Em “Damascos Feridos”, Mirian Freitas fala do anseio do povo de Gaza em ter seu estado e libertar-se da caixa de pesadelos
Por José Horta
DA REDAÇÃO – Antes de qualquer coisa é preciso afirmar que são abomináveis as ações do Hamas cometidas no dia 7 de outubro de 2023. Em um ataque rápido e inesperado, o grupo terrorista invadiu o sul de Israel por terra, céu e mar. A ação deixou uma trilha de desespero, destruição e cerca de 1,2 mil mortos — a maioria civis —, dando início à guerra mais sangrenta em décadas na região. A resposta de Israel foi imediata e a liderança do Hamas sabia que a resposta seria atroz. Passado um ano do início do conflito, são mais de 40 mil palestinos mortos, a maioria esmagadora composta de civis. O desejo que Israel desocupe Gaza e que o Hamas liberte os reféns parece estar longe de acontecer. Mas a situação dos civis palestinos causa indignação mundo afora. Inocentes pagando pela ação de uma minoria. Gaza é terra arrasada. Diante de tamanha perplexidade, a poetisa e professora caratinguense Mírian Freitas lança o livro “Damascos Feridos” (Alpendre Literário), onde expõe a identidade de um povo que está sendo sequestrada por Israel e do anseio deste povo de em ter seu estado e libertar-se da caixa de pesadelos.
Vale ressaltar que a África do Sul, no dia 29 de dezembro de 2023, acionou a Corte Internacional de Justiça trazendo o Estado de Israel à barra da Haia por alegações de violações à Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948 (doravante “Convenção contra Genocídio” ou “convenção”). Também faz-se necessário frisar que no primeiro parágrafo da petição, a África do Sul condena de forma veemente o ataque do Hamas ocorrido em 7 de outubro de 2023 e pede a imediata libertação dos reféns. Sobre Gaza, na petição de 84 páginas, o país africano afirma que “os atos e omissões de Israel […] têm caráter genocida, pois foram cometidos com a intenção específica […] de destruir os palestinos em Gaza”.
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‘MANDELA PALESTINO’
E acontece um engano por parte da maioria da pessoas em pensar que todo palestino apoia o Hamas. Uma personalidade é preciso ser citada. Matéria publicada no dia 7 de outubro de 2021, no site do Instituto Brasil-Israel, atesta que a situação não é bem assim. “Barghouti, o Mandela palestino que venceria o Hamas nas urnas”, é um texto onde mostra que “um dos resultados mais interessantes da mais recente pesquisa de opinião do Palestinian Center for Policy and Survey Research (PSR), do pesquisador Khalil Shikaki, é o fato de que, apesar da popularidade do Hamas entre os palestinos, apenas um nome de fora do Hamas poderia vencer eleições presidenciais, caso elas ocorressem hoje: o de Marwan Barghouti, há tempos o mais popular líder do Fatah. O problema é que Barghouti está preso há 19 anos em Israel por terrorismo”.
O texto prossegue: “Para muitos, Barghouti é nada menos do que o ‘Mandela palestino’, em uma referência ao líder sul-africano Nelson Mandela, que se tornou presidente após 27 anos na prisão por se opor ao regime do Apartheid. Barghouti está na prisão desde 2002 sob acusação de terrorismo, e foi sentenciado a cinco prisões perpétuas após passar por julgamento. Barghouti se envolveu na Primeira Intifada palestina (1987-1990). Na década de 90, chegou a apoiar negociações de paz, mas, decepcionado, voltou à luta armada na Segunda Intifada (2000-2004) como líder da Tanzin, o braço paramilitar do Fatah. Israel o acusa de ser o mandante de ataques terroristas e atentados suicidas contra israelenses, incluindo civis”.
No entanto, conforme a matéria, “há muitas pessoas em Israel que consideram Barghouti um líder mais moderado do que qualquer um do Hamas, e do que diversas lideranças do Fatah. Eles estariam seguros de que, livre, Barghouti se voltaria para a mesa de negociações. Volta e meia há campanhas por sua libertação, usando Mandela como referência. Quem o apoia acredita que ele seria o único capaz de unificar os palestinos de Gaza e da Cisjordânia, enfraquecendo o Hamas. Libertá-lo seria um grande passo, por parte de Israel, para tentar apaziguar os ânimos entre os palestinos e israelenses”.
Por fim, Barghouti é favor da existência dos dois estados.
FLIP
Mírian Freitas participou na última semana da Feira Literária de Paraty (FLIP), onde promoveu “Damascos Feridos”. Durante o evento, realizado na Casa de Cultura de Paraty, o jornalista Jamil Chade leu o poema nº 14 do livro de Mírian Freitas: “Morrer é tão fácil deste lado de cá/ bombas e mísseis explodem todas as noites começamos a falar sozinhos por medo de esquecer/ que ainda estamos vivos”.
Jamil Chade estava acompanhado de Atef Abu Saif – escritor e ex-ministro da Cultura da Palestina, que veio ao Brasil lançar o livro “Quero estar acordado quando morrer” (Ed. Elefante”).
Falando em Jamil Chade, em sua coluna no site UOL de 30 de setembro de 2024, ele descreve: “No total, 66% de edifícios foram danificados na Faixa de Gaza e representam um total de 163.778 estruturas. Isso inclui 52.564 estruturas que foram destruídas, 18.913 gravemente danificadas, 35.591 estruturas possivelmente danificadas e 56.710 moderadamente afetadas”, indicou o informe da ONU. A análise tem como base as imagens de satélite de altíssima resolução coletadas em 3 e 6 de setembro de 2024”. São mais de 40 mil mortos e 100 mil feridos.
Na mesma coluna ele cita uma frase de António Guterres, chefe da ONU (Organizações das Nações Unidas) há uma década: “A velocidade e a escala da matança e da destruição em Gaza são diferentes de tudo o que aconteceu em meus anos como secretário-geral”.
A ENTREVISTA
Este é um assunto que demanda muito tempo em sua explicação. Mas que o leitor entenda que não se trata de ser antissemita, ser contra o povo de Israel ou muito menos ser favorável aos atos terroristas do Hamas. As críticas são direcionadas ao governo de Benjamin Netanyahu. Tanto é que no dia 8 de outubro de 2023, ‘Responsabilidade pela guerra com Hamas é de Netanyahu’, disse principal jornal israelense. Em editorial, o Haaretz apontou decisões de um ‘governo de anexação e desapropriação’, conduzidas por ministros da extrema-direita antiárabe que o premier incluiu no Gabinete, entre os elementos que levaram à explosão brutal da violência.
“O primeiro-ministro, que se vangloria da vasta experiência política e da sabedoria insubstituível em matéria de segurança, falhou completamente em identificar os perigos a que conscientemente direcionava Israel, ao estabelecer um governo de anexação e desapropriação, ao indicar Bezalel Smotrich [ministro das Finanças] e Itamar Ben-Gvir [ministro da Segurança Nacional, da extrema direita] para postos-chave, enquanto adotava uma política externa que abertamente ignorava a existência e os direitos dos palestinos”, dizia o texto do Haaretz.
Para a sociedade israelense, Netanyahu deve algumas explicações. Conforme o jornal Times of Israel, o estado judeu ignorou repetidos alertas de que um grupo de Gaza estaria planejando “algo grande”, avisaram autoridades do Egito. “Um oficial da inteligência egípcia diz que Israel foi alertado sobre o risco de um ataque. O Egito costuma atuar como mediador de questões entre Israel e Hamas”, atesta matéria do periódico, acrescentando que o aviso foi feito três dias antes do ataque de 7 de outubro de 2023.
Em 17 de janeiro de 2024, a BBC publicou a matéria “Como Israel ignorou jovens soldadas que alertaram sobre possível ataque do Hamas”. A matéria relata: “Durante anos, unidades de jovens mulheres recrutas tinham um trabalho específico: sentadas por horas a fio em bases de vigilância, buscavam indícios de qualquer atividade suspeita. Nos meses que antecederam os ataques de 7 de outubro do Hamas, elas de fato perceberam atividades suspeitas: ensaios de ataque, simulação de tomada de reféns e agricultores agindo de forma estranha do outro lado da cerca”.
Agora resta saber quando Netanyahu dará estas repostas ao povo de Israel; daqui, aguardamos a coexistência destes dois estados. Algo que parece inimaginável neste ano de 2024.
Eis a entrevista.
Depois de “A memória é uma oficina de ossos” (2023), onde você tratava de suas lembranças, agora temos “Damascos Feridos”. O que lhe motivou a abordar a questão geopolítica da Palestina?
Como muitos, eu me sensibilizei ao ver pessoas sendo feridas ou mortas, principalmente crianças. O que me move é a questão humanitária. Não podemos aplaudir um massacre como este. Senti-me profundamente tocada pelo sofrimento do outro. E acredito que a literatura, como toda arte, deve exercer um papel de solidariedade diante da dor e das tragédias que permeiam a história da humanidade.
Por que a escolha da fruta damasco? Existe uma relação do nome do livro com a capital da Síria?
“(…) damasco é o retorno das saudades às pálidas raízes (…) ”. Mahumud Darwich
Damasco é um fruto bíblico. Muito cultivado no deserto e, inclusive em terras palestinas e israelitas. A tão conhecida passagem bíblica de Saulo pela estrada de Damasco (Síria), que depois de convertido, tornou-se Paulo (apóstolo de Cristo), ilustra metaforicamente a iluminação, a libertação, o autoconhecimento. No entanto, neste livro, de maneira bem realista, estes “damascos” estão feridos, pois simbolizam crianças, mães, adultos, idosos; enfim, todos que foram e que ainda continuam sendo vítimas dessa conduta beligerante. A Damasco dos tempos do cristianismo, ao longo dos tempos, passou por uma desconstrução e perdeu aquela conotação bíblica, cristã. Hoje, a cidade de Damasco é muitas vezes associada a guerras, aos conflitos do Oriente Médio.
Uma das seções deste livro se intitula: “A ternura dos damascos se perdeu”, a fim de enfatizar o assassinato das crianças palestinas pelos mísseis sionistas “(…) O mundo carrega nos ombros/o punhal da culpa/− conivência e banalização da guerra −/ do Oriente ao Ocidente// Estranho fruto da guerra é a morte desses pequeninos/que se repete/ (repete)/ como a sede das bocas no deserto.”
Obviamente temas como morte e desilusão são abordados nos poemas que compõem esta obra. Este foi seu trabalho mais difícil, ou seja, como ‘Damascos Feridos’ te consumiu emocionalmente?
Não tem como abordar o tema de uma guerra sem mencionar mortes e o sentimento de desilusão em relação à humanidade. Naturalmente que durante a escrita dos poemas, muitas vezes, houve reflexões e constatações que despertam tristeza. Neste caso, principalmente quando escrevi sobre a matança indiscriminada das crianças: “(…) O abate é de uma dúzia/− no segundo instante: duplica-se/cresce/ aumenta o volume de carne fresca/ sangra o pequeno rosto da filha desaparecida/ entre os escombros:/ dezenas e dezenas de cabeças infantis/mortas (…)”. Pessoalmente, desaprovo veementemente o massacre às vidas infantis. Foram mais de 15 mil: “A ternura dos damascos se perdeu/quando mais de quinze mil crianças palestinas/ foram assassinadas por algozes (…)”.
Nós, enquanto escritores, quando optamos por registrar o testemunho de uma guerra: a fragmentação de vidas e as incontáveis mortes, acabamos por nos impactar, muitas vezes, pela nossa própria escrita. Foi difícil escrever sobre este tema, mas não impossível. Pois, se o objetivo era dar este testemunho, não houve razão para interromper o percurso da escrita, mesmo que a voz íntima tenha, em muitos momentos, se encontrado embargada pelas lágrimas.
Na introdução de seu livro, você usa poemas da palestina Muna Almassdar e do israelense Yehuda Amichai. No decorrer encontramos os palestinos Fatima Ahmad, Ahmad Assuq e, claro, Mahmud Darwich. Por que escolheu estes poetas?
A seleção desses poetas da Palestina e também de Israel, para integrar as epígrafes do livro, traduz as leituras que realizei como esteio para a escrita destes poemas e também reforça a ideia de que a poesia, em seu caráter e propósito humanizador é capaz de se sobrepor às rivalidades das guerras e revelar de forma sublimar, o desejo de paz, de união, de irmandade entre povos e nações.
O livro ‘Gaza – terra da poesia’, publicado pela editora Tabla, cujos poemas são de jovens poetas palestinos, muito me emocionaram e me inspiraram, porque retratam o sentimento do oprimido, as lágrimas da dor das perdas, a indignação pela barbárie das guerras. É o caso de Muna Almassdar, Fatima Ahmad, Ahmad Assuq. Há um poema no livro em que faço referência direta ao célebre poeta palestino Mahmud Darwich: “As cinco dentadas do poeta/ Mahmud Darwich/ numa maçã/ecoaram como um poema/ de amor e esperança/ pelos quatro cantos do mundo (…)”. E, por fim, os versos do poeta israelense Yehuda Amichai, dão voz à primeira seção temática do livro, nomeada “A floração do precipício”, e traduz o sentimento de misericórdia diante da guerra.
Especificamente sobre Mahmud Darwich. Por que ele é considerado o maior poeta palestino?
A poesia de Mahmud Darwich é de muita importância para a Palestina e para o mundo, porque aborda o drama dos que foram expulsos da terra natal (Palestina) quando da fundação do estado de Israel, em 1948. Este drama coletivo e sinistro foi chamado de “Catástrofe” − Nakba – em árabe, que vitimizou a família do poeta, pois a vila onde morava foi invadida e inteiramente devastada pelas forças israelenses. Portanto, sua poesia é de resistência e de representatividade, tanto para aqueles que se viram obrigados a viver o exílio geográfico ou mesmo para os que permaneceram mergulhados num exílio político, reféns das barreiras que dividiram os territórios israelense e palestino. Mahmud Darwich não foi apenas um palestino; ele é o corpo e a alma de seu país fragmentado, sequestrado pelo poderio de Israel. O poeta foi um exilado; chegou a ser preso e também refugiado, pois seus versos eram de engajamento político, sendo o autor da Declaração de Independência Palestina. Sua poesia ecoou pelos quatro cantos do mundo, como um brado de amor e esperança, revelando a sinceridade de suas emoções em busca da “terra perdida”, por isso o constante sentimento de ausência que marca seus versos, traduzem tão fielmente o sentimento de todos os exilados e dos desterritorializados palestinos dentro do próprio país. “(…) saudade é trocar ideia no escuro, de um ausente para outro ausente, longe que se volta para longe (…)”.
Um exemplo, existe o catalão separatista, mas ele tem a nacionalidade espanhola. Tem ainda o basco, porém ele também tem sua nacionalidade. Como o povo palestino mantém sua identidade mesmo sem ter um território? Não tem um lugar para chamar de lar e ter seu registro de identidade?
A identidade do povo palestino tem sido sequestrada por 76 anos consecutivos, desde a criação do estado de Israel. É uma identidade triturada, fragmentada pela opressão. Porém, a resistência do palestino é combatente e cava saídas para dar um nome e um rosto a seu povo, ainda que este corra o constante risco de ser exterminado: “(…) libertar-se da caixa de pesadelos/ que os genocidas depositam sobre/ o mundo/:esses são o sonho de uma nação sem um rosto/ que ainda respira coma ajuda de um balão de oxigênio”.
E sobre essa questão do lugar, Mosab Abu Toha tem a poesia “O que é lar?” onde faz este questionamento. Mas a obra dele me parece tão desiludida e ele também é o autor dos aterradores versos “Merecemos uma morte melhor. Nossos corpos estão desfigurados e retorcidos, adornados com balas e estilhaços”. Em sua avaliação, o que mantém ainda o povo palestino firme?
Em ‘Pedagogia do oprimido’, Paulo Freire explicita que o oprimido pode e deve encontrar meios de se libertar do opressor (sistema). Como? Pela força da solidariedade, da esperança, do amor. E como isso se “encaixa” na situação da Palestina? Se formos analisar, a resistência dos palestinos é um ato de amor e de esperança à terra de seus antepassados e de seus entes queridos da atualidade. Insistem e resistem, ainda que seja pela morte, perpetuam-se na esperança de um dia reencontrar o “paraíso perdido”. São solidários a si mesmos e à terra que não querem abandonar, pois lá estão os laços de vida que os unem ao mundo. Se os perdem, terão a própria existência também perdida.
Hoje o maniqueísmo toma conta. Como explicar para as pessoas que ser favorável a causa Palestina não é ser antissemita?
Diante dessa emergência humanitária, o sentimento de misericórdia que nos move é (ou deveria ser) intenso, a ponto de nos encorajar a revelar nossa preocupação com os horrores da guerra. Portanto, a explicação ou justificativa, se assim poderia dizer, é não ser favorável ao assassinato de vulneráveis, independente de etnia, nacionalidade, raça, gênero, etc. A questão, para mim, não é ser antissemita, mas antiguerra – contra qualquer forma de opressão −, de desumanidade.
Você acredita que um dia verá a criação do Estado Palestino?
Diante dos fatos e da história da perpetuação da Nakba, catástrofe provocada pela expansão colonial e pela ameaça do extermínio do povo palestino por parte de Israel, fica difícil visualizarmos uma Palestina livre − independente das correntes do colonizador −. Mas, por outro lado, quando vimos a resistência através da luta, da firmeza e da resiliência do povo palestino contra a violência da limpeza étnica e dos genocídios instrumentais, é possível acreditar que, muito em breve, a Palestina se tornará livre e, por direito, assumirá o seu território, resgatando assim, a sua identidade como nação.