À guisa de contextualização, vamos esclarecer o que é o Martelo das Bruxas. É um manual de torturas escrito por dois monges dominicanos a quem foi dado, em cumprimento à bula papal de Inocêncio VIII, a atribuição de escrever um conjunto de regras de tortura para castigar àqueles que infringissem as regras e princípios determinados pela Igreja. Coincidentemente ou não, a maioria dos infratores eram mulheres, daí o nome bruxas.
E quem eram as bruxas? Mulheres para-humanas com poderes de praticar feitiçarias? Não, a questão não era esta. As mulheres consideradas bruxas ou feiticeiras eram aquelas com atitudes ousadas, que demonstravam uma inteligência acima das demais pessoas e sexualmente conscientes. Imaginem tal comportamento no século XI, quando as mulheres só saíam de casa para irem à igreja, eram confinadas em seus lares cuidando dos filhos e dos trabalhos domésticos. No patriarcalismo as mulheres não podiam ter outras funções que não estas e também aquela de obedecer aos pais, maridos, e até mesmo os dirigentes da Igreja. Esta submissão feminina explica a solidificação do domínio masculino em todos os aspectos da sociedade. A mulher não significava nenhuma ameaça a este poder, pois na concepção deles ela sequer pensava. E se houvesse alguma que pensasse e manifestasse sua inteligência ou fosse livre e dona do seu próprio destino era uma heresia contra a Igreja e contra o domínio masculino. Quando alguma se manifestava e pudesse ser uma ameaça era torturada até a morte.
Três séculos depois este mesmo manual tornou-se autoridade final para a Inquisição. Não quero fazer aqui um relato histórico da posição da mulher através dos tempos, pois é conhecimento da maioria das pessoas. O que quero refletir é sobre a relação homem-mulher, que em sua essência não mudou nada desde a Idade Média. Só quero buscar respostas para o grande número de assassinatos de mulheres por seus companheiros nos dias de hoje, em pleno século XXI. Por que tanta violência contra a mulher? O que a mulher representa para o homem ou para uma sociedade onde os homens dominam a maioria das instituições?
Alguns dizem matar por amor. Mentira, amor não mata. Outros dizem matar por ciúmes. Acredito, pois o ciúme é um comportamento doentio. Mas penso que a motivação mais forte é a ideia de posse ou de perda da posse, ou ainda a incapacidade de lidar com a perda e de aceitar que a mulher possa ser livre e independente do homem. A incapacidade de lidar com todas estas situações também é um comportamento doentio. Seria ancestral? Porque as formas de matar são as mais atrozes possíveis, por isso retomei o Martelo das Bruxas, cujas formas de tortura eram por demasiado cruéis.
Quando o assassinato ocorre entendemos que é o único argumento que o homem tem para resolver um problema que o aborrece ou uma situação sobre a qual ele não tem controle. Ora, se ele é o “dominador”, por que não consegue resolver o problema, por que não mantém o controle da situação? Porque, na verdade, o assassinato é prova da ausência de argumentos e de controle, prova de total fraqueza e lucidez diante de um problema. E a tão divulgada inteligência superior masculina?
Eu deveria falar dos últimos acontecimentos políticos do país, mas resolvi abordar este assunto porque as estatísticas de feminicídios mostram índices altíssimos, que não são revelados na mídia, que não têm a atenção das autoridades nem a preocupação dos estudiosos em comportamento humano e da antropologia. Sabem quantas mulheres são assassinadas por dia no Brasil? Cinco mulheres são agredidas a cada dois minutos, dez são assassinadas por dia, cento e quatro agredidas diariamente e uma é estuprada a cada quatro minutos. Cinquenta mil mulheres são estupradas por ano no Brasil e mais de cinquenta mil são assassinadas.
E o que acontece com os criminosos? A maioria consegue evadir, alguns cumprem um mínimo de pena e voltam para o convívio social, porque as leis brasileiras são frouxas, obsoletas e muito condescendentes com a criminalidade. Haja vista, há algumas décadas, um homem matar uma mulher podia até ser considerado “legítima defesa da honra”. Que honra? Honra de assassinar? Existe alguma honra nisto?
Necessitamos de uma solução já! Uma certeza temos, que a solução começa pela educação familiar, seguida pela educação nas escolas, pela reformulação das leis e mais profundamente por uma mudança cultural de se pensar que a mulher é posse do homem, de que é submissa, de que é menos inteligente, de que tem menos direitos.
Sabemos que a família tem um papel relevante na formação do caráter desse homem que mata e estupra. Há uma cultura machista intrincada nas famílias, pois ainda existe uma forma diferente de se criar os filhos e as filhas. Por que essa discrepância? Não sou feminista, penso apenas que toda pessoa deve ser respeitada, independente de gênero, e que ninguém é dono de ninguém.
Para piorar essa cultura da “normalidade” da violência contra a mulher; as autoridades que atendem a um caso de estupro, por exemplo, logo questionam se a vítima estava embriagada, se usava drogas, como se isto justificasse a violência contra ela. Não importa o que ela fazia, ela não merecia ser estuprada, ela não merecia ser morta, porque antes de tudo era um ser humano. Esta distorção é um indicador de extremo preconceito contra a mulher, além de afirmar nas entrelinhas que o criminoso tinha razão.
Voltemos os olhos para o fato revoltante que aconteceu esta semana no Rio de Janeiro, o estupro de uma moça por trinta e três jovens. Não há adjetivo para qualificar ato tão monstruoso e animalesco! Gera em nós mulheres mais revolta e indignação quanto à falta de respeito e ao medo a que vivemos submetidas.
Faz-se urgente discutir ampla e exaustivamente o assunto, há que se inserir nos currículos escolares educação sobre respeito ao outro independente de gênero, há que se mudar as leis para que as mesmas punam com eficácia e inteligência a violência contra a mulher. A falta de formação da família, as muitas formas de apelo da mídia desde a excessiva sensualização da mulher, como se esta fosse unicamente um ser destinado ao prazer (ideia discriminadora), dos filmes de violência, dos jornais que veiculam este tipo de violência, mas não levantam discussões, o que a torna cada vez mais banal, até a impunibilidade quando o fato chega às autoridades e se depara com sua indiferença e com leis ineficazes.
Estamos vivendo uma verdadeira barbárie, como se voltássemos a eras antigas quando o homem não tinha nenhuma instrução e matava pela sobrevivência, parece estar despertando dentro do homem (ser humano) o canibal feroz devorador do seu próprio semelhante. É onde chegará essa sociedade que não tem limites, nem princípios, nem formação.
Faz-se urgente educar esta sociedade, faz-se urgente ensinarmos a nossos filhos que é criminoso praticar estupro; e não apenas ensinar às nossas filhas a temerem o estupro ou a violência contra elas.
Faz-se urgente mobilizarmos todos os segmentos da sociedade para mudarmos essa cultura. Urgente!
Marta Miranda e Walber Gonçalves de Souza são professores.