*José Geraldo Batista
O poema “Morte do Leiteiro” faz parte de um livro conhecido como A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, os poemas que contemplam este livro apresentam um conteúdo dramático que não decorre só da qualidade da poesia em si mesma, mas também dos seus elementos de contradição, fazendo crescer assim o ritmo da dramaticidade. Esse fato se transforma num maravilhoso espetáculo de um poeta que procura equilibrar, juntar artisticamente as tendências que o apaixonam em uma época de muitas perturbações e amplas divisões, difíceis para as pretensões de equilíbrio e paz. Aqui é perceptível a procura de um ajustamento entre a consciência política do homem e a arte do poeta. Vejamos um trecho do poema:
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Inicialmente é perceptível a musicalidade com que o poema envolve o leitor. Musicalmente, através do seu lirismo, ele envolve por duas diretrizes: cantar a morte do leiteiro e fazer a crítica social. Existe uma ligação do poema com o tom da crônica, haja vista o desenrolar dos fatos parecer notícia policial. Ligado ao tempo (chrónos), ou melhor, ao seu tempo, o poema, assim como a crônica, atravessa fronteiras por ser um registro poético e muitas vezes irônico. Ele captou o imaginário coletivo em suas manifestações coletivas. Drummond por ter sido também um cronista, aqui, talvez tenha feito uso consciente desta técnica.
A predominância da narrativa pelo poema é inquestionável, há a presença de um herói e muitas qualidades atribuídas a ele, características que nos leva a perceber um tom clássico do gênero épico sendo inserido em episódios do dia-a-dia. O herói leiteiro é o primeiro a se levantar, e então, leva o néctar que dá força a todos na luta brava da cidade grande. Desfazendo-se de uma leitura ingênua, deve-se interpretar o leiteiro como o símbolo do trabalhador das grandes cidades, aquele que enfrenta a labuta cotidiana. É imperioso salientar que não é possível encontrar leite “bom” nos grandes centros, então o leiteiro tem que trazê-lo dos últimos subúrbios. Aqui, evidencia-se uma exaltação das coisas interioranas perante às da cidade, nota-se que o leite bom é para gente ruim. Esta crítica social, presente em todo poema, torna-se muito clara, quando é anunciada a existência de pouco leite no país. O leite pode significar o alimento escasso na mesa do pobre, pois há muita sede e esta sede, por ironia ou intenção, deve significar, mais amplamente, fome.
O narrador poético diz que não tem tempo de dizer as coisas que atribui ao leiteiro, com isso afirma que são muitas as qualidades do herói. Mais a frente, fala que o leiteiro é ignaro, mas note que esta palavra toma um significado doce e, ao contrário do que deveria, faz do leiteiro não um ignorante qualquer, o termo passa a ter um tom de qualidade que no herói significa pureza.
Prossegue o uso da narrativa em terceira pessoa do singular, provocando, assim, um certo distanciamento entre o narrador e os fatos narrados. Ao afirmar que o leiteiro não sabe o que é impulso de humana compreensão, o narrador reafirma seu lirismo social e humano.
Na terceira estrofe, são citados dados pessoais do personagem, ratificando, assim, a semelhança do texto com uma crônica policial. É iniciado um investimento nos efeitos visuais.
O termo “porta dos fundos” atinge dimensões muito maiores se considerarmos o direcionamento dado por esta análise até aqui: ao tomarmos esta posição, o termo passa a representar toda uma máscara de tranquilidade social, quando na verdade, o que temos é muita gente escondida nos fundos, aspirando ao pouco de alimento disponível. E este pouco pode significar não pouco, mas a sobra disponível numa sociedade injusta.
O distanciamento se reduz com o emprego da primeira pessoa do plural, traz o leitor para dentro da cena, e o narrador faz um convite, e levando em conta o imperativo, podemos até dizer que ele ordena que trilhemos o caminho juntos. Para atingirmos os fundos, ou seja, os fundos da nossa sociedade, ele pressupõe que tenhamos que atravessar um beco, e esse trajeto, caminho a ser percorrido, deve ser feito sem barulho. O fato de não haver barulho não significa silêncio. Significa ter os pés no chão, pois barulho não resolve nada, mas conhecimento de causa, sim. Aqui se evidencia um vestígio de engajamento na luta em causa das mazelas sociais.
Pode-se entender que o poeta tenha chamado a atenção das classes marginais de nossa sociedade, que, vez por outra, grita, mas é um grito somente estridente, que pelo fato de não estar amparado não consegue atingir seu objetivo. O vaso de flor no caminho, assim como uma “famosa pedra”, não é apenas ornamental, ele simboliza os encalços que as classes desprestigiadas deverão enfrentar. O cão, o gato e o senhor – que aparece como segunda personagem – significam o outro lado dominante da sociedade. Encerremos com outro trecho do poema:
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
Bem, para quem gostou dessa sugestão de análise ou ficou curioso, sugiro a leitura na íntegra do belo poema “Morte do Leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade.
* José Geraldo Batista é Professor Titular do Centro Universitário de Caratinga – UNEC, membro da ACL – Academia Caratinguense de Letras e colaborador no NUDOC – Núcleo de Documentações e Estudos Históricos. E-mail: [email protected]
Mais informações sobre o autor: http://lattes.cnpq.br/4880280760796122
Um comentário
Márcio
Muito interessante e atual este poema!