Entre o susto e o silêncio: o presente que pulsa

Era uma terça-feira de manhã, bem cedinho. Era mais um dia em que eu acordava antes do nascer do sol, ajustava o capacete, respirava fundo e saia para o meu pedal matinal. Aquele momento era um ritual: o vento no rosto, o cheiro de mato fresco, o canto dos passarinhos e o brilho leve da água nas cachoeiras. Cada curva do caminho parecia conversar comigo. Eu costumava dizer que aquele percurso era o meu templo, o espaço onde eu encontrava sentido para as escolhas que fazia e forças para prosseguir.

Mas naquela terça, algo estava diferente. Talvez o ar estivesse mais denso, ou o silêncio, mais profundo. Eu pedalava tranquila, com os pensamentos leves, quando — de repente — o inesperado me alcançou. Um carro veio pela lateral, rápido demais, e acertou a roda traseira da minha bicicleta. O impacto foi tão forte que me lançou longe. Lembro-me apenas de uma sensação de voo interrompido, de não entender o que estava acontecendo. Depois, nada. Escuridão. Silêncio.

 

Quando abri os olhos, horas depois, já estava deitada em uma maca de hospital. O teto branco me pareceu distante, e o corpo… pesado, dorido, confuso. O sangue ainda marcava a lembrança da queda, e a dor na cabeça parecia gritar que eu ainda estava viva. Passei o dia sem poder beber nem comer nada — e, quando finalmente, à noite, me ofereceram algo simples, aquele alimento teve outro gosto. Era o sabor da vida, puro e essencial.

E foi ali, entre dor e gratidão, que vi o rosto do meu esposo. Vinte e uns anos de caminhada lado a lado. Ele estava ali — mais uma vez. Não para questionar, não para buscar culpados, mas simplesmente para estar. Presente. O olhar dele dizia tudo o que as palavras não alcançam: “estou aqui, e você está viva, e isso é o que importa”.

Soube depois que a motorista que me atropelou visitou o hospital algumas vezes. Eu não a vi, mas me contaram que ela estava em estado de choque, tomada por um estado de ansiedade. Entrou na estrada principal sem perceber que eu estava ali. E essa talvez seja a metáfora mais dura da vida moderna: quantas vezes a gente também entra nas estradas da vida sem perceber o que está à frente, distraídos demais, apressados demais, ausentes demais do agora?

Uma semana se passou desde o acidente. Estou em casa, limitada pelos movimentos, sentindo ainda as dores físicas, embora já tenha retomado minha rotina. Mais principalmente me deixando atravessar pelas dores invisíveis — aquelas que vêm quando o corpo para, mas a mente insiste em revisitar tudo.

Tenho passado dias inteiros apenas refletindo. E é curioso: a dor, quando a gente não foge dela, se torna uma professora silenciosa. Em algum momento, me peguei pensando: “E se, quando tivessem ligado para o meu marido, a notícia tivesse sido outra? E se tivessem dito: ‘Infelizmente ela não resistiu…’?”

Essas palavras, só de imaginá-las, me atravessam como uma onda gelada. Porque o que se segue a uma frase dessas é o fim de tudo o que deixamos para depois. O abraço adiado. O perdão que nunca damos. As palavras que calamos. Os cafés prometidos. Os planos pequenos, mas cheios de amor.

Mas Deus, em sua sabedoria misteriosa, escolheu me deixar ficar. E eu entendi: ainda há algo a cumprir — e esse algo é viver o presente com profundidade. Não é sobre grandes feitos. É sobre o agora. Sobre estar por inteiro em cada conversa, cada olhar, cada respiração. Porque o tempo não volta. E nenhuma frase bonita sobre “a vida ser um sopro” se compara à experiência real de quase vê-la se apagar. Na dor, aprendi que o presente é um refúgio. Que estar viva é um privilégio. Que cada gesto simples — beber água, sentir o sol, ouvir o riso de quem amamos — é uma bênção que a pressa costuma roubar da gente.

E foi com esse coração aberto que, dias depois do acidente, aconteceu algo que me marcou profundamente. Meu filho Matheus, num daqueles momentos do cotidiano, que a pressa atropela o que precisa ser feito antes, deixou cair e quebrar um filtro de barro cheio de água ao tentar virá-lo para beber a água direto na boca — algo que eu já havia pedido tantas vezes para não fazer…Em outro tempo, talvez eu tivesse me irritado e brigado com ele, e isso não resolveria o que estava em pedaços. Mas não. Aquele dia, eu estava diferente. Naquele momento eu não disse palavra alguma. Apenas refleti que eu também poderia ter evitado o fato. No final do dia aproveitei que tinha outras coisas para resolver, sentamos e conversamos. Por quase uma hora, falamos de tudo: das atitudes boas, das que podiam melhorar, da importância de cuidar das coisas, de se cuidar também. E, foi uma das poucas vezes após meu filho completar doze anos, que ele me ouviu por completo. Não desviou o olhar, não se levantou antes de eu terminar de falar. Ficou. Presente.

E, no final da conversa, quando lhe dei um papel em branco para escrever o que ele quisesse, ele escreveu: “Eu te amo, mãe.”

Naquele instante, compreendi com clareza o que o acidente quis me dizer. A vida não quer de nós pressa. Quer presença. Quer olhos que enxergam de verdade. Quer           ouvidos  que               escutam               sem               interrupções. Quer corações inteiros, que não esperam o amanhã para dizer o que sentem hoje. A dor             física      vai                 passar.                   Mas                        o         aprendizado,      não.

Hoje, quando fecho os olhos, não penso no carro, nem na queda. Na oportunidade de recomeçar — não como quem tenta apagar o passado, mas como quem finalmente entendeu o valor de cada instante. O presente é tudo o que tenho. E, por milagre, ainda estou aqui para vivê-lo.

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