Quando a lente pede silêncio

Há sempre um instante, antes de uma fotografia, em que o mundo segura o fôlego. É o segundo em que o dedo paira sobre o botão e todos, por reflexo, tentam caber dentro de uma narrativa que não criaram. No Parque Indígena do Xingu, esse segundo durou mais do que deveria. Durou o suficiente para que um país inteiro reconhecesse o gesto miúdo e violento de mandar esconder os celulares, como quem esconde um defeito.

A tentativa não era nova. A história sempre pediu para que os povos originários coubessem em molduras que não lhes pertencem: a do “selvagem puro”, do “guardião da floresta”, da “persona ancestral” que nunca acessa tecnologia, que não vive o presente, que não tem desejo nem autonomia. O Brasil, distraído, gosta de indígenas congelados em livros didáticos e campanhas publicitárias. Quando eles aparecem conectados, filmando, criando, vivendo, inquietam. Desorganizam um imaginário preguiçoso. É como se o país só aceitasse os povos originários se eles coubessem na fantasia do colonizador tardio.

E então surge o pedido, quase sussurrado, mas firme: o celular! Não porque ele não deveria existir, mas porque atrapalha a estética. O problema não era o aparelho, era o fato de que ele lembrava que os indígenas são sujeitos do agora, conectados, politizados, com agência. O gesto dizia mais sobre quem pediu do que sobre quem obedeceu. Era o incômodo diante da quebra da fantasia.

O celular na mão de um indígena é, para muitos, uma afronta política. É a prova de que eles não pertencem ao passado onde insistem em colocá-los. É a recusa do exotismo turístico. É o fim do papel decorativo. E talvez por isso doa tanto. Porque reafirma que aquilo que chamam de “tradição” não é museu – é vida em movimento.

No vídeo, o constrangimento desliza no ar como poeira quente. Eles abaixam os aparelhos talvez não por vergonha, mas por uma cortesia ancestral que o Brasil não merece. Um respeito silencioso, desses que só quem já viveu a história inteira sobre os ombros consegue oferecer. Mas o quadro final, mesmo cuidadosamente composto, já estava manchado. Nada é mais eloquente do que aquilo que tentam esconder.

Fico pensando na crueldade suave desses pedidos. Não são agressões explícitas, são pequenos enquadramentos, ajustes de luz, cortes de realidade. O tipo de violência que não deixa roxo, mas deixa marca. A violência da edição. “Quanto mais celulares de vocês aparece, acho que menos é a cultura de vocês.” Uma fala infeliz. Uma compreensão equivocada. Uma atitude rude.

Há tempos o Brasil tenta enquadrar os povos originários dentro de um álbum colonial que já deveria ter sido queimado. Mas eles seguem com celular na mão, wi-fi precário, câmeras nem sempre focadas. E é justamente aí que reside a beleza: na recusa de viver de acordo com a lente alheia.

O que Luciano Huck pediu ali não foi apenas que escondessem celulares. Pediu que escondessem o presente. Pediu que apagassem a fricção entre mundos. Pediu que posassem para uma foto limpa, confortável, vendável. Como se a modernidade coubesse só em algumas mãos, ricas, privilegiadas, brancas, não indígenas.

Mas o Brasil real é outro. O Brasil real tem indígenas que filmam, postam, denunciam, estudam, gravam reels, ocupam universidades, registram a própria história com a própria mão. Indígenas deputados. Indígenas ambientalistas. Um país em que os povos originários não precisam pedir permissão para existir fora da fantasia de ninguém.

E talvez essa seja a imagem que mais assuste: a de um povo que não aceita mais ser cenário.

No fim, fico com a fotografia que não foi tirada, aquela em que os celulares permaneceriam erguidos, iluminando o rosto de quem não deve satisfações a lente nenhuma. Essa imagem, sim, teria sido verdadeira. E, como toda verdade, teria sido bonita.

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