Eu já contei para vocês que eu estava no centro do Rio de Janeiro, exatamente na Avenida Rio Branco, retornando do doutorado para casa e indo pegar o metrô, quando fui abordada por um grupo de crianças. Ontem, quando estava saindo da faculdade para a Ordem dos Advogados, do Rio, tentaram me assaltar novamente. Outro menino veio me abordar, ao mesmo tempo em seu colega ‘levou’ o celular de uma amiga. Eu disse, tentou me assaltar, mas eu levo apenas um do modelo bem antigo, penso que eles não iriam se interessar, mas a minha amiga estava falando ao “celular” quando o menor o puxou de sua mão. Foi um susto, pois ela estava desatenta para o que estava ocorrendo ao seu redor, e eu como sempre não consigo reagir.
Retornaram as mesmas imagens que me perseguiram quando este episódio ocorreu comigo pela primeira vez (relatadas no artigo publicado na edição do DIÁIRO de 10 de maio de 2015) e me vieram as mesmas reflexões: 1) o cidadão (no caso, eu) apreensivo e o medo da violência urbana. 2) O que leva essas crianças a furtarem um celular? 3) Essas crianças representam uma ameaça a sociedade? 4) Encarcerá-las? 5) Se não, políticas públicas para resgate da cidadania e dignidade seria o ponto certo para resolver a situação?
Concluí mais uma vez que é uma questão de cunho social no sentido de que o desejo privado dessas crianças passa para outro plano, o público. Assim a necessidade de uma construção de uma nova sociedade, onde o valor humano é o ponto central. As ameaças que sofremos cotidianamente diante do caos urbano e da onda da violência que atinge nossa rotina se reproduz a todo instante. “Em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia de cada vez.”
Baseadas nesta experiência foram formuladas as seguintes perguntas:
Você pensou em fazer uma ocorrência?
Sim, dessa vez, como estava com uma amiga, foi melhor para refletirmos, pensarmos o que poderíamos fazer. No intuito de registrar, demonstrar para o Estado, para a população, que a situação está caótica, mas que não podemos ficar inertes; dirigimo-nos aos policiais, mesmo sem a esperança de que algo melhor possa acontecer. Mas o importante é que fomos e fizemos nosso papel de cidadãs.
O que é preciso levar em conta, é que antes da infração penal (tentativa de roubo e morte, ou latrocínio), o que se questiona é se a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos seria uma medida eficaz para diminuir a violência? Poderia se colocar no mesmo patamar do cumprimento das penalidades criminais um adulto e um adolescente?
O susto que havíamos acabado de passar nos levaria a responder emocionalmente, ou seja, diríamos que eles deveriam ser encarcerados para sempre, por outro lado, pensando racionalmente defender a maioridade penal está longe de avaliar as consequências que isso pode acarretar para esses menores, se enveredando ainda mais para o mundo do crime. Sei que a sensação de impunidade cresce ao mesmo tempo em que isso significa que não está havendo um cumprimento das medidas sócio educativas e isso é comprometedor porque o menor também não está submisso ao crivo do Código Penal.
Você acredita que o número de menores que cometem violência seria maior que o número de adultos?
Li uma pesquisa da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que revela que apenas 20% da população menor de 18 anos em regime de reclusão reincidem nas infrações penais, contra um percentual de até quatro vezes mais para a população carcerária adulta. E que somente 3% dos crimes violentos no país são cometidos por menores de 18 anos.
O que está em jogo sobre a redução da maioridade penal?
Eu entendo que são os delitos penais e penalidades diferentes. O menor infrator não é chamado de detento, como o adulto acima dos 18 anos e sim de jovens em situação de vulnerabilidade social, e muito menos é preso, mas apreendido. E quaisquer que tenham sido seus delitos penais, não podem cumprir penas acima dos três anos e são liberados automaticamente ao completarem os 21 anos de idade.
Não sei se é utopia da minha parte, mas acredito que o adolescente pode ser transformado, e isso não se dará pela quantidade de tempo que ele ficará na prisão, mas sim pelas possibilidades que nos são apresentadas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), as chamadas políticas públicas. Se a diminuição da maioridade ira atender o clamor da sociedade, penso que é necessário atribuir a isso a seguinte questão: Qual é a origem do problema? Seria social? O que está por trás dessa onda de violência? Estas são questões que precisam ser pensadas.
Você pensa que o consumo, ou seja, o ter, exerce muita influência sobre esses menores?
Quando você me perguntou o que está em jogo, volto a comentar um artigo que, inclusive que eu já citei em sua entrevista, e que revela que as pessoas preferem comprar primeiro uma televisão e depois a geladeira. É de se convir que realmente ficássemos vulneráveis aos anúncios da mídia. A propaganda de um tênis, de um relógio, de um celular, desperta em todos nós o desejo de possuirmos estes objetos. Não queremos mais somente a moradia, a comida, ou seja, o básico, mas aliado a esses temos também o desejo por outras coisas, como essas que estão a todo o momento nos instigando a adquirir sem necessidade.
Penso que é ilegítimo a desigualdade social, eliminar as discrepâncias entre os indivíduos é necessário e urgente. No entanto para se comprar um celular é preciso pagar. Mas se eu não posso comprar vou roubar e matar? Entender a democracia a partir dessa perspectiva, ou seja, do momento em que uma criança mata alguém por causa de um objeto. E é contra esses transtornos dessas situações de insegurança, é que a nossa ordem social se vê obrigada a elaborar mecanismos para se construir um Estado de direito válido, mas com inclusão de todos os cidadãos. A Declaração Universal dos Direitos do homem inicia-se com a frase “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Será que nascemos livres e iguais?
Igualdade e respeito são requisitos mínimos para um bom convívio em uma sociedade. No entanto os valores da democracia em nosso país não são para a grande maioria da população. Isso deve ser revisto. Se perguntarmos qual é a ideia de República a reposta não seria a de renunciar o bem próprio em favor do bem comum? Pensei agora em Bauman, um sociólogo que ironiza quando trata dos valores do ser humano, argumentando que através desses é que se define a sua identidade.
Você me disse uma vez que após ter sido “quase assaltada” aprendeu a relativizar as experiências negativas que acontece em sua vida. Continua ainda a sentir essa responsabilidade mesmo após ter acontecido pela segunda vez, essa tentativa de assalto?
Sim. Lutar pelas causas sociais, por um mundo mais humano, me acompanha desde quando eu era criança. Eu penso que minimizar os sofrimentos desses que vivem na rua, debaixo dos viadutos, das pilastras, convidando-as para almoçar, pois como te disse, as conduzimos para um espaço cedido pela Igreja Santa Cecília. Lá elas tomam banho, cortam cabelo e as unhas, passam pelos médicos, e depois vão almoçar. Em primeiro lugar antes do banho, é necessário serem entrevistadas. Como eu gosto muito de falar, de quere entender os fenômenos, no caso porque existe um grande número de pessoas que vivem na rua, sem vontade de voltar para a casa, faço parte da equipe da entrevista. E assim eu começo: Qual é o seu nome? Tem documento? Mora aonde? Almoça? Porque saiu de casa? Porque não vai para um abrigo? E a última pergunta é tem celular ? O que me chama mais a atenção é ver as crianças acompanhando os adultos, e esse acompanhar, é a cada frase, a cada ato. Atentos a tudo e a todos. Seria isso um problema?
A maioria da resposta é que gostam de viver na rua, não querem ir para um abrigo, porque não gostam de obrigações. Tomam café de manhã nos restaurantes populares pagando trinta centavos por um pão com manteiga, leite e café, ou Nescau. Que ainda almoçam no restaurante popular pagando um real: carne, frango, arroz, feijão, verduras. Então me surgiu a curiosidade de como conseguem pagar a alimentação e muitos me responderam que é através da venda de papel e latinhas para a reciclagem, outros são aposentado. E o interessante é que existe uma solidariedade entre eles, pagam para o outro quando não se tem o dinheiro para as refeições. E finalizo a maioria deles possuem celular.
Confesso que mesmo diante de tanta desigualdade, ver tanta discrepância naquele que pode ser criado com “dignidade” e do outro que é excluído, é uma experiência maravilhosa, apesar do medo, pois não sei qual será a reação deles. Sei que eles sabem da nossa intenção, mas muitas vezes alguns se alteram e reclamam que a fila está grande, e que está sendo demorado para ser atendido. Mas aprendi que podemos transformar a nossa vida marcada pela insegurança aceitando a finitude de nossa condição humana, com o intuito de promover a interatividade entre as pessoas que é cada vez mais liquefeita, expressão essa usada pelo sociólogo Zygmant Bauman para compreender essa realidade em “que estamos vivendo, marcada pela violência e na falta de confiança da coletividade social.”
Deixo aqui um questionamento: Se a sociedade quer a redução da maioridade, devemos pensar: Como fazer essa redução para que possa ocorrer uma maior eficácia na diminuição da criminalidade, ao mesmo tempo em que esses menores possam ser transformados e viverem com dignidade?
Margareth Maciel de Almeida Santos
Advogada e doutoranda em Ciências Sociais.
Pesquisadora CNPQN