tanto tempo convivendo com ele, mas vendo tudo mudar tão rapidamente?
É difícil, por exemplo, o Ira!, antes de lançar esse álbum novo, poderíamos ter lançado singles, como hoje os artistas fazem, eles não se prendem a fazer uma coisa de um álbum, de um disco, vão lançando músicas, né? Porque a gente ainda pensa num trabalho musical como um todo, à moda antiga, um disco, uma coleção de músicas, que falam entre si, conversam entre si e têm uma homogeneidade estética, que tem capa, as letras, tudo. Foi por isso que nós esperamos também muito tempo para lançar um disco, porque a gente queria uma coleção, conjunto de músicas, que juntas fossem quase como uma ópera vamos dizer assim, num bom sentido, sem pretensão. E nesse ponto, tudo bem que agora, recentemente, vem ressurgindo o vinil, não a forma antiga de mercado de massa, mas, é bacana a gente hoje poder ver nossos discos, que nem o do Ira! que deve sair também agora em vinil, num vinil de qualidade, numa capa, tudo isso são coisas que a gente ainda é preso. A gente ainda curte fazer.
Você participou de uma banda seminal, Voluntários da Pátria. Esse grupo tem o devido reconhecimento?
Foi até bom você perguntar, porque agora está saindo duas músicas novas dos Voluntários, da formação original, aquela que gravou os discos, eu, o Ricardo Gaspa no baixo, Giuseppe Frippi na guitarra, Miguel Barella na guitarra, Thomas Pappon na bateria. Mesmo à distância, nós gravamos duas músicas novas, uma chama “Ainda Estamos Juntos” e outra chama “O Voluntário”. Elas estão saindo agora, a partir do dia 8 de abril, nas principais plataformas digitais. A gente conseguiu fazer um som mesmo que de uma maneira com timbres mais atuais, muito fiéis ao nosso disco, para quem é fã daquela banda que foi realmente pioneira num novo Rock independente, no pós-punk paulista. Tenho muito orgulho, foi o primeiro disco, álbum mesmo que eu gravei, o Ira! ainda estava preso aos contratos da gravadora e para quem é fã dessa banda, vai ter oportunidade de ver novidade.
Claro que muitos títulos de músicas provocam reflexões. No caso, neste último álbum uma faixa me chama atenção. Então, por que “O Homem Cordial Morreu”?
Bom, isso é uma alusão meio um pouco de cinismo, a frase atribuída ao Sérgio Buarque de Holanda, que o brasileiro é antes de tudo um homem cordial, porque, a gente tá vendo que não é, né? O Brasil, infelizmente, na sua história, que agora está sendo reescrita, vamos dizer assim, foi um país sangrento. Um país de genocídio indígena, um país de guerras brutais como Canudos e, também, no Sul (Guerra do Contestado), revoltas, de escravos. Então, o Brasil não é aquele mito do Brasil democracia racial, tudo isso daí é uma grande mentira. E, nos tempos de hoje, de polarização e da volta de uma extrema direita no poder, a gente vê como o mundo, as redes sociais, o dia a dia, está completamente bestializado, está completamente incivilizado. Então, essa música fala exatamente sobre isso.
O Ira! tem show em Caratinga no dia 7 de maio. Qual o seu recado para os fãs, afinal a banda só se apresentou aqui uma vez, em 1990.
Bom, vai ser um prazer, né, pessoal, voltar a Caratinga depois de tanto tempo e num momento também especial da banda, porque estamos aí numa turnê que comemora 40 anos de história. E, também, com músicas novas pra mostrar para o público. Então, o público vai ter oportunidade de ver um show bem panorâmico da nossa história. Nesse show a gente toca pelo menos uma música de cada álbum do Ira! e devemos tocar pelo menos umas três ou quatro do nosso trabalho recente. Então, estamos bem ansiosos por esse show.
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13 DE OUTUBRO DE 1990
Muitos dos que estão lendo essa matéria nem eram nascidos em 13 de outubro de 1990. Pois foi nesse dia que o Ira! se apresentou em Caratinga. O show fez parte do Faficanto e aconteceu no pátio do Unec. O evento foi promovido pela Transart Ltda e contou com Belchior no dia anterior.
No sábado, quando houve o show do Ira!, ainda se apresentaram músicos que participavam do festival e a banda Santo Grau.
Ira! ficou hospedado no ABC Hotel. Na porta, um grupo de fãs aguardava pelos autógrafos. Eram outros tempos, não tínhamos celulares e fazer foto era algo muito raro. Dentre esses fãs, lá estava eu acompanhado dos amigos Edmundo Neto, Fernando Pio, Kiko e Paulinho da Neneca. Nós fretamos um táxi em Bom Jesus do Galho para assistir ao show em Caratinga. Me recordo de pessoas de outras cidades que lá também estavam, como um grupo de Ipatinga e outro de Carangola, que tinha um jovem que era fanático pelo rock feito em São Paulo, tendo citado dentre suas preferências Violeta de Outono e Vzyadoq Moe.
Nasi foi o primeiro a aparecer. Com uma camisa do Shazam, conversou com a galera, perguntou como era a vida em Caratinga e distribuiu autógrafos. Depois veio o guitarrista Edgard Scandurra, que agiu da mesma forma e ainda falou sobre futebol. Dias antes, a Rede Manchete exibiu um especial do Ira! e Edgard usava uma camisa da seleção inglesa. Ele afirmou que gostava do futebol de Gary Lineker e David Platt. Antes de entrar no carro que os levaria até a Unec, Nasi ainda falou: “O André (baterista) e o Gaspa (baixista) estão descendo. Mas não se assustem com o Gaspa, pois ele não é muito de dar autógrafos”.
André e Gaspa demorariam um pouco. Tanto é que o irmão do baterista, Paulo Jungman, passou e chegou a ser confundido com ele. “Não sou eu”, disse sorrindo diante do equívoco dos fãs. Depois surgiram André e Gaspa. O primeiro foi super simpático e também distribuiu autógrafos. Gaspa passou batido, mas, não de um jeito arrogante. Em seu semblante parecia se desculpar por ser assim mais recluso. Mas, mesmo assim, ficamos extasiados. Assim a longínqua distância que nos separa de São Paulo havia sido quebrada.
E o show foi galgado no repertório de “Clandestino”, que acabava de ser lançado. “Tarde Vazia”, “Efeito Bumerangue”, “Boneca de Cera” e a faixa-título estiveram no repertório. Mas não faltaram “Flores em Você”, “Receita Para se Fazer um Herói” e “Dias de Luta”. Houve um momento até inusitado, afinal muitos pediram “Pobre Paulista”, o que levou Nasi a questionar: “Tem muito paulista aqui?”
Só após o show, embora estivéssemos inebriados pela música, é que fomos tomar a nossa cerveja. Encontramos o amigo Abatiá, que já era influencer antes desse termo existir, que nos disse: “dessa vez vocês não ‘capotaram’, uai”. A galera pegou leve, afinal no dia anterior, enfiamos o ‘pé na jaca’ e não conseguimos ver o show do Belchior e mesmo os que viram têm uma parca lembrança.
Como o táxi era só de ida, fomos para a rodoviária de Caratinga. Entramos em um ônibus para Bom Jesus do Galho com o dia já amanhecendo. Ninguém disse uma palavra sequer, parecíamos não acreditar que tínhamos visto uma de nossas bandas favoritas.
A vida seguiu seu curso e aconteceu o inevitável: nos tornamos adultos. Ou melhor, passamos a compreender as responsabilidades que incorrem a quem tem mais de 18 anos. Com o passar do tempo, sempre que nos reunimos, falamos desse dia e tentamos nos lembrar daquela sexta-feira (12/10/90) quando os excessos etílicos nos fizeram perder o show do Belchior. Fernando Pio, o único ‘sobrevivente’ daquela fatídica bebedeira é quem nos conta os detalhes. Já para Edmundo Neto, o nome de uma música do The Smiths ilustra o aprendizado, “This Night Has Opened My Eyes” (Essa Noite Abriu os Meus Olhos). Em suma, ficou a lição: se beber não vá ao show.
Agora com a proximidade desse show bateu aquela nostalgia, que é inerente ao processo de envelhecer. Vamos ficando mais velhos e passamos a ter mais saudades ainda de tempos idos. Chega uma época da vida em que a nostalgia é algo tão inevitável quanto a morte. Infelizmente, o Paulinho da Neneca, quem mais curtiu aquela, não está mais entre nós. “Quando seus amigos te surpreendem/ Deixando a vida de repente/E não se quer acreditar”, diz “Vida Passageira” do Ira!.
Para finalizar, cito Manoel Bandeira: “Vida inteira que podia ter sido e que não foi”. Não adianta reclamar por viver e não aprender. Como escreveu Álvaro Pereira Júnior em sua coluna no Folhateen de 16 de dezembro de 1996, chamada “Nasci em 62 e envelheço na cidade”, usando uma típica gíria dos anos 80/90: “Estava tudo lá, mas demorou um pouco para cair a ficha”.
“A ira de Nasi”, livro de autoria de Mauro Beting e Alexandre Petillo. “Nasi não nasceu para ser santo. Nasceu para ser a voz de um pecado capital. Quando foi fundo ele acabou indo além do permitido e recomendado. E, na volta, trouxe com ele tudo que o dragou – do melhor e do pior. Nas travessias ao céu e nas travessuras abaixo do inferno das drogas químicas e das porcarias das pessoas físicas e jurídicas que experimentou, o vocalista do Ira! se tornou homem com todas as letras. Desde as bem feitas e de boa métrica até as malfaladas e malditas. Você ficará vermelho de raiva e de paixão com a história de um dos roqueiros mais polêmicos do Brasil, com tantas tretas que fizeram da vida de Marcos Valadão, este Wolverine brasileiro contraditório e solitário, coisa de ficção, de horror, de comédia e de drama, mas também de muito amor”, diz a apresentação da obra.