Eu estava no centro do Rio de Janeiro, exatamente na Avenida Rio Branco, retornando do doutorado para casa e indo pegar o metrô, quando fui abordada por um grupo de crianças, que me disseram: -Tia passa o celular! Naquele momento eu não entendi o que estava se passando, pois olhava para elas e me pareciam “tão bonitinhas”. Confesso, fiquei inerte, sem saber o que fazer, quando um homem, me chama em voz alta da seguinte forma: – Meu amor, estou lhe esperando já faz bastante tempo, como demorou a chegar? Nesse momento, fiquei ainda mais estagnada, pensando que ele era o chefe daquelas crianças. No entanto ele me abraçou e me levou até a estação do metrô.
Aquelas imagens me perseguiam e me fez refletir passo a passo sobre aquela situação. Comecei a levantar as seguintes questões: 1)o cidadão (no caso, eu) apreensivo e o medo da violência urbana. 2) O que leva essas crianças a furtarem um celular, e caso não fosse a presença daquele homem, o que poderia ter me acontecido? 3) Essas crianças representam uma ameaça a sociedade? 4) Encarcerá-las? 5) Se não, políticas públicas para resgate da cidadania e dignidade seria o ponto certo para resolver a situação?
Concluí que é uma questão de cunho social no sentido de que o desejo privado dessas crianças passa para outro plano, o público. Assim a necessidade de uma construção de uma nova sociedade, onde o valor humano é o ponto central. As ameaças que sofremos cotidianamente diante do caos urbano e da onda da violência que atinge nossa rotina se reproduz a todo instante. Voltei imaginariamente ao meu curso de Direitos Humanos nas Ciências Sociais e me lembrei de Christophes Lasch quando ele enfatiza que “em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia de cada vez”.
Quem motiva o medo e por que o motiva?
Li um artigo que revela que as pessoas preferem comprar primeiro uma televisão e depois a geladeira. É de se convir que realmente ficamos vulneráveis aos anúncios da mídia. A propaganda de um tênis, de um relógio, de um celular, desperta em todos nós o desejo de possuirmos estes objetos. Não queremos mais somente a moradia, a comida, ou seja, o básico, mas aliado a esses temos também o desejo por outras coisas, como essas que estão a todo momento nos instigando a adquirir sem necessidade.
Penso que é ilegítimo a desigualdade social, eliminar as discrepâncias entre os indivíduos é necessário e urgente. No entanto para se comprar um celular é preciso pagar. Mas se eu não posso comprar vou roubar e matar? Entender a democracia a partir dessa perspectiva, ou seja, do momento em que uma criança mata alguém por causa de um objeto. E é contra esses transtornos dessas situações de insegurança, é que a nossa ordem social se vê obrigada a elaborar mecanismos para se construir um Estado de direito válido, mas com inclusão de todos os cidadãos. A Declaração Universal dos Direitos do homem inicia-se com a frase “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Será que nascemos livres e iguais?
Você acha que é necessário encarcerar essas crianças?
Penso que é muito difícil responder essa pergunta e assim vou parafrasear o desembargador Rangel, do Rio de Janeiro: “em um governo democrático as políticas públicas de resgate da cidadania custa caro. É mais fácil, aos reacionários, a eliminação ou a prisão. Para ele diminuir a menoridade penal é pior e perigoso, pois o sistema não recupera o indivíduo.”
Igualdade e respeito são requisitos mínimos para um bom convívio em uma sociedade. No entanto os valores da democracia em nosso país não são para a grande maioria da população. Isso deve ser revisto. Se perguntarmos qual é a ideia de República a reposta não seria a de renunciar o bem próprio em favor do bem comum? Pensei agora em Bauman, um sociólogo que ironiza quando trata dos valores do ser humano, argumentando que através desses é que se define a sua identidade.
Você acha que cada um de nós tem alguma responsabilidade com esta realidade marcada pela violência?
Sim. Vou lhe contar o que se sucedeu comigo após as crianças terem me abordado no centro do Rio. Eu aprendi a relativizar todas as experiências negativas que acontecem em minha vida.
Desde então me integrei a um grupo de pessoas que tem como objetivo minimizar os sofrimentos desses que vivem na rua, debaixo dos viadutos, das pilastras. Vamos até essas pessoas, convidando-as para almoçar e as conduzimos para um espaço cedido pela Igreja Santa Cecília. Lá elas tomam banho, cortam cabelo e as unhas, passam pelos médicos e depois vão almoçar. Em primeiro lugar antes do banho, é necessário serem entrevistadas. Como eu gosto muito de falar, de quere entender os fenômenos, no caso porque existe um grande número de pessoas que vivem na rua, sem vontade de voltar para a casa, faço parte da equipe da entrevista. E assim eu começo: Qual é o seu nome? Tem documento? Mora aonde? Almoça? Porque saiu de casa? Porque não vai para um abrigo? E a última pergunta é ‘tem celular?’
A maioria da resposta é que gostam de viver na rua, não querem ir para um abrigo, porque não gostam de obrigações. Tomam café de manhã nos restaurantes populares pagando trinta centavos por um pão com manteiga, leite e café, ou Nescau. Que ainda almoçam no restaurante popular pagando um real: carne, frango, arroz, feijão, verduras. Então me surgiu a curiosidade de como conseguem pagar a alimentação e muitos me responderam que é através da venda de papel e latinhas para a reciclagem, outros são aposentados. E o interessante é que existe uma solidariedade entre eles, pagam para o outro quando não se tem o dinheiro para as refeições. E finalizo a maioria deles possuem celular.
Confesso que é uma experiência maravilhosa, apesar do medo, pois não sei qual será a reação deles. Sei que eles sabem da nossa intenção, mas muitas vezes alguns se alteram e reclamam que a fila está grande, e que está sendo demorado para ser atendido. Mas aprendi que podemos transformar a nossa vida marcada pela insegurança aceitando a finitude de nossa condição humana, com o intuito de promover a interatividade entre as pessoas que é cada vez mais liquefeita, expressão essa usada pelo sociólogo Zygmant Bauman para compreender essa realidade em “que estamos vivendo, marcada pela violência e na falta de confiança da coletividade social.”
Mas quer saber se eu cheguei em casa no dia do “quase assalto”? Sim, e agradeço aquele cidadão que foi o meu anjo da guarda, mas não sei como ele se chama e nem onde mora. “Ser responsável pelo outro e ser responsável por si mesmo, vêm a ser a mesma coisa”. Obrigada Deus pelo meu anjo da guarda!
Margareth Maciel de Almeida Santos
Advogada e doutoranda em Ciências Sociais.
Pesquisadora CNPQ.