Ildecir A.Lessa
Advogado
Digno de registro a importância da música enquanto expressão artística e de visão de mundo. Existe uma riqueza na música brasileira, que traz em sua diversidade com temas sociais e literários. A música é uma das mais brilhantes criações do homem. Tem uma função significativa na vida das pessoas: é prazer, conforto, reflexão, diversão, emoção e informação. A música estimula nossa sensibilidade e, às vezes expõe outras que são reprimidas. Ela pode transportar-nos de um mundo objetivo, cronológico, sistemático, para um outro mais livre, mais imaginativo, mais contemplativo. A música retrata seu tempo, permite-nos perceber como determinado tema foi trabalhado ou mesmo esquecido, ocultado. Na verdade, a música sempre se entrega pela metade e exige do homem que a ouve, ser restabelecida na integralidade de sua essência.
Nessa linha, a chamada MPB-Música Popular Brasileira- é um campo vasto. A MPB é permeada por canções que só pela poesia, já é exposta toda profundidade das relações humanas e sociais. Das grandes produções artísticas, volta-se à lembrança da música “Disparada”, de Geraldo Vandré, canção imortalizada pela interpretação do cantor Jair Rodrigues que, até hoje ainda não tem uma explicação definida. Em linhas gerais, a música se refere ao histórico do êxodo rural em que os jovens filhos das elites rurais buscavam a formação nos estudos nos grandes centros urbanos. Não trata somente de uma crítica ao regime militar. Nem uma homenagem a João Goulart, mas sim a uma analogia com características escatológico-revolucionária.
A música tem figura de linguagem de cunho metafórico, com começo, meio e fim bem definidos. “Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar; Eu venho lá do sertão, eu venho lá do sertão; Eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar”. Nesta primeira estrofe, o narrador diz que vem do sertão. Um retirante, um forasteiro fazendo “invasão”. Incomodará a região invadida, assim como também poderá incomodar pelo jeito de pensar. O narrador é possivelmente da classe baixa e tem uma forma de pensar diferente das outras classes sociais. Além disso, a mensagem que o narrador está a propagar pode não agradar quem a escuta [porque as pessoas têm resistência a mudanças]. “Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar; E a morte, o destino, tudo, a morte e o destino, tudo; Estava fora do lugar, eu vivo pra consertar”. Como o narrador não é do mainstream social, é de vivência sofrida, tal condição o fez experimentar de várias desgraças em vida. E como ele está narrando uma vivência, ele dá pista que: “vivo para consertar”. Saiu da condição de impotência pela limitação social para ser um agente de mudança [obteve poder].
“Na boiada já fui boi, mas um dia me montei; Não por um motivo meu, ou de quem comigo houvesse; Que qualquer querer tivesse, porém por necessidade; Do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu”. Essa estrofe aponta o ponto de ruptura e a mudança de status social do próprio narrador. Se no passado o narrador retirante era apenas mais um “boi”, só mais um na multidão, por causa de um fenômeno qualquer o fez mudar este status quo [não porque ele forçou isso: “não por um motivo meu”], mas porque houve mudança no sistema de liderança, [por isso que o narrador diz: “porém por necessidade”]. O narrador tomou o lugar do vaqueiro. Portanto, virou vaqueiro. Por causa da modulação “Na boiada já fui boi, mas um dia me montei”, tal condição reflete que o narrador é realmente do povo [já foi boi], o que desmonta a tese de que a canção remeteria ao ex-presidente João Goulart [que era filho de coronel fazendeiro, dono de muitas áreas de terra e de muitas cabeças de gado]. João Goulart nunca foi povão [nunca foi gado]. “Boiadeiro muito tempo, laço firme e braço forte; Muito gado, muita gente, pela vida segurei; Seguia como num sonho, e boiadeiro era um rei”. Ao virar líder deste “sistema de poder”, ao controlar o povo de forma a segurar muito gado e muita gente [restringir liberdade], ao ser linha-dura, além de surfar a ascensão social e aproveitar as vantagens que o poder dá: que é até mesmo o poder de manter o povo como gado. “Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo; E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando; As visões se clareando, até que um dia acordei”. Como o sonho significa poder subir à cabeça, além de que o narrador estava deslumbrado pelo poder ao ponto de tornar-se o que mais temia: o mesmo tipo de líder opressivo que acha que pode tudo, este modelo continuado o fez acordar e enxergar a verdade: refletir que estava fazendo a mesma coisa que os outros líderes tiranos faziam.
Conclusão: a canção ‘Disparada’ é uma narrativa escatológico-revolucionária. Dá lição de moral no sentido de que só porque se tem o poder não precisa ser tirânico; mostra que a insensibilidade de quem está no poder se dá porque o sujeito que se acha superior aos demais não se coloca no lugar dos desafortunados porque não teve, teoricamente, vivência de sofreguidão [não se coloca no lugar do outro]; e critica aqueles que possuem medo da mudança, em que o narrador impõe a metamorfose social ao invés de apenas sugerir. A canção fez crítica à ditadura militar de 64? Também [porque foi um sistema repressivo]. Mas o foco da música é dar indireta a qualquer sistema tirânico que trata o povo como gado, e que dependendo das condições há de surgir até revolução [o gado virou boiadeiro]. A esses regimes a carapuça serve de forma salutar. E disparada pode ser traduzido como dispersão do povo para deixar de ser gado. Enfim, ‘Disparada’ é uma música revolucionária – mas no sentido de reviravolta da evolução, e não no sentido de revolta violenta. Uma música para convencer tiranos a deixarem de ser.