DIÁRIO traz entrevista com ginecologista e obstetra e relato de vítima sobre o assunto
CARATINGA- O caso da influencerShantal Verdelho deu destaque a um assunto que precisa ser amplamente debatido: a violência obstétrica, que se trata de qualquer violência física, moral ou psicológica praticada contra mulheres no momento do pré-natal, parto e pós-parto. Os inúmeros casos que começaram a ser relatados nas redes sociais após a repercussão, mostram que Shantal não é exceção. Muitas mulheres têm relatos traumáticos vivenciados em hospitais e unidades de saúde do País.
Buscando a conscientização sobre o tema, que entre os dias 8 e 14 de março foi celebrada a Semana Estadual do Combate à Violência Obstétrica, o DIÁRIO entrevista a ginecologista e obstetra Tatiane Nacife, que explica os direitos das mulheres a uma assistência respeitosa e livre de qualquer tipo de violência e Lorena Roza, que já foi vítima de violência obstétrica.
“PRECISAMOS MUDAR A FORMA DE NASCER NO BRASIL”
Ginecologista e obstetra Tatiane Nacife explica o que é violência obstétrica e procedimentos comuns durante o parto, que em algumas vezes são considerados desnecessários.
O que é a violência obstétrica e como ela se manifesta?
A violência obstétrica é um termo que utilizamos para denominar qualquer tipo de violência contra a mulher gestante, seja no início do pré-natal, durante o parto, até o pós-parto. É um termo bem abrangente, vai desde a violência física, que seriam os maus tratos a essa mulher à violência psicológica, utilizar de termos desnecessários, utilizados para menosprezar essa gestante e uma das formas de usar esse termo de violência obstétrica para designar quando uma unidade de saúde, seja posto, hospital, maternidade ou Pronto Atendimento não tem a estrutura física e humana necessária para receber essa gestante.
Pode ocorrer no parto normal ou cesariana?
Com certeza. No pós-parto também. Às vezes ganhou o bebê, deu tudo certo, mas, no pós-parto ela não foi bem atendida. Na hora da amamentação não tem aquela assistência necessária. E a gente também classifica isso como violência obstétrica.
Hoje as mulheres têm mais consciência que sofreram violência obstétrica?
Acredito que antigamente, se a gente pensar 10, 15 anos atrás, quando a informação ainda não era tão difundida, as mulheres sentiam que havia alguma coisa de errado, mas, não tinha noção que estavam sendo vítimas de maus tratos, de uma violência obstétrica. Mas, hoje, com acesso às redes sociais, o próprio caso que ficou muito conhecido daquela blogueira, despertou-se nas mulheres essa ideia de que não é para ser tratado desse jeito. Tem que procurar as unidades de serviço para fazer uma denúncia, para reivindicar os seus direitos e para que a gente torne cada vez esse atendimento de uma época tão frágil, a gravidez é uma época de muita fragilidade, um momento prazeroso, que vai ficar gravado para sempre de forma positiva.
Geralmente os relatos são muito fortes…
Muito. São relatos desumanos. Já ouvi histórias de chorar com o paciente dentro do consultório, situações que não dá para acreditar que isso de fato aconteceu e aconteceu debaixo do nosso nariz. Dentro da nossa cidade. Com pessoas conhecidas. É muito triste pra nós, para mim que sou ginecologista obstetra, ouvir uma história desse tipo.
Existem algumas práticas obstétricas rotineiras, como a episiotomia, conhecida popularmente como “pique”. É correto?
Existem várias práticas que antigamente havia a rotina de ser feitas, era usual e hoje em dia sabemos que não se faz necessária. A episiotomia, por exemplo, que é o famoso “pique”. Não é necessário, a não ser que em caso de um parto cirúrgico, ao utilizar um fórceps, se o médico julgar que aquele canal vaginal pode sofrer uma laceração e o fórceps tem dificuldade de entrar, pode se fazer necessária a episiotomia, mas, do contrário não é isso que vai determinar se o bebê vai nascer ou não, porque a episiotomia é feita na parte mais baixa do corpo da mulher, da vagina, que é uma área elástica. Então, não vai fazer diferença ter ou não o “pique” ali.
E o chamado “sorinho da contração”?
O “sorinho da contração” é a ocitocina. Existem algumas situações bem pontuais que se faz necessário, agora, de rotina não. Porque a ocitocina é um medicamento que vai induzir as contrações de parto, vai promover a contração. Se a mulher já está com a contração, que é uma contração dolorosa, para que vou fazer um soro para acelerar aquilo? Então, existem as situações que fazemos, mas, de rotina, para acelerar parto, de jeito nenhum.
Qual medida a mulher pode tomar para evitar ser uma vítima de violência obstétrica?
No caso, por exemplo, dela chegar num posto de saúde, na unidade de saúde e perceber que esse local não tem a estrutura física para recebê-la, ela pode procurar a Secretaria de Saúde e fazer essa denúncia ou próprio hospital tem uma ouvidoria onde ela pode relatar esse tipo de infraestrutura inadequada. Quando se tratar de parto, por exemplo, se ela perceber que houve uma violência obstétrica, muita das vezes nem é a mulher que percebe, mas, o companheiro, o acompanhante, o familiar, vale a pena procurar o hospital responsável para que ele chame aquele médico para esclarecer o motivo, fazer uma denúncia na Delegacia das Mulheres ou procurar um médico da confiança para que ele dê esse suporte. Existem alguns caminhos que essa mulher pode seguir e que são da lei. Porque não adianta nada, às vezes a pessoa quer divulgar no Facebook e acaba que perde a oportunidade de procurar uma instituição seria para corrigir aquele ato e punir aquele profissional, não só médico, amas, enfermeiro, qualquer profissional da área da saúde que tenha recebido essa mulher.
Quais são suas considerações finais?
Precisamos mudar a forma de nascer no Brasil. Precisamos mudar a forma como tratamos nossas mulheres, não só as gestantes, mas, todas as mulheres que necessitam de atendimento, seja hospitalar, dentro do consultório ou da unidade de saúde.
Lorena Roza
Como você define essa experiência com o termo violência obstétrica?
Muitas vezes associa-se o termo violência obstétrica com agressões verbais ou físicas que, infelizmente, é muito comum nos serviços de saúde, tanto públicos, quanto privados, que a gestante durante aquele processo de trabalho de parto acaba sendo vítima desse tipo de situação. Meu relato é um tipo de violência obstétrica, que vejo que faz parte do protocolo do sistema de saúde. Muitas vezes submete a gestante, a puérpera a uma situação de violência mesmo, sofrimento desnecessário.
Como foi sua gestação?
Minha gestação foi super tranquila, não tive intercorrências, trabalhei a gestação toda, não tinha contraindicação para o parto normal, porém, o sistema público de saúde leva a gestante a insistir no parto normal, até que haja uma evolução nessa dilatação, nesse parto ou caso não haja possibilidade, acaba realizando a cesárea. Mas, minha intenção realmente era ter o parto normal, pelo que pesquisei e por não ter nenhuma contraindicação.
No dia do parto, o que caracterizou essa violência obstétrica?
Fui admitida com três centímetros de dilatação, que foi evoluindo de certa forma lenta, senti muita dor. E com a informação que eu passei a ter depois, o que caracterizou essa violência obstétrica, primeiro, excesso de toques, devo ter sofrido mais de 20 toques durante meu trabalho de parto, é obstetra, o residente, o estagiário, a enfermeira… Não sei qual é a indicação, mas, pelo menos pelo que já li, não tenho formação nessa área, minha formação é Nutrição, mas, já existe um consenso de que esse excesso de toques é desnecessário. É um tipo de procedimento que não vai evoluir o parto, não vai trazer grandes novidades. A infusão de ocitocina, eu sei que é muito comum, porém, no meu caso não teve resultado tão bom, sabe-se que intensifica muito a dor, embora, haja a questão da evolução do parto, sei que não é considerado violência obstétrica, mas, é um procedimento que traz sofrimento para a gestante. Durante o meu trabalho de parto, eu sofri a manobra de Kristeller, que eu não conhecia, não sabia que isso existia, apesar de ser uma pessoa instruída. Eu não acreditei que isso acontecesse, que o profissional joga o peso do corpo por cima da barriga da gestante durante o parto. Isso é um procedimento contraindicado pelos órgãos de saúde internacionais, pode trazer consequências graves para a mãe e para a criança. A dor é extrema, acho que esse é o ponto principal da questão da violência, que eu creio que sofri, porque é um procedimento que não trouxe contribuição nenhuma para o parto, só trouxe sofrimento. Durante o parto também teve a questão da episiotomia, que o corte que a grávida sofre no períneo, na região da vagina, durante o parto. Esse corte não me foi comunicado, me trouxe uma consequência futura, uma cicatriz. E como toda cicatriz é uma região que fica sensível, mais fragilizada.
Teve alguma complicação?
Todas essas situações e o fato de minha filha ter nascido bem grandinha, 3 quilos e 700 gramas, mas, a forma como o parto é feito no sistema não contribui para que ele evolua de forma humanizada, pelos procedimentos que descrevi. Tive uma hemorragia muito grave, que me deixou 40 minutos desacordada, tive choque hipovolêmico logo após o parto. Penso que a forma como sistema trata a puérpera, como evolui os partos, não contribui positivamente, traz um sofrimento desnecessário, porque hoje em dia a gestante que vai para o SUS, talvez não tem a condição de arcar com esse serviço particular, ela se sujeita a um protocolo que tem que adivinhar se vai ter um bom resultado ou não. Foi o meu caso, eu tinha que deduzir se aquilo tudo ali ia ter um bom resultado, no meu caso quase foi fatal. Nesse momento que fiquei desacordada, perdi muito sangue, quase morri mesmo. Tiveram que correr comigo porque pressão 6 x 3, fiquei com oxigenação comprometida nesse momento por conta da série de pequenas coisas que aconteceram ao longo do trabalho de parto.
Você acredita que houve algum erro por parte dos profissionais envolvidos nos procedimentos para o parto?
Não acredito que no meu caso seja culpa do médico responsável pelo parto, da enfermeira ou a administração do local onde foi feito o procedimento, mas, penso que é toda uma conjuntura de coisas. É o sistema que não está preparado para tratar de forma humanizada. Pesquisei sobre o assunto e insisti no parto normal porque eu acreditava que apesar de ser arriscado, seria melhor para mim e minha filha. No momento como fui verbalmente bem tratada e eu estava tão desesperada para que acabasse logo, entendi que a equipe estava trabalhando para que acontecesse tudo na melhor forma possível e na verdade não foi, mas, não por culpa da equipe em si, mas, do sistema, que leva a esse resultado. Claro que esses procedimentos que mencionei, a forma como foi conduzido meu parto em si, vários pequenos fatores poderiam ter sido evitados individualmente pelos profissionais. Mas, na conjuntura toda da forma como o procedimento foi conduzido, considero uma forma violenta e eu só fui concluir isso depois.
A gestante é muito responsabilizada pelas escolhas que faz para o parto?
Sim. Questionam o porquê você escolheu ter parto normal. “Nossa, você é doida, foi ter parto normal no SUS”. Por que o sistema não está preparado para receber a mãe que decide ter parto normal? Por que a mãe que decide ter parto normal é culpada depois? “Nossa, você podia ter morrido, por que não marcou uma cesárea, por que não fez particular?”. Nem todo mundo vai ter condição de arcar com o parto humanizado normal particular, que tem o custo muito alto. Só fui concluir que foram uma série de procedimentos considerados violentos. Graças a Deus, mas, foi um evento que considero muito traumático.
Podemos dizer que é preciso promover um protocolo SUS mais humanizado?
Hoje são poucos os hospitais no País que fazem esse trabalho humanizado, o parto com uma posição que evolua de uma forma mais natural, a questão da massagem na gestante durante o trabalho de parto, a própria orientação para que a gestante se movimente mais. Esse tipo de coisa não acontece, o único protocolo é insistir no parto normal, da forma mais sofrida possível, até o máximo possível que a puérpera aguenta e se ela não aguentar ou não morrer antes disso, faz uma cesárea. Penso que o sistema em si precisa ser revisto.