Ildecir A.Lessa
Advogado
Na linha da História, uma forma radical de punição no Brasil Colônia incluía tortura com ferro em brasa, trituração dos ossos, decapitação e esquartejamento. Ao ler a História do Brasil, certamente pode-se ficar chocado com a forma implacável como Portugal punia os culpados de crimes políticos no Brasil Colônia. Depois de enforcado, Tiradentes, o herói da Inconfidência Mineira (1789), teve seu corpo esquartejado. Troncos e membros foram espalhados ao longo da estrada que ligava Minais Gerais ao Rio de Janeiro; e sua cabeça, espetada no alto de um posto em Vila Rica, atual Ouro Preto. Na Revolta dos Alfaiates, ocorrida em Salvador em 1798, 47 suspeitos foram presos, e três deles acabaram decapitados e esquartejados. Pedaços de seus corpos foram colocados na ponta de estacas pelas ruas da capital, onde ficaram até se decompor totalmente. Na Revolução Pernambucana de 1817, a sentença contra os revoltosos determinava que, “depois de mortos, terão cortadas as mãos e decepadas as cabeças, e se pregarão em postes (…) e os restos de seus cadáveres serão ligados às caudas de cavalos e arrastados até o cemitério”.
O suplício judiciário, como era conhecido esse tipo de punição, tinha o objetivo de servir como exemplo. Forma radical de expiação de crimes ou faltas graves, incluía tortura com ferro em brasa, trituração dos ossos com o réu ainda vivo, esquartejamento e exposição dos corpos em praça pública e, em casos mais extremos, a queima dos cadáveres, cujas cinzas eram jogadas nos rios ou no mar. Usada em Portugal desde a Idade Média, popularizou-se na Inquisição e foi aplicada sem dó sempre que houve um bom motivo, do ponto de vista da coroa. Hoje em pleno Século XXI, depara-se cabeças decapitadas enfileiradas sobre um saco preto. Corpos carbonizados. Em um vídeo divulgado nas redes sociais e na imprensa, detentos parecem jogar futebol com uma das cabeças. As cenas captadas após o massacre que deixou dezenas de mortos em um presídio de Altamira, no Pará, são chocantes.
Esses tipos de violência extrema nos assassinatos entre gangues é prática recorrente nos presídios brasileiros, especialmente desde 2016, quando os dois maiores grupos criminosos do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), romperam uma trégua de anos e iniciaram uma disputa de caráter nacional pelo controle do crime. Na série de rebeliões em penitenciárias do Amazonas em 2017, por exemplo, presos de uma facção torturaram, degolaram, arrancaram órgãos e até comeram partes dos cadáveres dos integrantes do grupo rival. A crueldade fora do comum é difícil de compreender, mas tem um objetivo tático e não é exclusividade dos grupos criminosos brasileiros. Ao longo da história, a decapitação tem sido usada como forma de “desumanização” do oponente e estratégia de demonstração de poder. É preciso decapitar, emascular, ou mesmo deglutir o oponente, como aconteceu nos massacres de janeiro de 2017. O outro é visto como coisa, verme, lixo.
O massacre ocorrido no dia 29 de julho no Centro de Recuperação Regional de Altamira envolveu duas facções: o Comando Vermelho (CV) e o Comando Classe A. No caso, 58 pessoas que estavam na ala da prisão do Comando Vermelho foram mortas por integrantes da facção rival- 16 foram decapitados e os outros morreram por asfixia após serem sufocados pela fumaça de um incêndio iniciado pelo Comando Classe A. O crescimento econômico e populacional de Altamira, estimulado pela construção da usina de Belo Monte, fomentou a atuação das gangues. Os assassinatos violentos, torturas e estupros foram usados como “arma de guerra” em diferentes países do mundo, em vários momentos da história. A degola é utilizada, por exemplo, pelo grupo extremista Estado Islâmico no assassinato de reféns. A “inspiração” das facções brasileiras para a predileção pela decapitação e o esquartejamento não viria, portanto, de uma gangue estrangeira específica, mas sim de uma simbologia consolidada pela história. Expor a cabeça do inimigo funciona como símbolo de “triunfo“, o esquartejamento seria uma forma de manifestar a submissão total do oponente, os estupros são usados para humilhar e subjugar os rivais. Ou seja, são estratégias de demonstração de força. Diante desse quadro histórico dantesco, observa-se os acontecidos no Brasil Colônia se repetem nos presídios brasileiros, com a mesma crueldade, para demonstração de poder.