A função catártica da arte, presente em um soneto de Cruz e Souza

  * José Lacerda da Cunha

Cruz e Souza nasceu escravo na antiga Desterro, atual Florianópolis. Negro sem mescla, pobre, beirando a miséria, sofreu muitos preconceitos: racial, social e até mesmo literário, pois pertenceu ao estilo de época, chamado simbolismo que foi sufocado pelo parnasianismo.

Cruz e Souza é para nós um exemplo de homem e de poeta, por sua resistência e superação das adversidades, como atesta o soneto de sua autoria, transcrito a seguir.

Sorriso interior

O ser que é ser e que jamais vacila

Nas guerras imortais entra sem susto,

Leva consigo este brasão augusto

Do grande amor, da grande fé tranquila.

 

Os abismos carnais da triste argila

Ele os vence sem ânsias e sem custo…

Fica sereno, num sorriso justo,

Enquanto tudo em derredor oscila.

 

Ondas interiores de grandeza

Dão-lhe esta glória em frente à natureza

Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

 

O ser que é ser transforma tudo em flores…

E para ironizar as próprias dores

Canta por entre as águas do Dilúvio!

 

Este soneto é um dos mais belos que compôs o admirável poeta negro, Cruz e Souza, para quem a arte é um processo de catarse, ou seja, uma purificação, ascese, terapia.

Na sua concepção, o homem é formado de corpo e alma, forças antagônicas que fazem de nossa existência uma guerra e a vitória a ser alcançada é ou deveria ser de nossa parte mais nobre, por isto que é a mais bela e, por sua natureza, é imortal.

Assim, o corpo, como matéria perecível, tem um caráter negativo e a alma, um caráter positivo. Desta’rte, o ser que é ser ou o homem que é homem enfrenta a vida como uma guerra imortal. As armas que porta são “o grande amor, a grande fé tranquila, sua grandeza vem das ondas interiores”. Em contraposição, as forças materiais vêm da matéria, “Os abismos carnais a triste argila”.

A vida é luta e, por isto, é dor. Além do grande amor, e da grande fé tranquila, o ser que é ser dispõe também da ironia, mesmo em face da dor, “para ironizar as próprias dores, canta por entre as águas do dilúvio.” Sabedoria socrática ou cristã? Não importa, o que importa é que esta sabedoria conduziu o poeta a “atravessar, no silêncio escuro, a vida presa a trágicos deveres, chegando ao saber de altos saberes e tornando-se mais simples e mais puro.”

Como já estamos em clima de festas natalinas, com os votos de feliz e Santo Natal, aos caros leitores, transcrevo a seguir um poeminha de minha autoria:

Natal

É natal

Tempo feito para

Afrouxar o passo

Estender os braços

 

Repartir abraços

Apertar a mão.

Respirar a calma

Retocar a alma

Corpo e coração.

 

*José Lacerda da Cunha, professor do Centro Universitário de Caratinga, Coordenador da Área de Linguagem e suas Tecnologias da Escola Professor Jairo Grossi, Membro da Fundação Educação Educacional de Caratinga e da Academia Caratinguense de Letras.