“Não diria que é cada época, mas cada regime ideológico escolhe o seu passado”, explica professor Amédis Germano dos Santos.
DA REDAÇÃO – Hoje são rememorados os 55 anos do dia 31 de março de 1964, quando o presidente João Goulart foi deposto e logo em seguida foi instalado o que ficou convencionado chamar de ‘Ditadura Militar’.
Recentemente, a discussão se houve um ‘golpe’ ou uma ‘revolução’ ficou mais acalorada, ainda mais com o país dividido entre esquerda e direita, lulistas e anti-lulistas, prós e contra Bolsonaro. Independente da definição do posicionamento político, o certo é dizer que o brasileiro nunca foi tão avesso ao diálogo como nos dias atuais. Prova maior são as ‘praças de guerra’ em que se tornaram as redes sociais.
Para falar sobre os acontecimentos de 31 de março de 1964, o DIÁRIO conversou com o Amédis Germano dos Santos[1]. É comumente dizer que época escolhe o seu passado, mas para o professor Amédis, essa escolha parte de cada regime ideológico.
Como o senhor avalia os acontecimentos de 31 de março de 1964, foi golpe ou revolução?
As ciências nos ensinam que quando estamos trabalhando com um determinado fato, devemos ter em mente qual o conceito estaremos utilizando na análise do referido ato – neste caso, quero dizer que o ato antecede ao fato; primeiro existe o ato (atirar, por exemplo), depois vem o fato ou consequência – se erra o alvo, nada acontece? Se o alvo for de um estande de tiro, sim; se for um animal, vai depender da situação, pois uma coisa é atirar em um animal em extinção, outra é atirar em um animal para se defender, em um leão por exemplo. Mas se for em uma pessoa vai configurar crime por tentativa de assassinato? Depende!). Nestas mesmas situações, se ele acerta o alvo teremos diferentes fatos conforme o objeto visado: no estande de tiros, em um animal ou pessoa – mesmo nas pessoas, vai depender das condições de serem alvos: involuntárias, voluntárias, preferenciais, aleatórias etc; condições sociais, econômicas, políticas…
Além do mais temos ainda os filtros ideológicos já que um fato pode ter diferentes abordagens: monarquista, republicano, capitalista, comunista, anarquista?
Assim sendo, pergunta-se: o que é golpe e revolução, sob quais pontos de vistas ideológicos?
Um golpe pode ser uma mudança governamental levada a cabo pela elite e detentores do poder em afronta à Constituição legal do país. Entretanto, e se não forem eles os golpistas? Em ambos os casos, como as massas foram mobilizadas? Isso importa porque refletirá na forma como interpretamos a tomada do poder: “ricos subornam; os estudantes se amotinam; os operários fazem greve; a turba faz manifestações de protestos e os militares golpeiam”- definição clássica dada por Samuel Huntington.
Uma revolução é um processo em que o poder é tomado de forma violenta, promovendo drásticas mudanças nas instituições governamentais – como nas revoluções Americana (1776), Francesa (1789), Russa (1917), Chinesa (1949), Cubana (1959), Argelina (1962). Não há que se confundir com o emprego do termo “revolução” para tratar das revoluções: Industrial, Científica, Tecnológica, Agrícola etc., porque nestas o objetivo primeiro não é o exercício do poder político direto – podendo até sê-lo de forma indireta. Lembremos ainda que a “Revolução Nazista” de 1933 elevou Hitler ao poder por meio dos votos da massa; mas houve casos em que a revolução foi feita por um indivíduo: a Turquia de Atatürk em 1921 e o Egito de Nasser em 1952. Percebam o quão é difícil enquadrar uma revolução porque depende de quais instrumentos, as lentes e filtros de que nos valemos para defini-las.
Vendo por este ângulo, temos que os eventos de 31 de março de 64 não se enquadram em nenhum deles. Não restam dúvidas que a elite estava presente nos acontecimentos de 64, mas não esqueçamos que nos antecedentes do ato, foram registrados vários fatos envolvendo manifestações populares pelas avenidas do país: Marcha da família com Deus pela liberdade (de 19/3 a 8/6 de 64) e desfiles da Tradição Família Propriedade -TFP em vários momentos (de 66 a 70). Se não tivemos revolução nem golpe, restam então que no máximo 31 de março de 64 pode ser enquadrado como uma Intervenção Militar.
O jornal O Globo, de 1 de abril de 64, Nº 11.643, trazia a seguinte manchete: “Ressurge a Democracia”. O seu primeiro parágrafo dizia:
“Vive a nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se a todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem.
Graças à decisão e ao heroísmo das Fôrças Armadas, o Brasil livrou-se do Govêrno irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições” (sic).
Após desfile da “Marcha da família..,” o jornal “O Dia” estampou a seguinte manchete: “Fabulosa demonstração de repulsa ao comunismo”. Em um trecho menos à esquerda da folha o título era: “Mazzilli articula composição do governo”. Outras manchetes do evento diziam: O Exército defendeu nesta revolução o mesmo ideal que custou as vida de Tiradentes (O Globo); Repudiemos sem vacilações o comunismo que jamais empolgará o povo brasileiro (Diário de Notícias); Chega de entregar o país ao comunismo ( O Globo); Goulart é responsável direto pela comunização do Brasil (O Globo); e Desordem para chegar a um regime “Sindicalista” (O Globo); Mais de 800 mil pessoas na “Marcha da Vitória” (O Globo; e Tropa liberta a cidade com o apoio do povo ( O Globo). No dia 6/4 o Globo estampava essas manchetes: “A revolução democrática precedeu de um mês a revolução comunista” e “O Brasil põe suas esperanças na coesão das Fôrças Armadas”. O mesmo em 17 de março trazia a seguinte manchete: ¨Brizola tinha a lista dos que seriam mortos se a esquerda vencesse”. (sic).
Como era o cenário político da época do período compreendido entre a renúncia de Jânio Quadros e o início de 1964?
O governo de Juscelino (1956-1961) tem o mérito de ser conhecido como desenvolvimentista porque o aporte de capital que veio para o Brasil ajudou na construção de Brasília, além de ter implantado os instrumentos que possibilitariam a nossa inserção no mundo industrializado, tais como: os aeroportos de Brasília, Cuiabá, João Pessoa, Juiz de Fora, Aracaju e Ipatinga; construção da BR-3, Cosipa, Usiminas, UNB, INPE e Cia de Ferro de Vitória; criação da Sudene e implantação de indústrias automobilísticas.
O crescimento do parque industrial brasileiro atingiu o percentual de 10,3% entre 46 e 61, mas sofreu declínio indo a 2,9% em 67. Sem poder resolver a crise econômica do momento, Jânio permaneceu no poder apenas oito meses; o vice João Goulart assumiu em uma situação delicada, só tomando posse em 7 de setembro de 61 com poderes reduzidos para o regime parlamentarista, que perdurou até 6 de janeiro de 63 quando um plebiscito fez o país retornar ao regime presidencialista. Entretanto, João Goulart não conseguiu tirar o país da crise, o que levou à intervenção militar.
Qual sua opinião a respeito de João Goulart?
Os sábios chineses diziam que os fatos têm três versões: a sua, a minha e a verdade. Sabemos que há várias versões sobre o governo de Goulart; como a história é viva, está sempre aparecendo algo novo sobre o seu governo, pois dependemos muito de documentos que nem sempre estão à nossa disposição ou, quando estão, revelam apenas a percepção de quem os confeccionou com os seus filtros.
A despeito da turbulência pela qual passou enquanto tentava manter-se no poder, Goulart não teve o apoio da UDN que ajudou a eleição de Jânio Quadros, pelo contrário, os lacerdistas foram críticos ferrenhos de sua posição em relação à aproximação da diplomacia brasileira dos países do bloco socialista encabeçado pela ex-União Soviética. Entendo que faltou a ele saber articular os interesses de uma nação espremida entre o arcaísmo rural conservador e o modernismo urbano que se avizinhava durante a revolução tecnológica e aeroespacial – produtos da Guerra Fria.
Ele errou em confiar nos sindicalismos pelegos, arcaicos e ruralistas bem como na criação de uma autarquia para o controle dos preços, a malfadada SUNAB. Errou ainda em tentar o retorno fomentando ideais partidários estando no exílio, coisa que só foram bem sucedidas com o Gal. De Gaule da França (porque teve o apoio do Ocidente no período da 2ª Guerra, mas perdeu-se no governo por insistir na colonização da Argélia) e do Ayatolah Rurhollah Komeini (que retornou de Paris em 1979 para depor o Xá do Irã Mahammad Reza Pahlavi).
Existia mesmo chance do Brasil ser um aliado da União Soviética, daí a preocupação dos Estados Unidos? Os Estados Unidos agiram nos bastidores?
Existiam grupos armados de esquerda que alimentavam esta esperança. Basta ver que eles recebiam treinamento em Cuba, e não em Pequim. O socialismo do momento estava dividido entre URSS e China, mas esta última nunca esteve sob o guarda-chuvas de Moscou, pelo contrário, repudiou por várias vezes a tentativa de aproximação soviética: trocaram farpas em 58, 59, 60 e 62. Neste ano os russos ficaram neutros durante a Guerra sino-indiana, mas os chineses também assim se comportaram quando da crise de mísseis de Cuba, no governo de N. Khrushchov. Então, se havia algum perigo certamente seria a URSS.
Quanto à posição americana, lógico que estavam por trás dos bastidores o tempo todo, quer por ter interesses comerciais, quer por ter interesses políticos e estratégicos – lembremos que a Doutrina Monroe foi um aviso de que “a nação iria à guerra para preservar o continente americano”[2].
Esse período ficou marcado como ‘Ditadura Militar’, mas houve adesão de civis. Por que essa participação não é devidamente creditada?
O termo ditadura evoca um ato de tomada do poder de forma opressora, ilegítima e arbitrária bem como a sua administração. Mesmo em detrimento do fechamento do Congresso, temos de considerar que houve abertura para eleições nas três esferas da federação – haverá os que irão falar em prisões e torturas, mas revisem a literatura dos períodos democráticos que encontrarão prisões em condições piores que na ditatorial. Houve censura sim, mas revisem as posturas de alguns de nossos congressistas hodiernos e mesmo magistrados das altas cortes e verão coisas escabrosas.
A participação de civis não é criticada porque se der palavras a ela, haverá um esvaziamento da expressão “ditadura militar”. O problema do crédito está na visão de quem diz o que sobre o referido momento. Você não pode esperar isso de uma imprensa que só tem olhos para a bandilotria perversa, políticos perdulários e jogadores de futebol de quinta categoria. O que nos falta são pesquisadores que nos digam como foram as coisas, e não jornalistas que dizem o que acham o que elas foram. Digo sempre aos meus alunos que o difícil não é interpretar o interpretado, mas interpretá-lo.
Existiu algum ponto positivo nesse período compreendido entre 1964 e 1985? Quais os negativos?
Tivemos muitas coisas positivas no arcabouço do desenvolvimento político da Nação. A lista é enorme, mas vejamos aquelas que contribuíram para formar a infraestrutura brasileira, por ordem cronológica: no ano de 64: criação do Banco Central e Fapergs; no ano de 65: criação da Engesa, Centro de Lançamento Barreira do Inferno e a ETE – Escola de Telecomunicações e Eletrônica de Santa Rita do Sapucaí; no ano de 66: criação da Unicamp; no ano de 67; criação do Finep e Aeroporto de Teresina; no ano de 69: criação do IME; no ano de 70: criação da Base Aérea de Anápolis e Aeroporto de Porto Velho; no ano de 73: criação do Aeroporto de Boas Vista e da Embrapa; no ano de 74: inauguração da Ponte Rio-Niterói; no ano de 75: a criação do Proálcool e da Usina de Itaipu (inaugurada em 82) e Projeto Radam; no ano de 76: criação do Aeroporto de Manaus e vinda da FIAT Automóveis; no ano de 78: criação do Polo Industrial de Camaçari/BA; no ano de 80: criação da Faperj; no ano de 83: criação do Centro de Lançamentos de Alcântara; no ano de 84: criação do Aeroporto de Confins.
Vejam que estes órgãos nos deram modernidade, prosperidade empregos, locomoção e ligação com o resto do planeta; até mesmo as incipientes pesquisas sofreram a influência da criação das FAP’s – Fundações de Amparo às Pesquisas, dos Estados da federação.
O que houve de negativo foi terem negligenciado a multiplicação das ferrovias em detrimento das rodovias. Há rodovias que só causaram, e ainda causam problemas: BR-230 – Transamazônica; BR-174 – Manaus Boa Vista; BR-210 – Perimetral Norte, BR-163 – Cuiabá Santarém. Houve ainda o Projeto Jari de 1967 que foi, em princípio, um grande fiasco.
Agora o presidente Bolsonaro determinou que sejam feitas as ‘comemorações devidas’. Ele quer reescrever a história ou tem razão nesta determinação?
Eu não diria que ele seja um revisionista da história porque tem muita coisa para ser construída neste país. Ele foi militar da Academia das Agulhas Negras e conhece bem uma versão dos atos que originaram 64. Reavaliações e reformulações críticas em relação aos fatos exigem que sejam feitos por pessoas especialmente treinadas e capacitadas para lidar com os problemas a serem revistos. Digo que no Brasil isso é impossível porque não temos uma tradição séria no que se refere à guarda de documentos da nossa história. Os nossos governos ora são ignorantes quanto à guarda documental, ora são maléficos para com eles, destruindo-os a seu bel prazer. É fato comum vermos os documentos serem taxados de Super-secretos, Secretos, Super-confidenciais, Confidencias, Super-sigilosos, Sigilosos e outras coisas mais, por pessoas que não têm a mínima noção do que estão fazendo. Muitos documentos são forjados ou mutilados numa clara tentativa de silenciar a verdade. Voltando à sapiência dos chineses: entre a minha e sua versão, a verdade não tem como se manifestar porque foi destruída em seu conteúdo.
Acredito que ele tenta trazer à luz um pouco de atos e fatos, porque o que temos está muito ideologizado e deturpado em função de uma burocracia esquerdizante e retardada.
Sempre a história está sendo revisada. Cada época escolhe seu passado?
Não diria que é cada época, mas cada regime ideológico. A direita tem seus óculos e seus filtros, mas a esquerda tem também sua cegueira incorrigível: não lê, mas decora frases padrão que pensa servir para encaixar em qualquer situação.
Quando vemos que a média de leitura do brasileiro é de 2,4 livros/ano, que 40% do brasileiro não lê e 30%[3] nunca comprou um livre sequer; e 70% destas leituras estão na Bíblia. Então eu pergunto: vocês querem revisar o que? Como? Quando? De que forma? Com base em que?
Se eu aceitar a tese de que cada época escolhe seu passado, aqui no Brasil tivemos um revisionismo exacerbado com o advento do Positivismo após a implantação da República em detrimento da Monarquia. Chamei de implantação porque não foi uma proclamação, mas uma grande negociata com tempo certo e baile de despedida[4], em 9 de novembro de 1889, com 4.500 convidados, 150 copeiros, 90 cozinheiros; comeram faisões, inhambus, e macucos – e o povo macaqueiro não convidado, pagou a festança, é claro, a um custo de 250 Contos de Réis (algo em torno de R$ 9 milhões na moeda de hoje) – o equivalente a 10% do orçamento do Rio de Janeiro na época.
O nosso tão debochado do Grito do Ipiranga dado por D. Pedro I, no dia 7 de setembro de 1822 não existiu, ainda mais para aqueles que estão acostumados a ver o Imperador montado em um cavalo enorme. O primeiro problema a ser revisado reside na data porque o processo da Independência foi assinado no dia 2 de setembro, pela Imperatriz Leopoldina, em uma sessão Extraordinária no Conselho de Estado, com o apoio de José Bonifácio de Andrada e Silva – neste momento Pedro estava escondido em São Paulo para não ser preso pelos portugueses. Quanto ao cavalo do Pedro, também não existiu porque estavam montados em burros e provavelmente jumentos. O quadro da Independência foi encomendado a Pedro Américo por Pedro II em 1888, para exaltar a monarquia – afinal a liberação dos escravos o deixou em maus lençóis com os Barões e a Igreja escravocratas. A mais, a cena é nada menos que uma cópia da pintura do francês Jean-Louis Meissonier, que retratou a vitória de Napoleão Bonaparte da batalha de Friedland (Rússia), em 14/06/1807 – os tipos de cavalos seriam provavelmente austríacos.
Só para encerrar repensemos o papel do Zumbi dos Palmares, mas antes leiam bastante sobre a figura de Ganga Zumba, este sim, o verdadeiro herói.
[1] – Professor Dr. do ICET – Instituto de Ciências, Engenharia e Tecnologia, da UFVJM. Leciona Antropologia, Direito e Relações Internacionais na Graduação da UFVJM ; Metodologia e Filosofia da Ciência no Mestrado em Educação – GIEd, da mesma IES. É graduado em Meteorologia, Ciências Políticas e Direito; Mestre em História das Ciências e Doutor em Comunicação e Semiótica. Autor da obra: “Poder e Violência do Discurso: máquina de guerra, espaço e civilização”, editado pela NEA, em Berlin, Alemanha.
2 – KISSINGER, H. Diplomacia. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1999.
3 – Retrato da Leituras no Brasil, 2016.
4 – Veja de MONTELO, Josué. O Baile da Despedida e BRAGA, C. da Costa . O último baile do Império: o Baile da Ilha Fiscal