* Eugênio Maria Gomes
Quando eu era bem garoto, antes da idade escolar, passava horas do dia olhando para o longo muro que dividia a fazenda dos “Penas” das poucas casas existentes no Bairro Limoeiro, no início da década de 60. A fazenda estava localizada acima do terreno da nossa casa e, do nosso terreiro, eu podia avistar o grande muro.
O que há atrás daquele muro? Esta era a pergunta que os meus pais mais ouviam de mim, nunca satisfeito com as respostas do tipo “lá tem assombração”, “tem uma mulher sem dentes que rouba menino curioso” e “tem um homem bravo que dá tiro em quem pular o muro”.
Com o passar do tempo, mais moradores foram chegando ao bairro, os donos da fazenda a deixaram, o muro da propriedade foi sendo corroído pelo tempo e, certo dia, quando retornava da escola, assim que coloquei os objetos na mesa da cozinha, escutei um pedido de socorro, proveniente das bandas onde se localizava a fazenda. Todos os presentes na minha casa correram para o terreiro, mas o grito não se repetiu. Mais uma vez, olhei para aquele muro e pensei: o que há atrás daquele muro? Desta vez, subi o terreno, passei entre dois fios de arame farpado de uma cerca e cheguei ao tal muro. Do outro lado, uma grande casa, com muitas portas e janelas e, no primeiro andar, um imenso porão…
Do outro lado do muro, em um canto do porão, pude ver uma senhora muito magra, dividindo o seu tempo em cuidar de uma penca de crianças e do marido, doente, inerte sobre uma esteira feita de taboa. A família viajava pela BR 116, sem recursos financeiros e destino certo, quando resolveu parar naquele local em função do grave estado de saúde do homem. E lá estava ele, estirado naquela esteira, com o corpo coberto por escaras, de olhos arregalados como a olhar para o infinito, gemendo baixo e com a respiração quase imperceptível. Cheguei mais perto e pude ouvir os soluços da mulher, que, olhando em meus olhos, entregou-me uma vela acesa, sinalizando sobre o que eu deveria fazer.
Do outro lado do muro, presenciei, pela primeira vez, enquanto mantinha uma vela acesa entre as mãos daquele homem, a vida esvair-se, cedendo lugar ao pranto e a um certo alívio pelo término da dor. Naquele lado do muro fui entender o que era realmente uma vida dura, difícil, onde a pouca comida disponível era preparada e consumida em latas de óleo cortadas, transformadas em pratos e panelas. Foi lá que fiz bons amigos e vi uma gente sair, aos poucos, daquela triste condição de inércia, alçar voo, mudar de vida, de hábitos e de endereço.
Não sei exatamente o que deixei de viver desde a primeira vez em que perguntei sobre o que havia atrás daquele muro, mas sei exatamente o que ganhei, o que senti e o que aprendi quando resolvi transpô-lo. Depois disso, além de aguçar ainda mais a minha curiosidade sobre o que existia atrás dos muitos muros que encontrei – e ainda encontro nesta minha caminhada -, criei coragem para tentar, o tempo todo, verificar o que existe atrás de cada um deles, quando me sinto instigado a isto.
Foi a coragem de saber o que existia atrás do muro da Educação que me fez estudar e iniciar um curso superior, nadando contra a corrente dos que me rodeavam, em um momento em que cursar uma boa universidade era privilégio para muitos poucos.
E assim, como muitos de vocês que me leem agora, fui transpondo barreiras, buscando conhecer e viver o que existia atrás dos muros da aprendizagem, da amizade, do amor, do casamento, do trabalho, da paternidade, dos clubes sociais, da docência, da Maçonaria, da Igreja, da literatura, da tecnologia… Sei que não consegui compreender todas as coisas e muito menos viver todas as possibilidades de tudo o que estava atrás de cada muro, mas tenho certeza absoluta de que jamais poderia ter passado por aqui se não tivesse vivido o pouco que me foi possível.
Estou me preparando para transpor outros muros, como o muro da aposentadoria, cuja visualização vai ficando cada vez mais nítida, na medida em que o ano novo se aproxima.
Transpondo cada muro que se apresenta a sua frente, o homem vai descobrindo tudo o que lhe é permitido viver. Só não vale ficar parado, com medo ou preguiça de transpô-lo. Se for preciso, vale colocar uma escada, subir alguns degraus e dar aquela espiada e, quem sabe, avançar muro adentro…
Os muros que encontramos na vida podem ser vistos como limites, barreiras intransponíveis, ou podem ser vistos apenas como desafios, como estímulos, instigando nossa capacidade de superação, nossa força de vontade, nossa criatividade, nossa curiosidade, nossa persistência.
A diferença, então, entre viver de fato a vida, ou apenas, vê-la passar, está, justamente, em como vemos os muros da vida…
* Eugênio Maria Gomes é professor e escritor.