* Nelson de Sena Filho
Em tempos de mudanças paradigmáticas, de revoluções tecnológicas e de uma impressionante mudança de temas, assuntos, éticas, morais e filosofias, tentar achar o perene é sempre uma tarefa difícil. Pensar que os séculos futuros derrubarão inevitavelmente nosso conhecimento científico e toda nossa cultura é tanto algo desanimador – para aqueles que creem em verdades absolutas – como desafiador – para os relativistas mundo afora.
O maior filósofo de todos os tempos já afirmava que tínhamos a arte para que a realidade não nos destruísse. Sobre esse mesmo assunto, aquele que “matou” a metafisica, o sistemático Kant, tentava ensinar mais uma metodologia para se pensar sobre a arte do que para julgar a beleza de algo. A arte, e a sua mais sublime manifestação, a literatura é o que se perpetuará, independente de credos, verdades, conhecimentos científicos tecnologias. Nos séculos vindouros, Platão e Aristóteles continuarão sendo ensinados enquanto os Gates e os Zuckerbergs não passarão de notas de rodapé. Alenta saber que a literatura é um alento à verdade. A verdade judaica se despida de bobagens metafísicas é o melhor exemplo. Para tentar ilustrar, vamos tomar a saga mosaica como um libelo literário comparando-a com a saga rosiana.
Nosso mais genial escritor, o mineiro Guimarães Rosa, escreveu um livro que, como o Dom Quixote, ou o Dantesco Inferno do italiano, sem dúvida nenhuma se perpetuará até a impreterível chegada do Apocalipse. Moisés ao relatar sua saga no Pentateuco judaico – bíblico foi responsável pela criação de toda religiosidade do mundo ocidental. Ambos trabalham com duas grandes travessias, uma no deserto e uma no sertão, e com dois pactos, um com Deus e outro com o Diabo, que resultam na questão que atormenta todos os humanos: haveria uma causa na travessia e, consequentemente, uma ajuda exterior ou estaria o homem condenado à sua liberdade e por isso mesmo sua travessia e seu destino seriam apenas “humano demasiado humano”?
A história de Riobaldo e Diadorim e sua travessia pela vereda humana, num grande deserto, é tanto a “saga” da humanidade como também a travessia do “homem humano” pelos seus infernos interiores. Para realizar a travessia do sertão em tempos de “bala com bala” Riobaldo recorre (?) a um pacto com o Diabo. Para realizar sua travessia interior, tenta um pacto com Deus para vencer seus demônios interiores. O sertão está dentro da gente.
Na outra epopeia também humana e também divina a Mosaica, recorre igualmente a uma travessia (do povo bíblico pelo deserto até a terra que, supostamente, manaria leite e mel) e a um pacto (agora divino, entre Moisés e Deus). Saídos da escravidão havia também uma dupla jornada, sendo uma exterior, pelo deserto e uma interior, na construção do monoteísmo que mudaria a face da civilização.
O pacto com o diabo que Riobaldo faz e o pacto com Deus que Moisés faz, ambos querendo atravessar o deserto-sertão com seu “povo” e alcançar a “vitória final” mostram que tanto um como o outro são sempre mais eficazes pela percepção de algo foi feito que pelo resultado em si. Kant estaria certo? Ambos (Riobaldo e Moisés) duvidam e creem o tempo todo, se atormentando e se exaltando conforme mudam suas concepções do pacto e da vida.
Mas, em ambos, parece que a travessia interior é sempre mais perigosa que a exterior. Seja qual for a escolha, o caminho e o pacto, sartreanamente os demônios interiores são mais difíceis de serem abatidos. (Ou seria de Nietzsche a razão?)
Ambos, Riobaldo e Moisés atravessam a seara interna – externa, e veem no pacto com seus divinos as causas das vitórias, derrotas, conquistas etc. Mas ambos estão sempre cheios de dúvidas se foi o pacto que os fez vitoriosos ou derrotados, ou se sem o pacto o resultado teria sido o mesmo.
Ambos, Moisés e Guimarães Rosa, acabam por criar personagens eternos numa luta que é a luta de todos nós. Atravessar o deserto pactuando com um ou com o outro, restará sempre a dúvida de ser este mundo povoado por deuses e demônios ou se, estamos abandonados ao próprio caminhar.
Seja como for, literariamente falando, ambos criaram obras primas, que afinal, mais que pactos ou se saber da existência dos pactuários, talvez seja esta a causa maior da travessia humana demasiadamente: a criação, seja nas palavras, nas imagens, nas músicas, ou na cara das minhas filhas e do meu amor.
Prof. Nelson de Sena Filho
Professor do Centro Universitário de Caratinga – UNEC