Empresária e master coach Lívia Soares conta como venceu a violência doméstica e como ajuda outras mulheres
CARATINGA – Sob diversas formas e intensidades, a violência doméstica e familiar contra as mulheres é recorrente e presente no mundo todo, motivando crimes hediondos e graves violações de direitos humanos.
Lívia Soares, 32 anos, mãe de quatro filhos, sofreu violência doméstica pela primeira vez aos 21 anos, inclusive sendo agredida durante uma gravidez.
Atualmente, empresária e master coach, Lívia Soares fala sobre sua superação e a criação do projeto “Somos todos por uma”, que tem por finalidade ajudar outras mulheres que passam pela violência doméstica e não conseguem se livrar desse mal.
Você foi vítima de violência doméstica, quantos anos tinha quando tudo aconteceu?
Então eu tinha 20 a 21 anos, começou com quatro meses de relacionamento, tenho até uma marca no olho, foi o primeiro soco. No dia que isso aconteceu ele estava um pouco alterado, tinha bebido, então achei que era por causa da bebida, a gente sempre quer achar um culpado para o erro. Então começou assim, não foi só uma vez, foram várias, todas as vezes que ele bebia se transformava em outra pessoa, literalmente. Então começou com soco, depois me esfregava na parede e batia. A gente não podia sair, sempre que voltava para casa era isso. Passou um tempo engravidei, sofri muita violência moral, porque mesmo eu grávida, descobri que existia outra mulher, que também estava grávida dele, isso pra mim foi um transtorno emocional muito grande.
Como foi durante a gravidez, ele se arrependia do que fazia e pedia desculpas?
Sofri agressões físicas, poucas, mas tiveram. A forma como ele se desculpava, eu tenho pavor da palavra desculpa. Não gosto que os outros fiquem pedindo desculpas à toa. E ele era assim, toda hora pedia desculpa. Durante a gravidez ele me traiu muito, isso era exposto a todo mundo, era um tipo de violência também, porque isso afetou a minha moral, minha autoestima. A forma como ele tinha de pedir desculpa era abordando de uma forma financeira, com flores e presentes. Então eu acabava me permitindo essa situação, mesmo porque eu já tinha outro filho, meu primogênito. Estava grávida, e para mim era muito difícil conciliar isso na minha cabeça. Então pensava: estou grávida, estou vivendo isso, como vou sair dessa situação? Porque vou ser mãe solteira de novo, de dois pais diferentes, como vai ser minha vida? Eu ficava muito presa a isso, o que a sociedade iria pensar, como esse julgamento iria me atingir. Isso me prendeu muito a continuar vivendo neste ciclo violento. Hoje eu tenho plena consciência disso, o que me segurou nesses quase quatro anos de relacionamento, foi o medo da sociedade em cima de mim, eu sempre tive uma família muito presente, muito sólida. Minha mãe sempre ali, meu irmão me ajudando o tempo todo. Eu não tinha essa consciência. Dez anos atrás isso não era falado da mesma forma que é hoje.
Como você fez para sair de todo esse sofrimento de quatro anos?
Comecei a me questionar, pensar que não tinha condições de me manter neste relacionamento e ficar presa nisso por conta do que as pessoas iriam pensar. E aí eu comecei a buscar ajuda psicológica. Comecei a me entender um pouco. É muito normal a mulher que sofre violência, e eu vivi isso de fato, se sentir culpada por estar passando por isso. Enfim, foram vários questionamentos pesados que fiz a mim mesma, como me massacrei por conta da sociedade. Até que um dia foi o ápice. Era uma sexta-feira à noite, e a gente morava num prédio de quatro andares. Aí ele chegou em casa depois do trabalho, da rotina normal. Eu estava no quarto fazendo a pequenininha dormir, ela tinha menos de três meses, e ela não conseguia dormir porque estava muito barulho, ele estava na sala com som ligado muito alto. Isso já era quase meia-noite, e eu pedindo a ele para abaixar o volume, ele estava bebendo dentro de casa. Depois de pedir umas dez vezes para abaixar o som, eu perdi a paciência e puxei o fio da tomada. A minha sorte foi que a minha filha estava no berço. Parecia cena de filme, porque por eu ter puxado o fio, foi o mesmo que ter gritado: ‘me bate’. Em cima da mesa tinha uma garrafa de uísque que ele estava tomando, quando vi que ele veio atrás de mim, já saí correndo em direção ao quarto gritando por socorro. Foi quando eu vi a garrafa e a joguei ao chão, pra chamar atenção mesmo. Então aí eu vi que ele veio atrás de mim, ao chegar ao quarto ele me jogou na cama e ficou por cima, foi aí, que ele pegava meu cabelo pra me sufocar, e de fato ele conseguiu. Lembro como se fosse agora, o meu desespero porque estava perdendo a força, e desliguei… Não sei quanto tempo fiquei desacordada. Me lembro que quando eu acordei ele estava caído no chão sentindo muita dor. Pra mim algo muito além, uma força superior me ajudou naquele momento. Foi quando eu me levantei e saí correndo, peguei a chave que estava em cima da mesa e joguei na claraboia, todos meus vizinhos estavam acordados e assustados. Foi quando minha vizinha debaixo, que inclusive é uma das minhas advogadas, subiu com o marido e eles arrombaram minha casa. No que eles arrombaram, eu estava no canto, sem entender muita coisa, totalmente desnorteada sendo agredida mais uma vez. E foi dessa forma, se não fossem eles eu teria morrido.
Ele foi preso?
Esse dia ele foi preso. Lembro também que minha vizinha começou a gritar com ele, disse que estava ficando doido e chamou polícia. E ele olhava pra mim e falava: ‘amor aconteceu alguma coisa’? Como se nada tivesse acontecido. Ele ficou preso dois dias, pagou a fiança e saiu.
Então a história entre vocês acabou por aí?
Separamos, fiquei seis meses separada. Mas depois de um tempo voltei pra ele. Não teve agressão física nos primeiros meses, porém começou a fazer coisas que eu fiquei sem entender. A violência moral continuou, e aí ele começou a tomar outro rumo na vida dele, e saí, porque vi que não queria aquilo. Dei uma basta de vez, porque eu corria risco de vida de verdade, e mais uma veze quase morri, e meus filhos também.
Como fez para se recuperar emocionalmente, e como veio a ideia do projeto “Somos todos por uma”?
Procurei ajuda psicológica. Tem quase cinco anos que comecei a movimentação na internet, a me expor, eu via muitas mulheres se identificarem comigo. Eu já tinha uma demanda de amigas que sempre recorreram a mim. O projeto nasceu há cerca de dois anos e meio, pra três.
Como funciona o projeto, como ajuda mulheres vítimas de violência doméstica?
É um projeto de empoderamento feminino. Gosto de deixar uma coisa clara: o “Somos todos por uma” foi criado para ser um evento, uma imersão na verdade, de dois dias, que acontece em Caratinga por enquanto uma vez por ano, onde eu converso sobre toda a atmosfera que inclui a nós mulheres. Ali a gente conversa sobre a inteligência emocional, sobre empreendedorismo, sobre espiritualidade, toda essa conexão com Deus independente da religião. Ensinamos a meditação, conversamos tudo sobre o que uma mulher multitarefas precisa saber, para viver mais leve consigo mesma. Ser mãe sem peso na consciência, ser dona de casa, sem peso nos julgamentos; a como identificar seus sentimentos, como prosperar, a sororidade, a forma de se posicionar sem agredir, a importância de cuidar de si primeiro. Então ele foi criado nesse sentido, e fala sobre o ciclo da violência também. Mas hoje o “Somos Todos por uma” é uma marca, dentro dele estou ninchando os assuntos. Então hoje tenho vários produtos a oferecer, e romper e superar o ciclo da violência é um deles.
O que é a violência moral, como identificar?
A palavra violência já é uma palavra muito pesada. Então quando a gente fala de violência, na minha cabeça sempre vem alguém batendo, e quando fala violência moral, a mulher entende que é algo secundário, não é algo que se possa prestar atenção. Então estou percebendo a importância da gente falar desse ato moral, como a gente vai resolver esse problema, porque a mulher consegue ver com outra visão. Ela vai começar a identificar que isso é um problema que precisa ser resolvido, não é algo secundário, é primário. Porque o ciclo começa aí, esse é o comecinho do ciclo. A violência moral, na verdade ela começa desde quando a gente é pequenininha, porque a gente começa ver pais e mãe às vezes brigando dentro de casa, ou a criança sofre alguma coisa, abuso, ausência do pai e da mãe, e passa isso para a adolescência. Chega a fase do colegial, aí tudo se transforma de verdade na escola. Escola é um lugar maravilhoso, porém dentro da escola acontecem vários tipos de violência, principalmente dos meninos que não entendem ainda isso, são criados por pais machistas, autoritários, que os ensinam quer precisam ser macho alfa, não podem chorar e mal ensinam a lavar um copo. E é justamente na escola, na puberdade, onde eles irão começar a ter seis primeiros relacionamentos. Esses meninos acabam sendo ou extremamente carentes, ou abusivos sem saber, e involuntariamente começam a exigir dessas meninas coisas que já são indícios que serão adultos agressores. Então já começa ali no primeiro namoro, você não pode conversar com fulano de tal, você não pode fazer isso, porque você tem que ficar comigo. E quando já vê, está encaminhando pra essa fase adulta, um futuro agressor, e uma futura mulher que entendeu que amor é ser um monte de coisas que ela não concorda, sente- se uma Frida, mas precisa continuar, por vários e vários motivos. Uma mulher ferida, violentada, independentemente de qualquer violência, é uma mulher que a identidade dela é rompida ali. Então pra ela se ressignificar, para ela reconstruir essa nova identidade precisa ser feito um trabalho de excelência, uma reconstrução do seu novo eu, onde trabalho como mentora de mulheres.
Além desse projeto de imersão, você lançará um material online, como funcionará?
Eu não trabalho com ninguém forçado. Todo mundo que vem a mim, sempre vai ter um direcionamento. O produto online fala como romper e superar a violência na sua vida. Dentro desses três anos, estou trabalhando pesado em cima disso. Na aceitação, que eu falei que a mulher precisa ter para poder sair, ela precisa querer muito, e tem mulheres que não aceitam ajuda de jeito nenhum. Esse projeto online vem para ajudar essas mulheres que querem ficar anônimas, que não querem aparecer por outros motivos. Eu entendi isso, e a gente precisa respeitar isso. Então elas vão ter acesso a conteúdos, a um curso realmente que eu desenvolvi, minha metodologia, justamente para esse público, onde vão entender passo a passo, como sair desse ciclo de violência com segurança. Terão monitoria online comigo também. É algo revolucionário. E “Somos Todos por uma” social, vem através de palestras nas escolas, entidades de conscientização, uma linguagem bem clara. E o meu compromisso em buscar melhorias e recursos para nossa comunidade.
E o que você pensa sobre os agressores, é possível serem restaurados?
Agora terá a nova lei que todo agressor terá o direito à reabilitação. Eu acho maravilhoso isso. Acho que esse é o caminho, porque os agressores foram crianças que viveram abusos, que viram pais brigando, algum fragmento muito sério aconteceu, e ele trouxe pra vida dele adulta. Então ele merece também se ressignificar como homem. Por isso que hoje a minha missão é a conscientização e aculturamento do respeito de homens e mulheres na valorização do respeito mútuo. Eu trabalho sobre a desconstrução do machismo em relação a isso. A gente precisa entender, porque nós pais tratamos nossos filhos de uma forma machista, principalmente o homem. Um menino que a mãe não ensina a lavar um copo, dá tudo na boca, faz tudo, nem ensina arrumar a cama. Aí vem a fase da adolescência, a mãe precisa ficar gritando o tempo todo dentro de casa. Eu falo porque eu passei por essa fase, estou passando, estou com um de 14 anos onde eu cobro dele. Porém agora eu mudei totalmente minha estratégia. Hoje ele é obrigado a fazer as coisas dentro de casa. Esse adolescente que não sabe fazer nada vai virar um adulto como quando casar? Na primeira briga dentro de casa vai dizer que a mãe fazia tudo, vão começar as comparações, vai dizer que a mulher é burra, que não sabe fazer nada. Então essa é a raiz do problema, falar sobre a desconstrução. Entender que o homem precisa chorar, o homem precisa sim ajudar em casa, precisar sim lavar vasilha, o homem precisa fazer as coisas que a gente também faz.
Qual o seu conselho para mulheres que sofrem violência doméstica e não conseguem sair desse sofrimento?
O primeiro passo é aceitar que você sofre uma violência. Eu acho que a mulher tem que aceitar, a partir do momento que a mulher aceita isso, outras portas começam ser abertas. As mulheres que não aceitam, elas não são donas de si, elas estão ali perdidas. A mulher precisa querer sair daquele ciclo, então o primeiro passo é aceitar. O segundo passo é: preciso de ajuda, a quem vou recorrer? Eu sempre falo: procura uma ajuda psicológica, ajuda de órgãos competentes para você ver qual caminho vai começar a trilhar. O terceiro passo: sempre tem alguém para nos ajudar. Quarto passo: sair da posição de vítima e tomar providências. Tem mulheres que estão sofrendo uma violência, que elas precisam trilhar uma estratégia para sair disso, porque se ela sair de cara, ela corre risco de vida, a família dela corre, aí não pode, acompanho algumas famílias assim em Caratinga. Tem aquela que consegue chamar a polícia, e com uma chamada vai resolver, e tem as que são recorrentes. É preciso estudar cada caso individualmente. Então é procurar ajuda, principalmente psicológica, para você se entender, buscar autoconhecimento, que é o que todo mundo tem deve fazer. E romper as barreiras do medo, saber que não vai ficar sozinha, que ninguém precisa de um amor doentio para sobreviver. A gente sobrevive, a gente faz o nosso acontecer. Então esses são os primeiros passos que toda mulher deve fazer. Buscar o amor próprio, que ele é o fundamental, é o ponto de partida mesmo.