André Naves, defensor público federal, especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social e mestre em Economia Política, explica como o país chegou a esse nível de extremismo
Por José Horta
DA REDAÇÃO – Nesta semana foi veiculada a notícia que quatro membros de um motoclube foram presos suspeitos de apologia ao nazismo. O fato aconteceu Méier, zona norte do Rio de Janeiro. O Motoclube Satans fica no Engenho de Dentro, onde polícia encontrou banners e os coletes usados pelos motoqueiros, todos com inscrições de SS, a polícia alemã de proteção a Hitler, responsável pelo genocídio de judeus durante o holocausto. Também foram encontradas armas, facas, munições e drogas. Não se trata de um fato isolado. Para entendermos o crescimento da extrema direita e do nazismo no Brasil, o DIÁRIO entrevistou André Naves, defensor público federal, especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social e mestre em Economia Política.
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E para espanto de muitos, o Brasil é o país onde grupos de extrema direita mais crescem no mundo. Foi o que atestou levantamento feito em 2022 pela ONG Anti-Defamation League (ADL). Segundo os dados divulgados pelo Observatório da Extrema Direita, que faz o monitoramento de grupos de extrema direita em universidades brasileiras e de outros países, São Paulo é o estado que apresentava maior presença de grupos de extrema direita. Em um total de 137 células espalhadas pelo estado, 51 estavam na capital paulista. As informações são do jornal O Globo. Em todo o país, já são mais de 530 células extremistas.
A pesquisadora Adriana Dias, da Universidade de Campinas (Unicamp), dividiu os estudos desses grupos em categorias, de acordo com suas ideologias, como Hitlerista/Nazista, Negação do Holocausto, Ultranacionalista Branco, Radical Catolicismo, Fascismo, Supremacista, Criatividade Brasil, Masculinismo Supremacia Misógina e Neo-Paganismo racista. Em 2019, um especialista detectou 334 células. Os estudos também apontam o crescimento de células extremistas desde a chegada de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto. Estima-se que 15% dos brasileiros são de extrema direita
Entre tantas máculas registradas na história do Brasil, tem-se o fato que o partido nazista funcionou no país durante dez anos, sem ser incomodado pelo governo brasileiro, de 1928 a 1938. O governo de Getúlio Vargas manteve, durante toda a década de 1930, relações de amizade e de cordialidade com o III Reich. A ascensão do nazismo na Alemanha não gerou preocupação no governo brasileiro.
Uma matéria do site UOL, publicada em 4 de abril deste ano, dizia: ‘Culto ao nazismo influencia ataques a escolas; casos disparam pós pandemia’. A reportagem apontava que “ao menos cinco dos 15 ataques tiveram referências nazistas, de acordo com análise de materiais apreendidos com os agressores e conteúdos nas redes sociais”.
Sempre lembrando que o uso de símbolos nazistas é crime no Brasil. O Art 20, § 1º, da Lei 7.716/89, alterada pela Lei 9.459/97, fala que “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo tem pena de reclusão de um a três anos e multa”.
LÁ FORA
E no mundo, principalmente na Europa, a extrema direita vai ‘colhendo frutos’. Para se ter uma ideia, no início de julho, algo abalou o cenário político alemão. Pela primeira vez o partido Alternative für Deutschland (AfD), de extrema direita, conseguiu eleger um prefeito no país. Trata-se de Hannes Loth, da pequena cidade de Raghun-Jessnitz, no estado da Alta Saxônia. No município de quase 9 mil habitantes, Loth, com 51% dos votos, derrotou seu adversário Nils Neumann, que se apresentava como candidato independente.
Uma das expoentes do Alternative für Deutschland (AfD), que pode ser traduzido como ‘Alternativa para a Alemanha’ é Beatrix Von Storch, que é neta do ministro das Finanças de Adolf Hitler, Lutz Graf Schwerin von Krosigk. Ela esteve no Brasil em junho de 2021, onde se encontrou com autoridades, dentre elas, o, então, presidente Jair Bolsonaro. Em seu país, Beatrix Von Storch enfrentava investigação ter defendido que a polícia atirasse em migrantes sem visto que tentassem atravessar a fronteira da Alemanha, incluindo mulheres e crianças.
Espanha, França, Hungria, Itália, Polônia, Portugal, para citar alguns, mostram o crescimento da extrema direita. Na Ásia, Israel que sempre teve orgulho em ser ‘a única democracia do Oriente Médio’, a extrema direita caminha a passos largos com o premier Benjamin Netanyahu.
Vale ressaltar que todo extremista, seja ele de qual ideologia, é perigoso, pois apresenta risco à garantia do equilíbrio entre as liberdades e os direitos fundamentais. Como bem disse o escritor tcheco Milan Kundera: “Os extremos são a fronteira além da qual termina a vida e a paixão pelo extremismo; na arte e na política, é uma velada ânsia de morte”.
A ENTREVISTA
A assessoria de defensor público federal André Naves sempre nos encaminha seus artigos. E recentemente foi enviado o artigo intitulado ‘Crescimento da extrema direita e de células nazistas no Brasil: reflexo da miséria e da desigualdade social’. Esse texto foi publicado em vários jornais país afora. E as ponderações apresentadas pelo procurador público federal nos chamaram atenção. “As recentes turbulências políticas em Israel, as eleições espanholas, diversos novos governos europeus, ataques violentos nos EUA e no Brasil, são os alertas para o grave fenômeno do crescimento da extrema direita pelo mundo. Infelizmente, esse cenário encontra solo fértil em nosso próprio país, onde células nazistas têm se disseminado, lançando sombras sobre a nossa sociedade. Contudo, para compreender e enfrentar esse fenômeno, é fundamental reconhecer que sua origem reside na crescente desigualdade social e na miséria que corroem o tecido social, gerando um aumento da polarização e da violência”, diz o primeiro parágrafo do artigo.
Então fizemos contato com sua assessoria, através de Cristina Freitas, que prontamente possibilitou essa entrevista. A ela e o procurador André Naves, o nosso muito obrigado. Os artigos do procurador estão disponíveis no site: www.andrenaves.com.
Eis a entrevista, ou melhor, eis a aula.
O senhor poderia nos explicar o que é extrema direita e o que ela defende?
A extrema direita é um movimento político que prima pela violência, pela segregação e pela exclusão de indivíduos que considera diferentes. Ela busca respostas fáceis para problemas complexos, problemas estruturais; ela procura a defesa de um passado mítico, que ela idealiza – valores como: individualismo ou melhor dizendo, a exacerbação da individualidade aliada ao egoísmo. Além disso, a extrema direita defende a liberdade irrestrita, inclusive para causar danos muito concretos nos outros; e a manutenção de privilégios. Ou seja, a extrema direita defende o retrocesso e a volta ao um tempo idealizado que nunca existiu e a ordem social existente na época por ela idealizada, com a manutenção de privilégios de classe, com liberdades absurdas e usufruto dos bens sociais para alguns grupos e exclusão total de outros. Em última análise, a extrema direita visa a divisão social, o aprofundamento do fosso social e a eliminação de quem pensa diferente.
Podemos associar a extrema direita no Brasil ao fascismo e ao neofascismo?
Sim, podemos. Porque ela busca alguns componentes simbólicos iguais, como por exemplo, a apropriação INDEVIDA da bandeira nacional, apropriação INDEVIDA de conceitos como patriotismo, apropriação INDEVIDA daquilo que é de todos, mas ao mesmo tempo execração do espírito brasileiro, execração de nossa diversidade, tanto social quanto cultural, execração de tudo que considera diferente, de tudo que não está dentro da visão deturpada e idealizada de seus adeptos. E mais, de uma tentativa de eliminar o outro, de destruir quem pensa diferente ou de quem é diferente. Portanto, no Brasil, sim, a extrema direita, da forma como ela se organiza, pelos valores que ela defende, ela é totalmente neofascista.
Existe um perfil de quem integra a extrema direita?
Existe sim um perfil de quem integra a extrema direita. Esse perfil, em geral, pertence a uma classe que domina alguns privilégios no Brasil, é a classe que se sente detentora de privilégios, em detrimento de outras parcelas da população. São pessoas que não admitem, não suportam ter contatos com outros tipos de indivíduos – com pessoas de origens diversas, de rendas diversas, de orientações sexuais diversas, com pessoas com deficiência. Ou seja, o perfil das pessoas de extrema direita está muito mais na classe média e classe média alta, mas muitas vezes encontramos pessoas de classes sociais mais baixas também de extrema direita porque elas querem se portar e repetir, como papagaios, mantras das classes mais altas, que ao final, levam à sua própria destruição e à segregação deles mesmos.
A utilização do lema “Deus, Pátria e Família” – o mesmo do movimento integralista no Brasil – foi escolhido de forma aleatória ou é possível dizer que foi proposital, a fim de gerar uma continuidade histórica?
A utilização do lema “Deus, Pátria e Família”, do Movimento Integralista, foi totalmente proposital porque o espectro ideológico representado pelo bolsonarismo, pelo ex-presidente Bolsonaro, trouxe um ideal deturpado de Pátria e trouxe valores que só fazem sentido para uma pequena parcela da população, mas que excluem uma outra grande parcela do povo brasileiro. Ou seja, ele foi fundado nesse lema, o neofascismo brasileiro, nesse lema “Deus, Pátria e Família” porque representando um passado mítico idealizado e valores extremamente violentos e excludentes, legitimam o discurso de ódio, os atos de violência, como o que presenciamos em janeiro em Brasília.
O Brasil, exceto a Alemanha, foi o único país até hoje a ter um partido nazista registrado. Talvez isso explique o crescimento das células neonazistas no país ou é algo mais complexo?
Ter um partido nazista registrado no Brasil, assim como foi feito na Alemanha, é uma vergonha que nós, infelizmente, teríamos que conviver. No entanto, isso não é causa do crescimento de células neonazistas no Brasil. O problema é muito mais complexo. É lógico que existem influências, mas a principal causa é a desigualdade social, é a exclusão social, onde não se tem o contato com o outro. A melhor forma de se combater o crescimento das células neonazistas no Brasil é melhorando a situação social do povo, é promovendo um crescimento econômico com justiça social porque há um quadro de alta exclusão social, de grande miséria. Então a melhor forma de se vacinar contra esse radicalismo é aprofundar a concretização dos direitos humanos e da democracia.
Como a internet serviu para dar ‘voz’ aos extremistas?
Acredito que a internet serviu mais como uma caixa de ressonância porque estas vozes sempre existiram e sempre vão existir. Só que na medida em que temos altas taxas de desigualdade social, nós temos uma população atraída por essas ideias e a internet permitiu a disseminação exatamente dessas ideias. É por isso que é necessária uma regulamentação profunda da internet e de tantos meios de comunicação que se multiplicaram, para que não haja a proliferação de ideias tão nefastas, tão danosas a todos nós.
Em um dos seus artigos, o senhor observou: “disseminação de células nazistas em nosso país é uma chaga que reflete a profundidade das desigualdades e a ausência de políticas públicas efetivas para mitigá-las”. Quais seriam essas políticas públicas?
As políticas públicas devem ter como finalidade o aprofundamento democrático e a concretização dos direitos humanos, ou seja, políticas públicas fundamentadas na educação, no trabalho e na proteção social. Ou seja, políticas públicas que promovam a segurança alimentar, que concedam saneamento básico, que facilitem o ambiente de trabalho e o empreendedorismo, que tragam, portanto, justiça social. Só assim conseguirem superar esses problemas.
E um país como o Brasil, tão miscigenado, o que explica ter tanto preconceito e exclusão?
O Brasil é um país miscigenado mesmo, mas é também um país extremamente segregado, com grupos sociais ostentando privilégios e buscando sempre exclusividade nesses privilégios. Não há lugar para preconceitos onde não há exclusão, mas eles podem ser explicados por uma série de razões históricas e culturais, em que algumas classes se sentiram na legitimidade de excluir as outras. Então é comum que em nosso país, extremamente desigual, as pessoas acabem se fechando em suas bolhas, o que facilita o surgimento de preconceitos. A melhor forma de combater é termos uma sociedade diversa e, mais do que isso, uma sociedade inclusiva, onde todos, com suas diferenças e peculiaridades, tenham igual possibilidade de protagonismo social.
Por fim, o senhor é especialista em Direitos Humanos e Inclusão. Justamente questões que a extrema direita e o nazismo se opõem. Por que em 2023 falar em Direitos Humanos e Inclusão ainda incomoda determinados seguimentos?
Exatamente pelo que já foi exposto, a inclusão e os direitos humanos incomodam tanto alguns segmentos porque o pressuposto para a concretização dos direitos humanos e da inclusão é que todos, por mais diferentes e plurais que sejam, tenham assento nas mesmas posições de protagonismo na sociedade. Aqueles acostumados a viver encastelados em bolhas não admitem conviver com os diferentes. Alguns grupos se incomodam profundamente com o discurso de direitos humanos e de inclusão social exatamente por isso. Mal sabem eles que a criatividade, a inovação, as habilidades emocionais estão na convivência com a diferença. Em última análise, só inovam aqueles que convivem com a diferença. Para um país ter prosperidade econômica é necessário reduzir as barreiras sociais.
- “Extrema direita busca respostas fáceis para problemas complexos, problemas estruturais; ela procura a defesa de um passado mítico, que ela idealiza”, explica o procurador André Naves (foto: arquivo pessoal)
- André Naves, defensor público federal, especialista em Direitos Humanos e Inclusão Social e mestre em Economia Política (foto: arquivo pessoal)
- Adolescente que jogou bombas caseiras em escola de Monte Mor, no interior de São Paulo, usava suástica no braço esquerdo. Esse fato foi registrado no início deste ano (foto: Guarda Municipal/divulgação)
Saudação Nazista?
- Gesto feito em um ato ocorrido em 2022 em São Miguel do Oeste, no Oeste catarinense. O caso chegou até o Ministério Público. De acordo com o que foi apurado preliminarmente, o gesto foi feito pelos manifestantes após serem conclamados pelo locutor do evento, empresário local, a estenderem a mão sobre o ombro da pessoa a sua frente ou, se não houvesse, para que estendessem o braço, a fim de “emanar energias positivas”.
‘Deus, Pátria e Família’
- Integrantes da Ação Integralista Brasileira (AIB), liderados por Plínio Salgado (foto: Arquivo Nacional)
O Integralismo abarcava princípios conservadores, inspiração cristã e era um movimento fortemente influenciados pelo fascismo italiano e pelo integralismo português. Seu manifesto foi redigido pelo escritor e jornalista Plínio Salgado (1895-1975). Ele chamou seu arrazoado de Teoria do Estado Integral, e em 7 de outubro de 1932 lançou o Manifesto de Outubro. Ali nascia a Ação Integralista Brasileira (AIB), a versão nacional da extrema-direita que ganhava corpo na Europa.
Dividido em dez partes, o manifesto trazia já em seu primeiro item a importância da valorização de Deus, da Pátria e da Família – os três termos com inicial maiúscula. Salgado tinha a companhia de outros intelectuais na elaboração dessa doutrina, entre eles o escritor e advogado Gustavo Barroso (1888-1959) e o advogado, filósofo e professor Miguel Reale (1910-2006).
‘Nazismo Tropical’
No livro ‘O Nazismo Tropical? O Partido Nazista no Brasil’ (Ed. Todas as Musas/2012), a professora e pesquisadora Ana Maria Dietrich disseca a criação deste movimento no país. A obra analisa os dez anos da história do Partido Nazista no Brasil e suas controversas relações com o governo de Vargas e de Hitler. Chama a atenção o fato de o Partido Nazista no Brasil ter sido o maior grupo partidário fora da Alemanha com 2900 integrantes, funcionando em nada menos que 17 estados brasileiros de Norte a Sul do país.
Brasil, o país dos extremos
- O Brasil nos apresenta situações extremas, que merecem uma reflexão. Em 8 de dezembro de 2019, uma faixa com os dizeres “Botafogo Antifascismo” foi apreendida na partida entre Botafogo e Ceará, no Estádio Nilton Santos. Imagens divulgadas na internet mostraram que a torcedora que carregava a faixa teve o nome anotado. A PM se justificou com base em um trecho do Estatuto do Torcedor que diz que são proibidas bandeiras “para outros fins que não o da manifestação festiva e amigável”. (fonte: Globo.com)
Dias depois da botafoguense ter a faixa apreendida, um homem foi flagrado com uma suástica (símbolo nazista) de braçadeira enquanto estava em um bar de Unaí, na região Noroeste de Minas Gerais. Um cliente ligou para o 190 e policiais militares foram até o local para verificar a ocorrência. Um vídeo que circulou nas redes sociais mostrou dois policiais parados próximos ao homem, mas sem o interceptarem sobre o uso da suástica no braço esquerdo. À época, uma nota emitida PM explicou que uma guarnição esteve no local, mas que no “entendimento inicial dos policiais militares, pelas circunstâncias no local, foi de que o uso da faixa não se enquadrava no verbo VEICULAR, e nem nos demais verbos do tipo legal previsto, citado anteriormente”.
Posteriormente, esse homem foi condenado a dois anos de prisão por apologia ao nazismo. Mas por não ter antecedentes criminais, pôde cumprir a pena em liberdade. Quando da condenação, teve de pagar multa de três salários mínimos e não poderia frequentar bares e restaurantes durante o período de cumprimento da pena.