O fim de ano é carregado de emoções, tanto boas quanto ruins, consequência das lembranças e das experiências vividas no ano que está terminando. O fim de ano nos traz a esperança de que o novo ano seja melhor do que o ano que se finda, traz frustrações de planos, de desejos, e sonhos não realizados no ano que termina, nos enchendo de expectativas para o ano que chega, no qual pretendemos ver, finalmente, nossos anseios realizados.
O fim de ano também nos traz as angústias que foram acumuladas durante o ano todo, angústias e tristezas causadas pelas perdas que o ano que terminou nos trouxe, angústias e tristezas pelas brigas e discussões que infelizmente podem ter acontecido, pelas amizades perdidas, pelas relações que chegaram ao fim. Mas junto com esses sentimentos ruins, se sobressai a esperança de que o novo ano seja melhor. Renovam-se as esperanças, renovam-se as forças, e novos desejos e sonhos se juntam aos antigos, onde, alguns, são deixados de lado. Assim, com tantos desejos e esperança por renovações, o ano novo sempre nos traz a oportunidade de um recomeço, a oportunidade de uma vida nova, uma vida completamente renovada e, depois dos últimos dois anos, assolados pela pandemia, o maior anseio da maioria das pessoas é um novo recomeço para nossas vidas. Mas recomeçar nunca é fácil, ainda mais em um mundo em constante transformações e mudanças.
Tudo em nossa volta está em constante processo de mudança, de transformação, e cada um de nós, mesmo sem perceber, somos afetados e, consequentemente, transformados por esses processos. Estamos no mundo, vivemos no mundo e, nesse contexto, tudo aquilo que afeta o mundo, e causa mudanças na sociedade, sejam boas ou ruins, também afeta e transforma cada um de nós em particular e, dessa maneira, assim como a ideia proposta por Heráclito, cada um de nós estamos em constante processo de mudança, transformações, nos proporcionando, sempre, uma nova oportunidade para o recomeço.
Heráclito, um dos mais influentes filósofos gregos pré-socráticos, tinha um bom entendimento sobre a constância na transformação do universo. Heráclito viveu em Éfeso, aproximadamente nos anos 535 a.C. – 475 a.C., e é considerado o “Pai da Dialética”, e o cunhador do conceito de “Logos”. Heráclito cunhou uma frase que expressa bem a constante transformação das coisas que veio a se tornar bem conhecida com o tempo; Heráclito dizia que: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”.
Segundo Heráclito, ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois as suas águas mudam, estão em constante movimento e, nós mesmos, ao entrar pela segunda vez, já não somos mais os mesmos de antes. Mesmo que o “rio” se encontre geograficamente no mesmo lugar de antes, a sua essência não é mais a mesma, as suas águas não são mais as mesmas, foram trocadas, transformadas, renovadas pelo seu jorrar constante.
Heráclito concluiu que tudo está em permanente estado de mudança – de fluxo, consequência da constante tensão gerada pelos incontáveis pares de opostos que estão sempre em ação em nosso mundo (dia e noite, quente e frio, etc,.) que levam a unidade do universo, um universo em constante transformação.
Além de Heráclito, outros filósofos também falaram sobre a constante transformação das coisas, e como nós podemos atuar para essas transformações e mudanças. O filósofo espanhol Ortega y Gasset, e o filósofo alemão Edmund Husserl, tinham opiniões parecidas com relação à realidade, e sobre como nós poderíamos agir para mudá-la. Edmund Husserl, pai da fenomenologia, via a realidade como um processo em evolução, no qual o indivíduo e o mundo dependem um do outro. Ortega y Gasset, de igual modo, afirmou que nascemos em um mundo que nos molda, mas que podemos mudar o nosso mundo, a nossa realidade, modificando a forma como os percebemos. Mas essa mudança não ocorre de forma fácil, e o próprio Ortega reconhece que as circunstâncias que nos cercam sempre irão limitar a extensão da realização de tais mudanças.
Ortega y Gasset via a vida como uma série de colisões com o futuro, pois, a realidade e o mundo que nos cerca sempre irão colidir com os nossos sonhos e desejos, mas, segundo a ideia do filósofo, devemos sempre sonhar, e buscar nos livrar da influência de nosso presente, lutando para alcançar o futuro desejado.
A ideia de Ortega é que devemos desafiar as circunstâncias que se apresentam a nós. Segundo a ideia de Ortega, toda a tentativa de mudança será desafiada, mas temos que continuar lutando contra as circunstâncias que tentam, e sempre tentarão, nos limitar. Assim, por mais difícil que seja, devemos sempre estar dispostos a enfrentar os desafios que aparecerão em nossa jornada rumo a retomada e ao recomeço de nossas vidas, principalmente, ao enfrentar as consequências e os efeitos da pandemia. Dentro de nosso contexto histórico, a tarefa de recomeçar será um pouco mais difícil do que nos períodos chamados “normais”, pois as limitações nos cercam de todos os lados, mas, mesmo assim, devemos sempre sonhar, e buscar, cada dia mais, nos livrar das influências nefastas de nosso presente para podermos alcançar um futuro melhor, como propôs Gasset.
Se queremos recomeçar, não devemos nos enganar: haverá muitas dificuldades. Mas que venhamos a estar prontos para encarar os desafios que aparecerem, e prontos para fazer com que o próximo ano seja um ano de grandes realizações e mudanças, de forma que ele seja o recomeço de uma grande história para todos nós.
Que venhamos ser como o rio de Heráclito, unidos a resiliência proposta por Ortega y Gasset: nos mantendo em constante mudança, constante transformação, sempre prontos para recomeçar, independentemente das dificuldades e dos limites que nos cercam, sempre em constante mudança e renovação, sempre para melhor, e que não tenhamos medo de recomeçar nossa vida, nossa história, sempre que for necessário, principalmente diante do momento histórico pelo qual estamos passando, pois, como diz o sábio: “enquanto há vida, ainda há esperança” (Ec 9:4). Assim, enquanto respirarmos, que nunca nos falte a esperança de dias melhores, de um futuro melhor, mesmo que, para isso, tenhamos que nos reinventar, e recomeçar infinitas vezes.