José do Carmo Veiga de Oliveira
Em nossa penúltima publicação tratamos de um tema muito relevante para todo cidadão brasileiro, genericamente falando. Abordamos a questão relativa aos direitos fundamentais como garantia para todo aquele que é titular de sua cidadania ou, ainda que relativa ou absolutamente incapaz, tem o direito de coercer o Estado visando alcançar o atendimento em qualquer área de sua existência, e, com mais razão, no que pertine ao direito à saúde, como direito fundamental absoluto. Abordamos naquela oportunidade o fato de que os direitos fundamentais correspondem ao que todo cidadão possui diante do Estado para suprir as necessidades que não possam ser atendidas em virtude das dificuldades individuais e que, ao Estado, compete prover as demandas daqueles que não dispõem de recursos suficientes para custear o seu tratamento de saúde, por exemplo.
Enquanto investidos do poder jurisdicional, compete aos Magistrados garantir a todos os cidadãos os direitos fundamentais, máxime em se tratando de questões ligadas à saúde, em decorrência do disposto no artigo 196, da Constituição da República, de 1988, ao estabelecer que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Do texto constitucional resta claro que a todos será assegurado, mediante garantia da própria Constituição, sob o amparo das políticas sociais e econômicas que visem reduzir a possibilidade de contrair doenças, além de outros riscos de gravidade, bem como ao acesso universal e igual no que se refere às ações e serviços para se promover a saúde, a sua proteção e, especialmente, a sua recuperação.
Qualquer cidadão pode buscar o Poder Judiciário em caso de negativa de algum tipo de assistência médica, hospitalar e de situações em que o Poder Público (assim compreendida a União, o Estado, o Distrito Federal e os Municípios – formadores e integrantes do pacto federativo entre si – art. 1º da CR/1988), nos termos do artigo 196, acima transcrito, tenha a necessidade imperativa de ser atendido pelo Sistema Único de Saúde, conhecido pela sigla SUS e que se encontre diante de um quadro de absoluta dependência de assistência médica, sob os cuidados exclusivos de hospitais ou outros centros de tratamento, em que a sua necessidade seja tal que somente os serviços públicos de saúde tenham a possibilidade de lhe proporcionar atendimento. Essa afirmativa tem o condão de assim estabelecer, por força constitucional, no que pertine aos Órgãos Públicos, máxime pelo inciso XXXV, do art. 5º, da CR/88.
No entanto, o próprio texto constitucional, em seu artigo 196, estabelece que “são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.” Esse texto é de clareza solar e meridiana, ou seja, ninguém pode dizer ou se negar a atender qualquer paciente que esteja vinculado a um plano de saúde, exatamente em virtude de que, inicialmente, deve-se considerar a contratação de um seguro saúde por meio do qual toda a assistência esteja garantia ao consumidor, ou seja, àquele que contratou com a pessoa física ou jurídica de direito privado, a necessária e indispensável garantia de assistência em caso de se ver acometido por algum mal, de que natureza for.
De outro lado, se eventualmente, seja de parte do SUS ou de qualquer plano/seguro de saúde, envolvido em situação sob a qual se veja ao desamparo, apesar das disposições constitucionais acima transcritas, pode o cidadão, inequivocamente, buscar no Poder Judiciário o necessário amparo para que seja regularmente atendido, já que não se pode excluir de sua apreciação lesão ou ameaça a direito, assegurando-se pleno acesso à jurisdição como direito fundamental.
Existem situações em que as cláusulas contratuais são consideradas como pactos celebrados entre as partes contratantes, ou seja, consumidor e pessoas jurídicas de direito privado – planos de saúde – e assim, em certas circunstâncias, é possível ao Estado-Juiz, nos termos do artigo 51, do Código de Defesa do Consumidor, declarar a nulidade da cláusula impeditiva do tratamento médico ou qualquer outro tipo de assistência de que necessite o segurado. Dessarte, é de se determinar que o atendimento seja prestado, sob pena de multa a ser fixado na própria decisão que amparar o pedido formulado pela parte necessitada, ficando a critério do Julgador a fixação de seu montante ao receber a pretensão deduzida pela parte necessitada para o atendimento de qualquer tipo ou natureza, em hospital público ou privado.
Lembremos que nem sempre se tem possibilidade de esperar com vagar e tempo o atendimento ou decisão sobre essa ou aquela terapia e/ou assistência médica, devido à gravidade do estado de saúde do paciente. Pode ocorrer o seu agravamento e até mesmo a sua morte. Assim, ocorrerá o que o Direito Francês denomina de perte d’une chance, ou, segundo o sistema common law dos ingleses, loss of a chance e, em qualquer dos dois idiomas, implica, na verdade, na perda de uma chance que, aplicada ao capítulo da responsabilidade civil, conspira contra aquele que não atendeu convenientemente a necessidade do paciente ou moribundo, deixando-o, por vezes, perecer e finalmente, morrer à míngua.
Assim, o segurado pode tanto contratar um advogado particular ou socorrer-se da Defensoria Pública e, em situações que tais, até mesmo ao Ministério Público – por meio da Promotoria da Saúde -, na ausência de algum tipo de serviço próprio dessa natureza, para lhe assegurar esse tipo de atendimento jurídico. Há casos de se requerer ao Judiciário a nomeação de um Advogado para patrocinar esse tipo de demanda visando a reparação ou compensação por danos morais. E nos dias que correm milhares de ações são ajuizadas perante o Poder Judiciário, para que esse tipo de assistência seja prestado.
Existe ainda um argumento que vem ganhando espaço no meio jurídico de assistência à saúde, sobretudo, de parte do próprio Estado (entenda-se União, Estados, Distrito Federal e Municípios), ao fundamento de que não há numerário ou orçamento suficiente a atender a todas as demandas na exata medida da necessidade que se lhes apresenta, porque os recursos são escassos. No entanto e, com o devido respeito aos que sustentam tal entendimento, essa questão não é de responsabilidade do Poder Judiciário, pois, a esse “Poder” da República[1], pela sua própria existência estabelecida na Constituição de todo País civilizado, compete apenas entregar a prestação jurisdicional, ou seja, julgar, acolhendo ou rejeitando os pleitos formulados, com decisões devidamente fundamentadas, como instrumento de fazer-se justiça às partes litigantes.
A existência ou não de recursos orçamentários, de medicamentos autorizados ou não pela ANVISA – Agência Nacional de Saúde e tantos outros mecanismos de assistência do Estado são temas que lhes compete em razão de suas atribuições de ordem administrativa e jamais ao Judiciário. Afirma-se, dessa forma, porque isso foge de sua esteira de competência segundo a própria Constituição, pois, dispõem os artigos 102 e seguintes, que a guarda da Constituição compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente e, assim, aos demais órgãos fracionados do Judiciário em todas as suas áreas de atuação.
Logo, o tratamento que é recomendado pelo médico ou equipe médica que assiste o paciente é que deve ser acolhido e esse sempre foi o caminho adotado para efeito de se decidir situações que tais. Inequivocamente, consiste até mesmo em um dos fundamentos da República, inserto no inciso III, do seu artigo 1º, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Dessarte, a responsabilidade é do Estado para assistir ao cidadão, necessitado ou não, dentro da perspectiva de sua dignidade e respeito que lhe são devidos.
Por isso tratamos dos direitos fundamentais, inicialmente para, somente ao depois, entrarmos nessa temática que está contida entre os direitos fundamentais do cidadão, mesmo fora do contexto do art. 5º (que prevê em seus 78 incisos “alguns” direitos fundamentais, porque não seria possível conter todos eles nesse único dispositivo[2]) dispensada a sua regulamentação e entrando imediatamente em vigor após a promulgação da Constituição da República, de 1988, nos termos do que edita o § 1º do seu artigo 5º, assegurando que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Quer isso dizer, dispensa-se qualquer tipo de regulamentação por meio de lei complementar, lei ordinária e menos ainda decretos, resoluções, portarias, etc. etc. Saúde é direito do cidadão e dever do Estado.
[1] É fato que não existe tripartição de “poderes”. O correto é considerar como “função do Estado”, não segundo Montesquieu, mas, conforme Giambattista Vico, em sua obra intitulada Una Ciencia Nueva, escrita no Século XVIII.
[1] O legislador constituinte americano, em 1787, teve por concluída a elaboração da Carta Constitucional, sem enumerar os direitos e garantias fundamentais sob o argumento de que poderia haver tantos direitos ainda retidos pelo povo que não poderiam incorrer na incúria de nomeá-los sem os conhecer em sua integralidade. Por isso, não apresentaram um “rol de direitos fundamentais” como no Brasil. Conclui-se, portanto, quanto à sabedoria desses cidadãos, homens dados à lavrar a terra e cortar lenha, como Abraham Lincoln. No Brasil isso aconteceu em virtude de sua saída de um regime forte que conduziu os seus destinos por mais de duas (2) décadas. A mesma situação ocorreu na Argentina, Uruguai, Paraguai e, para não ficar na América do Sul, citamos Portugal, Espanha e Itália.