Missionária da Aliança de Misericórdia acolheu família composta por duas irmãs, o marido de uma delas e quatro crianças. Confira entrevista exclusiva concedida ao DIÁRIO DE CARATINGA
*Reportagem: Nohemy Peixoto
*Fotos: Wilson Martins
CARATINGA- A cruz em seu sentido figurado, geralmente é relacionada como sinal de dor ou sofrimento. Quantas vezes não ouvimos a expressão “cruz que carrego” em relação a momentos de agonia da vida? Para os que creem, Cristo transformou a cruz da morte em vida, o que pode ser encarado como sinal de esperança. Foi exatamente o que uma família de venezuelanos encontrou em um sítio de São Cândido.
Logo na entrada, de fato, o objeto está afixado em meio ao verde da natureza e representa bem esta história. Após enfrentar a “cruz” do sofrimento em seu país de origem, que hoje passa pela pior crise de sua história, com a fome, miséria e a violência; eles encontraram a esperança no sítio em que reside a missionária Rita da Penha Soares.
A família composta por Naudys, a irmã Adriana e seu esposo Santiago, além de quatro crianças chegou à casa de dona Rita no dia 4 de abril de 2019. Eles moravam na cidade de El Tigre, no Estado de Anzoátegui. As jovens ainda deixaram um irmão em Pacaraima/Roraima, distante cerca de 200 km da capital, Boa Vista. A avó continua na Venezuela, mas elas desejam trazê-la para o Brasil também.
O DIÁRIO DE CARATINGA conversou com estas pessoas e traz o relato de suas histórias e acolhida no Brasil. Naudys entende bem o português, pois está no país há um ano e já sabe pronunciar muitas palavras do cotidiano local; Adriana está começando a aprender o idioma, mas, em sua fala ainda predomina o espanhol, assim como seu esposo Santiago. Por isso, foi necessário traduzir os relatos que são apresentados nesta reportagem.
A SAGA DA FAMÍLIA
Naudys tem 25 anos e é técnica superior em Informática pela Universidad Politécnica Territorial José Antonio Anzoátegui. Na venezuelana, trabalhava como secretária em um consultório odontológico e de prótese dentária. Antes de ser acolhida no distrito de Caratinga, morou na casa de um tio, que fica em Boa Vista. De lá, precisou encarar a dura realidade das ruas, até conquistar a oportunidade de se interiorizar.
Com agravamento da crise político-econômica na Venezuela, houve uma forte onda migratória para os países vizinhos da América Latina, principalmente o Brasil. Ela conta como a situação passou a colocar em risco a sobrevivência da população. “A Venezuela antes era boa, mas depois de uns três anos ou mais acabou por completo, tudo começou a ficar escasso e as coisas ficaram mais caras para comprar por transferência bancária, porque o dinheiro não se consegue. A comida é cara, a fralda dos meninos, uso pessoal tanto para mulheres quanto para homens; com o salário que você ganha não dá para comprar nem sequer uma roupa. A comida mais comum na Venezuela é arroz com mandioca. A violência, agora mais que tudo com os conflitos que estão chegando através do governo mesmo, não entre os venezuelanos. Há pessoas que conseguem vender comida, mas cara, porque tem que sair também fora do país para comprar”.
A primeira a atravessar a fronteira rumo ao Brasil foi Naudys, junto a uma tia. Na primeira tentativa a jovem foi barrada, pois uma de suas filhas não tinha nenhum dos documentos exigidos: passaporte ou permissão de pai. “Eu fiquei triste porque eu queria ir para o Brasil. Depois eu voltei, me deram a permissão, eu pude passar e atravessei com a minha tia caminhando. Nós pegamos uma carona que nos deixou até a metade do caminho, uma parenta deu outra carona que nos levou para casa de meu tio”.
Naudys residiu por um bom tempo em Boa Vista, na casa de seu tio, quando recebeu uma mensagem de sua irmã Adriana, dizendo que também estava na cidade, porém desabrigada. Para fazer companhia a irmã, ela saiu da casa do tio e, juntas, moraram por dois meses em situação de rua em frente a Rodoviária Internacional de Boa Vista. “Ela não tinha onde ficar e eu não podia abandonar ela, pois ela não sabe falar bem o português para pedir ajuda. Ficamos na rua com os meninos, dormindo na rodoviária”, explica.
Recentemente, a operação Acolhida, executada pelo Exército, Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) e ONGs, determinou que os imigrantes só poderiam permanecer nas barracas e papelões do alojamento improvisado nas imediações da rodoviária durante a noite. Durante o dia, eles eram retirados devido se tratar de um espaço público. Com isso, a situação das irmãs ficou ainda pior e elas conseguiram pedir ajuda. “Um menino da Aliança da Misericórdia estava anotando as pessoas que precisam de ajuda, chamamos ele, falamos das dificuldades que estávamos passando. Não tínhamos boa vida, ficávamos mais que tudo, sujos, não tínhamos como tomar banho, vivíamos de corre-corre. Ele viu que andávamos para cima e para baixo com as crianças e perguntamos como podia nos interiorizar, porque em Boa Vista não tem muita fonte de trabalho”.
A Aliança de Misericórdia é uma Associação Privada de Fiéis, com sede na Arquidiocese de São Paulo, que presta apoio material e espiritual aos mais necessitados. Já o processo de interiorização citado por Naudys, começou em abril deste ano, organizado pela Casa Civil da Presidência da República e a Acnur, tendo por objetivo levar os venezuelanos para outras localidades. A família foi contemplada pelo programa federal. “Ele (missionário) pegou nossos dados e falou para nós que dentro de 10 a 15 dias era para esperarmos que ia sair a viagem, mas não sabia para onde nós iríamos. Nós confiamos muito em Deus, acreditando que daria certo. Ele nos chamou depois, falou que a viagem havia saído. Nós preparamos as malas muito felizes (risos), o marido da minha irmã conseguiu atravessar a fronteira já fechada, interiorizar -se conosco e viemos”.
Primeiro a viagem de Boa Vista a Manaus (AM) com a duração de 12 horas. Permaneceram na capital do Estado do Amazonas por uma semana enquanto aguardavam a liberação voo para São Paulo. Na cidade paulista, embarcaram para Belo Horizonte. “Sem saber quem ia nos buscar, não conhecíamos ninguém. Minha irmã tinha 1% de carga no celular (risos), estávamos ficando em uma situação ruim porque se o telefone apagasse nós voltaríamos a morar na rua. Sempre acreditamos na glória de Deus que nunca nos deixou sozinhos, ela pegou seu WhatsApp e começou a falar com outro missionário que já estávamos lá, mas é muito grande o aeroporto. Eles nos pegaram, nos levaram para a casa de outra menina da Aliança da Misericórdia, descansamos, passamos a noite e no outro dia pegamos o trem e chegamos até Ipatinga”.
Na cidade do Vale do Aço, o alívio. Dona Rita aguardava a família venezuelana, para acolhê-los em sua residência em São Cândido. “Nos alegramos muito porque estava a dona Rita esperando e a irmã dela. Graças a Deus viemos aqui para o sítio, são pessoas muito boas, nos receberam muito bem, temos que agradecer por ter deixado sua porta aberta”.
No Brasil, a chance para o recomeço. No entanto, Naudys ainda se preocupa com a avó que ficou na Venezuela. “Nós permaneceremos aqui enquanto as coisas não se estabilizarem por lá, que ainda está muito ruim. Estou fazendo todo o possível para ver como trago minha vovó para cá, porque em minha casa morávamos eu, ela e minhas duas crianças. Agora ela fica sozinha lá e se pode dizer que eu sou o homem da casa e se eu não estou ninguém pode olhar como eu olhei a minha vovó. Tenho que trazer minha vovó para cá para eu ficar tranquila. Ela tem que vir para Boa Vista ficar na casa do meu tio, depois vejo como trazê-la para cá. É a preocupação que tenho agora. O resto dou graças a Deus, são pessoas que nos ajudaram”.
A família também encontrou oportunidade de sustento. Naudys, a irmã e o cunhado conseguiram um emprego em uma fábrica de sacolas em Vargem Alegre. A intenção é fixar residência lá. “Agora estamos esperando arrumar uma casa lá para colocar as meninas na creche, os maiores já estão indo para a escola. Se não conseguirmos continuamos morando aqui, dona Rita não tem nenhum problema e temos como ir para lá todos os dias”.
Quanto ao retorno para seu país de origem, a fala da jovem é marcada pela saudade e a esperança. “Eu gostaria demais, sinto falta do meu quarto, da minha cama, são poucos familiares que posso falar por WhatsApp, mas é ruim porque nem todo mundo tem. Eu gostaria muito de voltar ao meu país”.
‘NO BRASIL TUDO MUDOU’
Adriana, irmã de Naudys, conta que o colapso vivido pelo país fez com que as duas decidissem deixar a Venezuela, principalmente para proporcionar melhores condições de vida aos seus filhos. “Lá a situação está muito ruim. A inflação alta, não se consegue nada, um filho enfermo não se consegue medicamento, tudo muito ruim. Não se consegue trabalho. Por isso, nos sentimos muito gratos e desde que pisamos no Brasil tudo mudou em torno de nós”.
Com a ordem de bloqueio determinada pelo governo da fronteira da Venezuela com o Brasil, alguns grupos conseguiram passar usando rotas alternativas, como é o caso de Santiago, marido de Adriana. “Os índios ajudaram. Índios são pessoas boas que ajudam os venezuelanos a atravessar a fronteira”.
Sobre a ajuda de dona Rita, Adriana faz a questão de agradecer pela acolhida. “Damos graças a ela porque tem sido como uma alavanca, um motor de impulso. Ela consegue doações por sua amizade, com conhecidos, é uma pessoa muito boa que não merece apenas um ‘obrigado’, merece acolhê-la e abraçá-la, como um brinquedo de pelúcia de Natal muito agradável”, declara.
Assim com Naudys, ela também espera que a Venezuela encontre a paz e a recuperação econômica. “Quero voltar, mas, mais adiante, porque familiares, amigos e conhecidos estão em uma situação muito ruim, arruinados pela falta de comida, muitas coisas. Espero que melhore pra que eu possa voltar”.
O GESTO DE DONA RITA
Rita, que teve papel fundamental nesta história, é missionária da Aliança de Misericórdia e viu pela televisão, no canal da Canção Nova, as inscrições para quem desejasse acolher venezuelanos pelo Programa de Interiorização. Ela se inscreveu para receber quatro pessoas e obteve uma resposta 15 dias depois. “Me disseram que tinha duas irmãs lá, mas que não iam separá-las (risos). Os próprios missionários junto com as Cáritas conseguem patrocínio para as viagens, passagens e meu trabalho foi só pegar eles em Ipatinga”.
Para a acolhida, dona Rita afirma que está contando com apoio, principalmente, de sua família e que se emociona com a trajetória dos venezuelanos. “Até hoje, é começar a ver a situação deles, eles me contarem, começo a chorar, principalmente por causa das crianças. É Deus que colocou eles aqui na minha vida, eu não tinha planejado nada disso, meu planejamento para esse ano era viajar para a nossa sede em Belo Horizonte e de lá ir para a África em missão. Mas, quando vi a situação deles, os testemunhos, meu coração não deu conta”.
Ela descreve a família como amorosos, bons pais e zelosos uns com os outros. “Sempre preocupados em não me dar despesa e colaborando de alguma forma. Tudo que está acontecendo é pela benção de Deus mesmo, não esperava arranjar um emprego para eles tão perto, como em Vargem Alegre”.
Desde que estão em São Cândido, eles já tomaram todas as providências uma vida tranquila no Brasil. Claro, mais uma vez, com o cuidado essencial e carinhoso de dona Rita. A missionária é dotada de modéstia em relação às suas ações. Mas, o sorriso da família ao lado da amiga brasileira, já demonstra a dimensão do seu gesto. “Eles passaram pelo posto, olhando os cartões de vacina, a documentação deles também está toda certinha, a escola das crianças, tudo facilitado já. Acho que sou só uma pedrinha no suporte de tudo isso, para eles conseguirem sobreviver com mais dignidade, porque deve ser muito difícil viver fora do nosso país”, finaliza.