ELE SE FOI, EM UM BARCO DE PAPEL

  • Eugênio Maria Gomes

Os sessenta anos vão chegando e, com eles, a nostalgia. Na pauta de hoje, boas lembranças de minha infância. A cada estiada de chuva, lá estava eu aproveitando o resto de correnteza, em um canto da rua, para soltar o meu barquinho de papel. No começo, ainda com a rua sem asfalto, a lama tomava conta das pernas no gostoso processo de alcançar um pouco de água em movimento. Depois, já pisando em calçamento, o canto formado pela rua e o meio fio era sempre o lugar ideal para a navegação do barco.

Eu aprendi a fazer barco de papel com o meu avô Cantídio Marques, um homem tão presente em minha vida, que depois de tantos anos sem a sua presença, meu peito ainda dói quando a sua imagem me vem à lembrança. Ele era alto, magro, cabelos brancos, extremamente hábil em sua função de funileiro e, também, no trato com os netos. Primeiro, ele me ensinou a fazer um chapéu de papel e, a partir dele, dobrar mais uma vez e transformá-lo em um barquinho. E o barquinho, descendo pela enxurrada, era muito mais que um objeto flutuando sobre as águas… O barquinho levava sonhos, fantasias e, a cada vez que era colocado na água, também deixava esperança e alegria.

Em certo Natal de minha infância, eu ganhei de presente um barco de plástico. Uma novidade para aquele menino franzino, lá do Bairro Limoeiro. Na verdade, era uma lancha branca, com uma pequena vela azul. Na primeira chuva, após recebê-la de presente, embrulhada em papel celofane, corri para a rua e, junto ao meio fio, deixei que ela fosse levada pela correnteza. Mas, a brincadeira já não era mais a mesma, pois tinha de correr ao seu lado, a fim de pegá-la de volta, para que não se perdesse bueiro abaixo. Eram várias idas e vindas, levando e trazendo a pequena lancha. Em pouco tempo eu estava cansado da brincadeira e, sentado ao lado do meu avô, em sua casa-oficina, construía com ele barcos e barcos de papel. Construíamos barcos brancos, amarelos, azuis… E tão bom quanto construir barcos, era poder colocá-los na água e vê-los sumir, ao longe, em uma boca de lobo qualquer.

No último dia do ano, de um tempo longínquo de minha adolescência, acordei animado para os preparativos de mais um aniversário. Já não brincava mais na enxurrada, já não enlameava as pernas após a chuva e já não sentava mais ao lado de meu avô para fazer barcos de papel. Há alguns meses ele caíra doente e, a cada visita ao seu leito, mais magro, fraco e triste eu o percebia. Ele foi sumindo aos poucos, lentamente, até que, justamente no dia do meu aniversário, ele partiu. Vovô Cantídio partiu em um barco de papel, levando embora, naquela viagem, a nossa alegria. Mas, como toda boa viagem de barco de papel que se preze, antes mesmo de vê-lo sucumbir, ao longe, em um bueiro, ele sinalizou que estava deixando esperança e boas lembranças. Aquela última viagem do barco de papel deixou uma gostosa saudade de um tempo que, infelizmente, não volta mais.

Ah! Que saudades do meu avô… Que saudades do tempo em que eu fazia e brincava com barquinhos de papel.

  • Eugênio Maria Gomes é professor e escritor.