* Thelma Regina Alexandre Sales
Essas feridas parecem não querer cicatrizar. Essa dor é muito real. Isso é simplesmente muito mais do que o tempo não pode apagar. Estou preso pela vida que você deixou para traz. Tradução de My Immortal – Evanescence.
Em todas as fases da vida o ser humano experimenta emoções, nem sempre agradáveis. Na infância, um motivo para frustração poderia ser um doce proibido de ser comido à vontade. Na adolescência, um amor platônico perdido para alguém mais audacioso. Na fase adulta, a perda durante a concorrência para um emprego. As frustrações – esse sentimento que surge quando o destino foge do desejo – são os fundamentos do sofrimento existencial.
É próprio da condição humana, no seu evoluir natural, experimentar frustrações e perdas: tudo se deteriora; o corpo se debilita, as doenças roubam a vitalidade, enfrentam-se desigualdades, sofrem-se preconceitos, vivem-se sob eterna concorrência, os anos deixam cicatrizes e, portanto, ninguém está livre de perdas e de dor. Sempre foi assim: se você forçar a memória e recorrer ao passado, observará que em nenhuma fase de sua vida esteve imune a esses eventos. Esse longo caminho inclui a ruptura máxima: a morte, o golpe fatal do destino, a maior das frustrações, a maior de todas as perdas. Essa é a inflexível lei da entropia.
No entanto, nem sempre se perde para a morte. Outras rupturas interferem no fluir natural da vida. São eventos, também traumáticos, como a traição do amigo, a perda do emprego, pais que perdem os filhos para drogas e para o crime, a perda da pessoa amada por separação ou morte repentina, uma doença fora de possibilidade terapêutica, etc. Essas tragédias também fazem parte da vida e não temos outra saída, senão lidar com elas.
Apesar de universal, atemporal e esperada ninguém está absolutamente preparado para aceitar suas perdas.
Lidar com perdas exige um tempo a que chamamos de luto, estágio no qual a pessoa elabora sua dor. Recordo-me de um artigo de um psiquiatra – conterrâneo meu – que usou Roberto Carlos para ilustrar que o luto é uma travessia individual: “Perdeu sua amada – Maria Rita – e, por conta disso, guardou-se, por quase um ano, de apresentações públicas e shows” (Antônio Mourão Cavalcante, UFC – Fortaleza/CE).
O comportamento de um dos maiores ídolos populares da música brasileira levou muita gente a se perguntar: até que ponto é saudável curtir a perda de uma pessoa a quem tanto se ama? Quanto tempo deve durar o luto? A saudade pode se transformar em doença?
De fato, o luto tem um tempo para acontecer, tem intensidade e tem um valor. Para alguns é muito difícil atravessá-lo. Para outros pode até significar alívio.
Em psiquiatria, o valor nunca é qualidade do objeto. É o sujeito que coloca valor no objeto. Isso significa que a pessoa que sofre é quem valoriza o objeto perdido, logo, os sentimentos são de autoria exclusiva do sujeito e ninguém pode atribuir, dimensionar ou subestimar o valor dado ao objeto perdido além do sujeito que o perdeu. É, portanto, o valor atribuído ao objeto o responsável pela duração do luto.
Claro, leva em conta, igualmente, a personalidade, a sensibilidade e a estrutura de cada um, bem como a circunstância em que aconteceu a perda, se repentina ou resultado de um longo período de sofrimento (ex. doença grave), se a vítima é jovem, idoso ativo ou um acamado sem perspectiva de cura, etc.
Qualquer dor é Única, Incomparável e Igualmente Intensa.
Por vezes, a dor de quem perde um ente querido se iguala a dor da perda de qualquer outro ser, muitas vezes incompreendida entre os pares. Assim, quando uma pessoa considera bizarro que a outra esteja a sofrer pela perda de um animal de estimação e faz a comparação de que a perda da mãe ou de um filho seria muito mais dolorosa, não compreende que a dor resulta de algo construído em si, como consequência de uma representação que lhe causava emoções positivas. Da mesma forma, mesmo que seja esperado que a perda dos pais ou dos filhos tenha mais repercussões dolorosas do que a perda de um irmão, tudo depende dos laços afetivos construídos.
A dor é proporcional ao vínculo afetivo com o objeto perdido (pessoas, animais, etc.), aos laços construídos e ao quanto o objeto perdido se fez presente e útil. Supõe-se assim, ser mais difícil superar a perda cuja representação afetiva tenha sido mais duradoura e intensa.
Para se compreender a dor e viver o luto é necessário entender que “sua dor é tão intensa quanto a minha, mesmo que sua motivação para a dor seja insignificante para mim”. Mesmo que o objeto “não valha” o preço do sofrimento para alguns, a dor é sempre muito grande para aquele que a sente, pois ali não há simplesmente dor, há apego. Não importa o objeto, importa o afeto.
Avalia-se que o momento mais forte é quando que se perde o ente querido e o mais dolorido é a hora em que se resolve pelo seu “enterro”. Com 60 a 90 dias – quando sobrevém à ideia do “Nunca mais” a dor parece insuportável. Isso vale tanto para o desfecho final quanto para perdas durante o percurso da vida. Com o passar do tempo o sentimento diminui, até tornar-se uma lembrança dolorosa, porém, não mais um luto. Em psiquiatria, esse tempo de elaboração é conhecido por ajustamento ou adaptação. E é um tempo fisiológico. Não tem como não vivê-lo.
Então, como pode que, mesmo tão experientes em frustrações e perdas, não sabemos lidar bem com o luto? Por que fugimos dele?
Porque nos causa dor e nos traz culpa. Porque traz a ideia de que a própria vida nos deu rasteira. Porque interfere e destrói nossos sonhos. Porque nos bloqueia. Porque nos traz raiva e sensação de incompetência. Porque nos rouba qualquer expectativa. Porque nos impede de elaborar outros planos. Porque nos desencoraja a reconstruir. Porque negamos e resistimos a outros momentos de dor. Porque tememos tomar outra estrada. Porque nos ensina grandes lições de uma só vez, sem que estejamos prontos.
Seria insano não evitar as frustrações!
Um minuto de silêncio por nossas rupturas.
E depois disso, nem mais um minuto para o confronto.
Afinal, como diria Arnaldo Antunes: “Viver é isso: se equilibrar entre o que temos e o que temos que perder”.
Continua na próxima edição
* Thelma Regina Alexandre Sales, Graduada em Medicina pelo Centro Universitário de Caratinga é Nutricionista – Especialista em Terapia Nutricional/SBNPE – Especialista em Nutrição Clínica/UECE – Especialista em Saúde Pública/UNESCO – MBA – Gestão de Negócios/UNEC – Mestre em Meio Ambiente, Saúde e Sustentabilidade/UNEC- Professora do Centro Universitário de Caratinga. É Multiplicadora do Projeto de Aleitamento Materno do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher do Ministério da Saúde. Possui Título de Especialista em Terapia Nutricional Parenteral e Enteral pela Sociedade Brasileira de Nutrição Parenteral e Enteral (SBNPE). Presidente da Equipe Multidisciplinar de Nutrição Parenteral e Enteral do Hospital Nossa Senhora Auxiliadora, Caratinga, MG. Atualmente, trabalha na área de Saúde da Família, Urgência e Reabilitação Médica
Mais informações sobre a autora: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4796253T6