São quatro horas, abro a janela e vejo que a minha rua ainda dorme, sob a escuridão da madrugada. Um dente canino, aparentemente normal, começou a doer à meia noite e meia. Queria poder entender porque, pelo menos no meu caso, a dor de dente se inicia, sempre, quando não há a menor possibilidade de paralisá-la com uma boa dose de analgésico.
Levanto-me, ando pela casa – devo ter feito o percurso do quarto à cozinha algumas dezenas de vezes -, e percebo que já são duas horas… Entre ficar deitado com a dor que não cessa e carregá-la como se fosse um maluco pelos cômodos da casa, resolvo corrigir provas. Estou preocupado com a possibilidade de ter carregado a mão na correção por conta deste dente… Talvez tenha que fazer uma revisão nesta tarefa, para não ser injusto com meus alunos.
Meia hora depois, pego o meu celular e procuro por alguém conhecido que esteja on-line… Ninguém! Percebo que a linha da minha dentista foi visualizada a última vez às 02h18min, o que me leva a pensar na possibilidade de ela estar acordada e, talvez, me receite um paliativo até que o dia amanheça. Não, graças a Deus ela já dorme o que me enche de esperança de que ela vá me atender em seu consultório pela manhã. Deixo uma mensagem pedindo que ela me atenda logo no primeiro horário e, em seguida, envio outra mensagem para a minha secretária… Com vergonha, recebo a mensagem de volta, dizendo “tudo bem, pode deixar que cuidarei da agenda”, desejando-me melhoras.
Vou à cozinha e faço um café. Não foi uma boa ideia… O contato do líquido quente com o dente acentuou a dor. Com água fria na boca e a mão segurando o queixo, refaço algumas vezes o percurso da cozinha ao quarto, incluindo desta vez a varanda da sala no trajeto.
Encosto na poltrona e, à mão, poemas de Fernando Pessoa, assinado por um de seus heterônimos, Álvaro Campos. Na décima página, a dor aumenta. Levanto e deixo separados roupas, sapatos, cinto e relógio, a serem usados daqui a pouco.
Ah! Há uma planilha a ser corrigida. Ligo o computador e resolvo a parada. Agora, é só imprimir quando chegar ao trabalho… Mas, será que conseguirei trabalhar? Não posso perder tempo e, assim, ligo a impressora. As primeiras páginas saíram muito boas, já as últimas, saíram com aqueles característicos defeitos da falta de tinta. Abro o armário, as gavetas e nada de tinta reserva. Vou ao quarto de despejo, pego a escada e acesso a parte mais alta da estante, encontrando o famigerado cartucho.
Imprimo uma, duas, três cópias. Depois de acondicioná-las em um envelope, olho para a tela do computador e vejo que, ainda, são 04h45min. Aproveito e dou início ao artigo da semana. Estou intencionado a escrever sobre a “Representação” no Batismo, por conta das minhas duas últimas participações neste sagrado sacramento – especialmente em relação à última, quando meu neto Miguel renasceu pelo Espírito Santo. A tal “Representação”, uma prática que não é exigida – nem proibida pela Igreja -, mas que habita a invencionice de muitos fiéis, principalmente os residentes por estas bandas das Minas Gerais. Desisto do tema, pois é bem possível que eu acabe falando que a Igreja deveria, definitivamente, acabar com algo que causa transtornos e constrangimentos aos padrinhos, simplesmente porque eles não sabem o que fazer durante a cerimônia e, por vezes, costumam receber a indiferença ou a “cara feira” de alguns padres.
Começo, então, a falar desta noite não dormida, doída e incrivelmente produtiva. Agora, neste exato ponto do texto, o sono parece chegar sob os auspícios dos primeiros raios do sol. Mas, de que forma dormir se a vontade é arrancar, no alicate, um dente que não para de latejar?
Lembro-me, mais uma vez, que dor de dente é como gente ruim, pois quanto mais se pensa nela, mais ela incomoda o que me leva a prosseguir com as atividades. Com as minhas desculpas pelo relapso com a economia de água, tomo um banho demorado. Recebo uma mensagem da minha dentista marcando horário e receitando um antiinflamatório.
No trabalho, tomo o remédio, participo das reuniões agendadas e, às 11h00min recebo a tão esperada agulhada da anestesia e a abertura do dente. Canal! Quase durmo no consultório. No caminho até o carro, com a boca torta e parte do rosto paralisado, nunca encontrei tanta gente conhecida em um percurso tão pequeno. Parece que todos os que me conhecem resolveram dar uma força para a careta – prima irmã do Cerveró -, aparecer.
Incrível, mas consegui produzir muito ao tentar me esquecer da dor. Estou pensando… Pensando… Lembrando-me de alguns políticos… Até que uma dorzinha de dente para essa turma pegaria bem…
Nada! Com certeza, eles criariam partidos como o PB – Partido dos Banguelas -, o PD – Partido dos Desdentados -, o PT – Partido do Tiradentes… Sim, essa turma gosta de inventar!!!
* Eugênio Maria Gomes é professor e escritor.