Livro assinado por militar de carreira especialista em história e ciências políticas propõe uma nova perspectiva sobre os acontecimentos que antecederam o regime militar brasileiro
DA REDAÇÃO – Fugir das simplificações frequentemente apresentadas no debate público é a força-motriz de ‘O que você ainda não sabe sobre 1964 – Ideologia & polarização na Guerra Fria do Brasil’, livro assinado pelo militar de carreira especialista em história e ciências políticas, Juan Bender.
Publicada pela Editora Appris, a obra proporciona aos leitores um mergulho profundo nos acontecimentos que culminaram com golpe militar de 31 de março de 1964 e seus desdobramentos. Sem mascarar e nem suavizar as violências cometidas por oficiais e guerrilheiros, Bender apresenta uma narrativa instigante e acessível dos diferentes discursos que moldaram a história recente do país.
Ao longo das páginas, ele propõe uma nova perspectiva sobre o tema a partir de um trabalho de pesquisa meticuloso e busca responder questões essenciais como “De onde surge o fenômeno da intervenção militar?”, “A ameaça comunista foi uma realidade ou uma construção conspiratória?” e “A luta armada da esquerda foi causa ou consequência do Regime Militar?”.
Dividido em três partes, o lançamento traça um panorama amplo e detalhado da trajetória do Exército brasileiro, desde suas origens até a relação com os eventos de 8 de janeiro de 2023, em Brasília. No primeiro momento, o especialista investiga as influências que consolidaram a ideia de que militares poderiam intervir na política diante de crises institucionais e detalha como se formou o caráter anticomunista das tropas.
Bender dá continuidade ao estudo explorando não apenas a influência dos EUA durante a Guerra Fria, mas também a atuação da Rússia, China e Cuba no fomento às guerrilhas em terras tupiniquins. Segundo ele, esse apoio tinha como objetivo instrumentalizar a tomada de poder pela Esquerda. Por isso, muitos estudiosos entendem que o golpe militar foi, na verdade, um contragolpe ou um golpe preventivo, que livrou o país de uma ameaça amplamente temida pela sociedade civil.
O título finaliza com uma discussão sobre a guerra cultural e a disputa pela memória de 1964. Esse debate revela como os anos de regime militar consolidaram uma percepção distorcida sobre o papel das Forças Armadas na política brasileira, que explicaria os pedidos de intervenção popularizados em manifestações nos anos recentes.
Provocativo, ‘O que você ainda não sabe sobre 1964’ é ferramenta para quem busca compreender como a narrativa sobre esse período foi construída e disputada ao longo do tempo. O livro é indicado para interessados em história e política. Também é leitura indispensável para os que desejam se aprofundar na genealogia dos eventos que marcaram a segunda metade do século XX e continuam a reverberar no presente por meio de disputas ideológicas cada vez mais acentuadas.
O que o motivou a escrever sobre o golpe de 1964 e os impactos ideológicos e polarizadores que ele causou no Brasil?
Olá, obrigado pela oportunidade. Minha motivação para estudar o tema surgiu do contraste entre as diversas narrativas sobre 1964, que muitas vezes se apresentam de forma unilateral ou fragmentada. Decidi escrever porque percebi que muitas pessoas compartilhavam das mesmas inquietações. E a publicação neste momento se justifica pelo diálogo evidente entre os eventos de 1964 e os desafios ideológicos e políticos do Brasil atual.
Em seu livro, você menciona a Guerra Fria. De que forma você acredita que os eventos de 1964 no Brasil se encaixam nesse contexto global?
De várias formas. O contexto da Guerra Fria foi essencial para os eventos de 1964, e novos documentos recentemente divulgados pelo presidente Donald Trump reforçam algo que meu livro já apontava: não apenas os EUA, mas também China e Cuba acompanhavam de perto a política brasileira. Isso não é exatamente uma surpresa, pois o Brasil tinha um papel estratégico na disputa geopolítica da época. Essa importância foi sintetizada pelo presidente Nixon ao afirmar que “para onde o Brasil for, para lá irá o resto do continente latino-americano”.
Como a polarização ideológica foi exacerbada pelos acontecimentos de 1964 e como isso se reflete até hoje na política brasileira?
Ótima pergunta. No meu livro eu defendo que existem fragmentos de polarização que são anteriores à Guerra Fria sendo, naturalmente, acentuados com ela. A polarização ideológica não apenas marcou a política da época, mas se perpetuou na construção das narrativas sobre o período. Hoje, ainda vemos ecos desse conflito nas disputas políticas e na forma como diferentes grupos interpretam a história.
O livro explora o conceito de “ideologia”. Quais ideologias, especificamente, estavam em jogo durante o golpe e como elas moldaram o desenrolar dos acontecimentos?
Sendo a ideologia um conjunto estruturado de ideias que orientam a visão de um grupo, é possível dizer que em 1964, a despeito das complexidades, as ideologias acabaram se organizando em torno dos polos da Guerra Fria. Pelo lado dos militares que assumiram o poder, havia uma fusão de influências: o positivismo à brasileira, herdado da Proclamação da República; elementos da doutrina militar alemã, introduzida antes da Primeira Guerra Mundial; posteriormente substituída pela doutrina francesa e, enfim, pela norte-americana, com a incorporação da concepção anticomunista de Segurança Nacional na Escola Superior de Guerra (ESG). Essa visão uniu militares e setores civis em um projeto de modernização conservadora. Os militares de 1964 se viam como revolucionários, herdeiros do tenentismo dos anos 1920, mas, na prática, sua proposta se mostrou mais contrarrevolucionária ao se opor à segunda grande corrente ideológica do período. Do outro lado, grupos de esquerda, influenciados pelas experiências da Rússia, China e Cuba, viam o Brasil como um país em estágio pré-revolucionário, rumo ao socialismo. No entanto, as divergências internas – entre stalinistas, maoístas e castristas – e a consequente fragmentação nas estratégias de implementação dessas ideias contribuíram para os insucessos de suas tentativas.
Em sua pesquisa, você encontrou alguma diferença nas percepções sobre 1964 entre as gerações mais velhas e mais jovens no Brasil?
Sim. Com algumas exceções, é comum que pessoas mais velhas guardem boas recordações do período. Curiosamente, porém, elas costumam ser tratadas como alienadas nas aulas de História, como se tivessem vivido à margem da realidade difundida pelos livros didáticos e assimilada pelas gerações mais jovens. Essa dicotomia me faz refletir sobre o Brasil contemporâneo e sobre a inevitável pergunta: como o nosso presente será retratado nos livros de História do futuro?
Quais foram os principais desafios que você enfrentou ao escrever sobre um tema tão controverso e sensível?
O primeiro desafio foi a falta de tempo, já que, sem qualquer vínculo institucional, acadêmico ou militar, a pesquisa foi realizada exclusivamente nas minhas horas de lazer. No aspecto intelectual, enfrentei o desafio de revisar minhas próprias concepções prévias, garantindo um olhar mais amplo e crítico sobre o tema. Depois, veio a tarefa de delimitar os eventos que receberiam maior destaque dentro do recorte proposto. Acredito que todos esses desafios foram superados de maneira satisfatória.
Como você vê a relação entre o discurso político atual no Brasil e o legado do golpe de 1964, especialmente em relação à polarização ideológica?
Me sinto inclinado a concordar com Gustavo Marques Bezerra quando o diplomata nos diz que a ditadura militar foi o mito que refundou a esquerda brasileira. Com isso não se quer dizer que não houve repressão, mas sim que o tema foi instrumentalizado e adequado a interesses políticos, figurando como exemplo a mentira de que os grupos armados lutavam por democracia – quando os documentos produzidos por esses mesmos grupos nos dizem o contrário. Como escreve Marco Villa, a democracia, naqueles anos, era questionada à esquerda e à direita. Assim, ambos os lados fomentaram propostas à margem da legalidade para o Brasil.
De que maneira o seu livro busca corrigir ou ampliar a narrativa histórica sobre o golpe de 1964, comparado aos relatos mais tradicionais?
Minha proposta é não substituir mas ampliar a discussão. Tenho respeito pelo trabalho que foi produzido até aqui, porém o lamentável e inadmissível saldo de 379 mortes, atribuído pela CNV aos 21 anos de governos militares, é contemporâneo às 2.000 mortes no Chile e aos 6.000 fuzilados em Cuba. O pequeno grupo de guerrilheiros da Colômbia se transformou nas FARC que passaria a controlar 20% do território desse país. Meu intuito não é, com isso, de forma alguma, justificar as atrocidades cometidas, apenas situá-las no contexto complexo que lhe é devido.
No seu livro, você faz referência a eventos internacionais. Como o contexto internacional, como a relação com os Estados Unidos, influenciou o desenrolar do golpe e o regime militar no Brasil?
Os documentos apontam que os EUA, tal como o regime cubano e soviético, mais do que monitoraram a política brasileira, atuaram sobre ela. Para além do repasse de informações entre Lincoln Gordon e Lyndon Johnson (embaixador e seu presidente), os EUA injetaram dinheiro em instituições alinhadas aos seus interesses, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Quando diante da hipótese de um confronto armado – esperado desde a revolta dos sargentos em setembro de 1963 – os EUA ofereceram apoio logístico ao projeto que melhor lhe convinha por meio da chamada “Operação Brother Sam”. No entanto, não houve reação imediata e o apoio não foi utilizado. Considero o papel dos EUA uma das peças do quebra-cabeças, mas ainda assim uma peça no meio de outras.
Qual o papel da mídia na formação das narrativas sobre 1964? Ela foi mais influente no processo de legitimação do golpe ou na oposição ao regime?
Acredito que a mídia foi mais influente na legitimação uma vez que capturou o clima de gradual radicalização. Nesse sentido, me amparo no trabalho de Jorge Ferreira e Ângela Castro, ao apontar como distorcida a percepção segundo a qual o governo Jango sofreu boicotes por todos os lados, do início ao fim. O fato é que o presidente chegou a contar com apoio de amplos setores, incluindo parcela das Forças Armadas e imprensa, fato que começaria a mudar a partir de setembro de 1963 quando sargentos invadem e fazem reféns no Congresso e STF. Em suma, a mesma imprensa que defende a posse de Jango em 1961, também defende sua deposição em 1964.
Quais são as lições que você acredita que o Brasil deve aprender com os erros e as divisões do passado, especialmente quando se trata de lidar com a polarização atual?
Quando se trata de polarização, considero oportunas as palavras do general Villas Bôas ao comparar a ideologia a um pêndulo: quando empurrada ao extremo, inevitavelmente retorna ao lado oposto. Por isso, acredito na importância de romper bolhas. Meu livro enfatiza uma perspectiva em detrimento de outra, mas sem negar o contraditório. As diferentes narrativas sobre 1964 não se anulam necessariamente, mas coexistem — e talvez o mesmo se aplique ao Brasil de hoje. A verdade, afinal, costuma estar no meio.
Que público você acredita que se beneficiaria mais da leitura do seu livro e o que espera que os leitores tirem de suas análises e conclusões?
O livro busca situar 1964 em seu contexto e foi pensado para qualquer pessoa interessada em complementar seus conhecimentos sobre esse tema tão complexo. A mensagem do livro é que uma opinião pode ser inócua se não for precedida por um mínimo confronto de perspectivas.
Por fim, ainda há um debate sobre o que aconteceu em 31 de março de 1964: Houve revolução, golpe ou intervenção militar?
A marcha militar iniciada em 31 de março e complementada em 2 de abril com a deposição de Goulart pelo Congresso pode ser tecnicamente classificada como um golpe de Estado, por se tratar de uma ruptura institucional. No entanto, também pode ser interpretada como um contragolpe, caso se levem em conta os indícios de um possível golpe em articulação por parte de João Goulart. Essas nomenclaturas não se anulam, mas coexistem, assim como a hipótese de “contrarrevolução”, sustentada por aqueles que entendem que os militares teriam contido um movimento revolucionário em curso — perspectiva respaldada pelos indícios que apresento ao longo do meu livro. Por fim, com base nos estudos do coronel Manoel Soriano Neto, destaco que os militares adotaram a designação “Revolução” com o objetivo de estabelecer um diálogo jurídico com a noção de poder constituinte originário, conforme se observa no texto do primeiro Ato Institucional, promulgado em 9 de abril de 1964.
SERVIÇO
Ficha técnica
Título: O que você ainda não sabe sobre 1964 – Ideologia & polarização na Guerra Fria do Brasil
Autoria: Juan Bender
Editora: Appris
ISBN: 978-6525073361
Número de páginas: 319
Preço: R$ 70,00
Onde encontrar: Amazon
- Juan Martinez Bender, natural de Pelotas (RS), é pós-graduado em Filosofia, História e Sociologia, Literatura Brasileira e Ciências Políticas. Possui graduação em História e Segurança Pública. Atualmente, cursa pós-graduação em Biblioteconomia. Militar de carreira, formou-se na Escola de Sargentos das Armas, e especializou-se na Escola de Comunicações, para onde foi convidado a retornar como professor. Participou de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) na fronteira Sul do Brasil e integrou o Contingente de Missão de Paz no Haiti. No âmbito administrativo, atuou nas áreas de Fiscalização, Planejamento Estratégico e Governança. Antes da farda, em sua cidade natal, foi estoquista de autopeças, recruta de Infantaria e guitarrista, apaixonado por The Strokes.