Obra do cientista das religiões José Aristides da Silva Gamito traz uma análise de como alguns grupos de cristãos do século II (depois de Cristo) concebiam a identidade de Jesus
DA REDAÇÃO – O evangelho apócrifo de Tomé foi encontrado em dezembro de 1945 por alguns felás (beduínos egípcios) que se deslocavam com seus camelos por perto de um rochedo chamado Jabal al-Tarif, que margeia o rio Nilo, no Alto Egito, não muito longe da cidade de Nag Hammadi. Dentro de um jarro selado, encontraram 13 papiros encadernados em couro, escritos em copta. Decepcionante, pra quem esperava encontrar algo “valioso”, como ouro. Porém, com o passar do tempo, esse documento ganhou notoriedade e se tornou alvo de estudos, como o feito pelo cientista das religiões, José Aristides da Silva Gamito, que acaba de lançar o livro “O Evangelho de Tomé: A Outra Face de Jesus” (Fonte Editorial).
José Aristides é morador de Conceição de Ipanema e professor do Seminário Diocesano de Caratinga. A divulgação da obra acontece este mês nas redes sociais e nas cidades de Conceição de Ipanema, Caratinga, Manhuaçu e Vitória (ES). Segundo o autor, a obra vem preencher uma lacuna nas publicações nacionais sobre a literatura e a história do cristianismo dos primeiros séculos e dedicadas exclusivamente aos evangelhos apócrifos. José Aristides faz uma análise de como alguns grupos de cristãos do século II (depois de Cristo) concebiam a identidade de Jesus. O livro aborda a história da redação dos evangelhos, de como foram preservados os ensinamentos de Jesus e enfoca o evangelho apócrifo de Tomé como uma antiga fonte de conhecimento sobre Jesus.
Nessa obra, Jesus não é identificado com o Cristo, filho de Deus, mas como mestre de sabedoria divino e misticamente elevado. É um documento que testemunha a evolução da compreensão de Jesus como o Cristo. Além do mais, a obra serve como uma importante introdução à literatura do cristianismo primitivo, ampliando o conhecimento daquelas crenças para além do Novo Testamento. Toda a pesquisa foi desenvolvida durante o mestrado em Ciências das Religiões na Faculdade Unida de Vitória (ES), sob a orientação do professor José Adriano Filho.
A ENTREVISTA
Como surgiu o interesse de estudar o Evangelho de São Tomé?
Leio sobre evangelhos apócrifos desde 2006, quando cursava teologia no Seminário Diocesano Nossa Senhora do Rosário. Mas a oportunidade de me aprofundar academicamente nesta área aconteceu apenas em 2016 durante o meu mestrado em Ciências das Religiões. A minha pesquisa se concentrou na literatura do cristianismo primitivo, então, desenvolvi minha dissertação sobre a identidade de Jesus transmitida por este evangelho. O meu interesse surgiu por causa da influência da filosofia médio-platônica em alguns trechos do Evangelho de Tomé. A minha primeira formação é filosofia. Nesses últimos anos, tenho publicado artigos, divulgado vídeos a respeito da literatura do cristianismo primitivo, principalmente, sobre os textos apócrifos. Enfoco, sobretudo, a relação entre as origens do cristianismo e a filosofia grega.
Por que “A outra face de Jesus?”
O título é mais uma necessidade editorial. A “outra face” quer dizer que no Evangelho de Tomé encontramos uma identidade de Jesus diferente daquelas concebidas pelos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e de João. Jesus para Tomé era a sabedoria divina encarnada. Este evangelho não utiliza o título “Cristo”. Não se trata de outro Jesus, mas, de outro ponto de vista. O evangelho representa um estágio bem primitivo da crença em Jesus.
Sobre estes evangelhos, atualmente há um forte interesse pelo atribuído a Maria Madalena. O que ele tem de tão relevante a nos dizer?
Sim. Há uma curiosidade no imaginário popular sobre como Jesus conviveu com o sexo feminino. Os debates sobre o papel da mulher no cristianismo abriu espaço para um mercado editorial que explorou bastante a figura de Maria Madalena. Por um lado, esta busca pela existência de lideranças femininas no cristianismo primitivo é importante, positiva e bem-vinda no meio acadêmico. Por outro lado, fora da academia, a questão foi apresentada de modo muito sensacionalista. Muito se explorou a possibilidade de Maria Madalena ser a companheira de Jesus. Aliás, isso vem de uma interpretação forçada de uma passagem do Evangelho de Filipe. Não há evidências de que Jesus fosse casado ou tivesse uma companheira. O que torna o Evangelho de Maria surpreendente é o fato de que ele mostra uma discípula de Jesus exercendo liderança, tendo destaque dentro de um grupo predominantemente masculino. Como sabemos, por razões culturais, o cristianismo institucional foi predominantemente dominado pelos homens ao longo da história. Mas neste evangelho, Maria é líder, encorajadora, teve acesso a ensinamentos de Jesus que os demais discípulos não tiveram. Sua posição provocava ciúmes entre os discípulos. O Evangelho de Tomé descreve uma cena na qual Pedro rivaliza com Maria e somente Jesus a defende como digna de entrar no reino dos céus. A meu ver, Jesus e Maria Madalena eram amigos muito próximos. Daí o motivo para a especulação de alguns autores. A circulação desses documentos nos primeiros séculos do cristianismo nos revela que, apesar do domínio masculino dos espaços eclesiais, havia comunidades cristãs nas quais a mulher tinha liderança. Mas esses espaços foram perdidos ao longo da história, tanto é que esta tradição dos evangelhos de Tomé, de Maria e de Filipe foi marginalizada.
Em seu entendimento, por que o Primeiro Concílio de Niceia (atual Turquia), ocorrido no Século IV, considerou este evangelho como sendo apócrifo? Seria por causa de seu conteúdo gnóstico?
O Concílio de Niceia não se pronunciou sobre o cânon bíblico. O que circula a respeito disso é uma lenda induzida por um manuscrito grego do século IX. O foco daquele concílio foi discutir a natureza de Jesus. A fixação do cânon do Novo Testamento só aconteceu oficialmente em 397, no Concílio de Cartago. Mas é importante notar que desde cedo havia um núcleo comum aceito pela maioria. Como não havia uma regra universal, havia muitos cânones locais que admitiam outros livros. No cânone muratoriano do século II, admitia-se o Apocalipse de Pedro. Mas deixava algumas cartas de fora. O Evangelho de Tomé era lido por igrejas da Síria e do Egito com finalidade catequética nos primeiros séculos. Pode ter sido usado até em Roma. Seus leitores eram tanto cristãos ortodoxos quanto hereges. Este evangelho foi considerado apócrifo por causa do uso que alguns cristãos heterodoxos faziam dele. Principalmente, a respeito da natureza de Jesus e da moral ascética. O evangelho não é gnóstico. O seu conteúdo não contradiz os evangelhos canônicos. Embora, no início da pesquisa, logo depois da descoberta de seu texto integral em 1945, alguns autores tenham feito essa associação, hoje é consenso na academia de que ele não é gnóstico. Sua primeira versão é tão antiga quanto o Evangelho de Marcos e remonta ao estágio de transição entre a oralidade e a escrita da tradição das palavras de Jesus. A data mais cedo para sua redação é o ano 50 depois de Cristo, na Síria. Portanto, antes do surgimento do movimento gnóstico.
Nestes evangelhos apócrifos Jesus se mostra mais democrático e tolerante? Digamos, um Jesus mais atual?
Há diferentes nuances no tratamento da identidade de Jesus e de seus ensinamentos nos evangelhos apócrifos. Estes evangelhos são vários. No caso específico do Evangelho de Tomé, os ensinamentos de Jesus são exigentes e radicais do mesmo modo dos evangelhos canônicos. E Jesus, na acolhida ao próximo, é tão tolerante como no Novo Testamento. A especificidade de Tomé é que ele fala de uma união divina direta, que é acessada pela interpretação das palavras de Jesus. Cada crente pode se unir com o divino a partir da sabedoria de Jesus, tornando-se imortal. Eu não diria que ele é democrático, diria que ele apresenta uma mensagem de salvação menos dependente da mediação de instituições. Isso vai de encontro com alguns modelos de busca de espiritualidade da atualidade.
Analisando os evangelhos apócrifos, a questão da ‘culpa’, algo que foi atrelado ao cristianismo, ficou de fora. Existe cristianismo sem culpa?
Não. O cristianismo nasce e se constitui com a noção de culpa por causa da existência do pecado. A crença comum a quase todas as vertentes do cristianismo é a de que a vida e a morte de Jesus acontecem para redimir a culpa da humanidade diante de Deus. Isso está presente nos evangelhos apócrifos de diferentes modos. O Jesus do Evangelho de Tomé propõe o retorno do homem à condição divina antes da queda de Adão. Aqueles que conhecem as palavras de Jesus e as interpretam corretamente poderão participar do retorno à condição da imortalidade. Portanto, o cristianismo da comunidade do Evangelho de Tomé tem uma solução para o problema da culpa. Eu diria que a ênfase na culpa não é original do cristianismo, mas da sua fusão com a cultura helenista. As filosofias platônica e estoica, ao se fundirem com as crenças cristãs, contribuíram para o menosprezo do corpo e do mundo. Esta influência pode ser sentida no Evangelho de Tomé. Constantemente, Jesus está dizendo sobre a urgência de se superar o mundo e o corpo. Eles são motivos de aprisionamento. Consequentemente, a moral dos cristãos tomasinos é mais ascética, rígida. Tomé não trabalha com a noção de pecado, mas de privação. Não há cristianismo sem culpa. Se há a noção de pecado, consequentemente, há culpa. O que pode ser diferente é o tratamento da culpa. O ascetismo que menospreza o corpo, censura o prazer, tradicionalmente, tem sua origem em culpas míticas, imaginárias. Isso, de fato, pode ser repensado e deve ser ultrapassado. Mas a culpa pessoal, factual, permanece. Um cristianismo que não cobrasse de seus adeptos uma reparação de suas faltas morais seria irresponsável.
Podemos dizer que o Evangelho de Tomé fala ao coração de um contingente que não para de crescer, que são as pessoas ávidas por espiritualidade, mas que não têm religião?
Quem busca uma espiritualidade mais livre e sem filiação religiosa, pode se sentir fascinado pelo Evangelho de Tomé. A dinâmica do texto possibilita o leitor se sentir dentro de um cenário de audiência solitária entre o crente e Jesus. Do princípio ao fim, o leitor é instigado pela dinâmica verbal do “buscar” e do “encontrar”. Existem muitos movimentos esotéricos hoje que buscam orientações neste evangelho. Porém, o evangelho tem suas exigências morais também como o menosprezo pelas riquezas, pela fama, pelas vaidades. O discípulo do Jesus tomasino tem um estilo de vida semelhante aos antigos filósofos cínicos ou aos hippies. A salvação é pessoal, mas exige um modo de vida simples, avesso às convenções sociais. Não é compatível com o individualismo materialista tão reinante na sociedade contemporânea.
Até hoje esses evangelhos são considerados ‘proibidos’, isso explica a rejeição e o preconceito que algumas pessoas ainda hoje têm em relação aos evangelhos apócrifos?
Na verdade, estes evangelhos não são proibidos. Eles apenas foram marginalizados ao longo da história porque não eram considerados canônicos pela maioria dos cristãos. O fato de eles terem sido utilizados por grupos cristãos heterodoxos gerou um preconceito, uma desvalorização. Ficaram pouco acessíveis. Estou falando de uma forma geral porque cada evangelho apócrifo foi rejeitado pelo cristianismo hegemônico por uma razão específica. O Evangelho de Tomé foi rejeitado mais pelo uso e pela interpretação de seus leitores do que pelo seu conteúdo. Este evangelho é muito próximo dos canônicos. Há autores que o chamam de “o quinto evangelho”. A importância de reabilitar os apócrifos é para ampliar nossa visão do cristianismo dos primeiros séculos. O cristianismo primitivo não se reduz ao Novo Testamento. Há uma literatura diversa e riquíssima a ser descoberta além dele.
Obrigado pela entrevista, por fim, e como diz um dos versículos desse evangelho, “quem encontrar a interpretação destas Sentenças não experimentará a morte?”
Agradeço imensamente ao Diário de Caratinga pela oportunidade da entrevista. Aproveito a oportunidade para informar que estarei fazendo o lançamento do livro em Caratinga e em algumas cidades da região. Em breve, informarei as datas e os locais nas minhas redes sociais. Sim, o Jesus do Evangelho de Tomé promete a imortalidade para aqueles que interpretarem suas palavras. Esta mensagem não é estranha ao cristianismo ortodoxo. As palavras de Jesus são palavras de vida eterna, os evangelhos canônicos concordam com a afirmação. Por este motivo, quem ainda não o conhecia, leia o Evangelho de Tomé, mas, antes (risos), adquira meu livro que vai ser um guia útil para entender a importância literária e histórica desta obra.
“A DÚVIDA DE TOMÉ”
Tomé foi um dos doze Apóstolos escolhidos por Jesus. Era judeu, da Galileia e provavelmente pescador. Seu nome aparece onze vezes no Novo Testamento. Tomé ou Tomás, significa “gêmeo”. No grego, a palavra equivalente é Didymus. Isso nos faz supor que ele tinha um irmão gêmeo. Ele acompanhou Jesus como discípulo durante os três anos de vida pública do Mestre. Após a morte de Jesus, Tomé estava entre os Apóstolos que receberam o Espírito Santo no dia de Pentecostes. Depois disso, sabe-se que ele foi pregar o Evangelho na Índia, onde veio a falecer. Historiadores presumem que ele morreu no ano 72.
Tomé é conhecido por sua dúvida a respeito da ressureição de Cristo. Algo que virou até ditado popular: “fulano é igual a São Tomé, tem que ver para crer”. E essa situação foi retratada pelo pintor Caravaggio. Tomé toca as chagas de Cristo para verificar se são reais. A cabeça de Cristo e dos três apóstolos são o foco da composição. O momento é intenso. Os apóstolos olham para São Tomé que, com a testa profundamente sulcada, mergulha seu dedo no flanco de Cristo.
O quadro ‘A dúvida de Tomé’ foi pintado em 1599. É um óleo sobre tela, 107 x 146 cm, e se encontra exposto em um museu na cidade de Berlin, na Alemanha.
SERVIÇO
Autor: José Aristides da Silva Gamito.
Título: O Evangelho de Tomé: A outra face de Jesus. Editora: Fonte Editorial. Ano: 2020. Páginas: 201. . ISBN 978-65-80330.
Os contatos para aquisição da obra são: WhatsApp – (33) 9 8758-3346. E-mail: [email protected]. Ou Fonte Editorial: Telefone (11) 3214-0679, [email protected], https://www.facebook.com/Fonteeditorial/. Mais informações sobre o tema: http://luminarerefili.blogspot.com/