Eugênio Maria Gomes
O título em epígrafe não é de minha autoria. Trata-se do título de um artigo publicado pela jornalista Eliane Brum, no periódico espanhol El Pais, no último dia 22 de junho, que agora, com todas as homenagens à autora eu reproduzo.
No artigo, a autora se refere a uma pergunta feita por uma criança de classe média alta, à sua mãe. Criada em condomínio fechado e que frequenta escola de elite e shopping center localizados, respectivamente, dentro e ao lado do condomínio, a criança percebeu que as pessoas “marrons”, diariamente, ao cair da noite, saiam dos apartamentos e lojas onde trabalhavam e iam embora. Do alto de sua perspicácia infantil, a criança indagou à mãe onde aquelas pessoas dormiam…
As “pessoas marrons” às quais ela se referiu eram domésticas, porteiros, zeladores, atendentes… Negros!
Ainda no mesmo artigo, a autora menciona que a mãe dessa criança confessou-lhe que a única vez que a menina andou na calçada de uma rua foi numa recente viagem a Paris! Que até então, a menina só andara dentro do condomínio, dentro do shopping ou dentro de carro blindado…
A realidade retratada nessa breve história leva à reflexão sobre duas mazelas brasileiras: o racismo e a violência.
Mesmo sem contar com profundos conhecimentos de Antropologia e Psicologia Social, ouso afirmar que os dois fenômenos estão profundamente interconectados.
No Brasil, durante muito tempo, alardeou-se o mito de que éramos uma sociedade sem racismo, onde negros e brancos viviam em harmonia. Pura mentira. Vivemos em harmonia? Depende do ponto de vista. Se harmonia significar – de maneira especial nos grandes centros urbanos -, brancos ricos fechados em condomínios e negros pobres aquartelados em favelas, assim como negro receber tratamento “diferenciado” por parte das autoridades, independentemente de sua condição social, a resposta poderia ser positiva.
O racismo à brasileira é disfarçado sim. Eufemisticamente oculto em símbolos e atos – pouco perceptíveis -, aos mais desatentos. Talvez, por esta razão, seja mais difícil de extirpar. Como toda verdade que insistimos em ocultar, o racismo segue atenuado, protegido por óculos de lentes coloridas, que teimamos em usar, e que nos impedem de enxergar a realidade… Isso é hipocrisia!
A maioria dos presidiários é negra. A maioria dos pobres é negra. A maioria dos subempregados é negra. A maioria dos negros não tem acesso à boa educação. A maioria dos negros não tem emprego digno. A maioria dos crimes de assalto é praticada por negros. Na maioria dos altos empregos não há negros. Na maioria dos cargos públicos não há negros. Na maioria das casas do Legislativo ou nos Tribunais, quase não há negros. A maioria dos negros ocupa os empregos menos qualificados e de menor salário do setor produtivo.
Há algo errado se consideramos que negros e pardos (outro eufemismo demográfico) são a maioria da população brasileira…
Onde dormem as “pessoas marrons”? A maioria dorme em casebres, nas periferias, aonde chegam após horas de aperto em ônibus ou trens lotados, onde encontram seus filhos, também “marrons” mal cuidados, sem terem ido à escola, sem terem tido uma alimentação adequada, muitos entregues à própria sorte, cuidando uns dos outros durante o dia, pois não há creches suficientes.
Mas esse problema é tão complexo que é impossível tratá-lo adequadamente nessas poucas linhas que escrevo.
O fato é que a hipocrisia racial brasileira, que impede que se enfrente adequada, consciente e corajosamente o problema, levou ao óbvio: à explosão da violência social.
A solução adotada? A proliferação das Alphavilles Brasil afora. A blindagem de automóveis, a fuga para Miami.
Essa violência que obriga a classe média branca a se aquartelar produz crianças como aquela do artigo, com informação deturpada da realidade e, por conseguinte são mal formada. Crianças que nunca andaram na rua, que veem a vida pela janela de um carro blindado, que só têm contato com negros que lhes servem e que, no futuro, diante dessa falsa realidade que as cerca, tenderão a achar que essa situação é normal e que essa é mesmo a natureza das coisas, o status quo a ser mantido…
E assim, continuaremos, até sabe-se lá quando.
No Brasil, ainda não temos loucos (graças a Deus!) como o rapaz de Charleston, na Carolina do Sul (EUA), que atirou e matou nove negros. Mas temos outras formas mais sutis de extravasar nosso racismo, condenando os brasileiros negros a uma vida de pobreza e de subserviência.
Pessoas criam seus filhos segregados, entre os que lhes são “iguais”. Os Condomínios os protegem. Blindam carros. Porém, a realidade insiste em se mostrar e, de vez em quando, as obrigam a encará-la, tristemente, sob a forma de uma tragédia, que lhes subtrai a vida.
Nesse Brasil, tão desigual e tão socialmente doente, ainda estamos longe da utopia de Luther King de que um dia todos seriam tratados e julgados não pela cor de sua pele, mas sim, pelo conteúdo de seu caráter!
Eugênio Maria Gomes é professor e escritor. Membro das Academias de Letras de Caratinga e Teófilo Otoni e do Núcleo de Escritores e Artistas de Buenos Aires.