Ildecir A.Lessa
Advogado
Vive-se um momento no cenário brasileiro, onde cada análise ou comentário parece uma aula Brasil. Na aula sobre o papel do Judiciário na canalização das disputas, identifica-se uma crença disseminada de que os tribunais são capazes, em algum grau, de aplicar a lei tal como ela está formulada. Ainda todo o cidadão, para reparar uma lesão, tem de recorrer a Justiça. Existe uma percepção, de que a democracia brasileira, mesmo com todos os seus problemas e aos trancos e barrancos, caminha de forma tênue para sua efetiva “consolidação”.
As instituições devem cumprir seu papel de proteger a ordem constitucional e a democracia. Deve dar atenção a onda global de desdemocratização e as crises brandas, ocorridas principalmente na América Latina. No Brasil, chama atenção o protagonismo assumido pelo Poder Judiciário. Destaque para uma atenção dobrada, no papel do Judiciário, mormente, a ação cotidiana de juízes de todas as instâncias, com sentenças diferenciadas conforme a posição social dos acusados. O que chama atenção do Brasil é que o Judiciário ocupa a posição de ponta de lança da luta de classes, cumprindo papel crucial na produção, aplicação e, em particular na vida dos cidadãos.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, observadores da política brasileira têm falado do crescente protagonismo do Poder Judiciário. A Carta constitucional garantiu prerrogativas estendidas e propiciou mudanças de comportamento dos agentes, levando aos fenômenos paralelos da “judicialização da política”, que faz as disputas passarem a ser resolvidas nos tribunais, e do “ativismo judiciário”, pelo qual o poder relativiza sua caracterização tradicional como “inerte”, avoca a si a iniciativa da ação e toma decisões que seriam do Legislativo ou do Executivo. Outra inovação da Constituição foi a enorme ampliação do âmbito de atuação do Ministério Público, órgão vinculado ao Poder Executivo, mas que cumpre funções judiciárias. No período de ascensão democrática que se seguiu à promulgação da nova Constituição, esse alargamento dos poderes de juízes e procuradores foi, em geral, visto de forma positiva pelas correntes mais progressistas. A defesa de interesses coletivos e difusos, atribuída ao MP, prometia uma ampliação – necessária e urgente – da proteção a grupos oprimidos ou ao meio ambiente. As decisões tomadas no âmbito das cortes superiores podiam representar, por vezes, uma usurpação do poder de legislar, mas se mostravam mais avançadas do que aquelas advindas de um parlamento notoriamente corrompido e no qual era crescente a capacidade de chantagem de grupos fundamentalistas.
O Supremo Tribunal Federal estabeleceu direitos de minorias sexuais (reconhecimento da união civil homoafetiva, em 2011) e ampliou direitos reprodutivos (extensão do direito de aborto no caso de anencefalia fetal, em 2012), em sintonia com bandeiras progressistas. Sem discutir o mérito das decisões, elas com certeza extrapolam o que era a intenção original do legislador. Nenhuma delas teria passado no Poder Legislativo. O desenvolvimento talvez mais surpreendente foi a aprovação em 2010, pelo próprio Congresso, de legislação que confere ao Judiciário um poder de veto na seleção de candidatos às eleições. A chamada Lei da Ficha Limpa, apresentada como iniciativa popular, apoiada pela quase unanimidade dos parlamentares e sancionada entusiasticamente pela Presidência da República, em meio a um verdadeiro clamor midiático, determinou a tutela do Judiciário sobre a soberania popular. Ainda assim, poucas vozes se ergueram contra ela. Diante das dificuldades para elevar a educação política média dos brasileiros, a Ficha Limpa parecia um atalho seguro para a “moralização” do Estado. Outra característica do Brasil é que o ativismo judiciário não é privilégio das cortes superiores. Até mesmo juízes de primeira instância podem tomar decisões de enorme repercussão coletiva – os casos de bloqueio de aplicativos de smartphones com milhões de usuários servem de exemplo. A Lava Jato revelou parte da corrupção sistêmica da política brasileira por meio de operações espetaculares. Seu modus operandi privilegiado, a “delação premiada”, dá grande margem a que o agente da lei oriente o curso da investigação. No início deste ano, dois eventos dissimilares apontaram para mudanças no cenário. Um deles foi a exposição, pela mídia hegemônica, de vantagens imorais auferidas por grande parte dos juízes, o “auxílio-moradia” dado a quem evidentemente não precisa dele. Ao que parece, setores da coalizão decidiram indicar ao Judiciário que ele não é intocável. O outro foi o anúncio, pelo ocupante da Presidência, da intervenção federal no Rio de Janeiro, que concede peso e visibilidade a um ator que, até agora, era mantido à sombra: as Forças Armadas.
O império da lei não é a garantia de uma sociedade justa, já que a lei reflete a correlação de forças dentro dessa sociedade. Como instituição política que é o Poder Judiciário é sensível à correlação de forças na sociedade. Talvez, tenha chegado o momento de repensar o papel efetivo, do Poder Judiciário na sociedade brasileira é, o que propõe essa meditação da aula Brasil!