Eugênio Maria Gomes
Bertoldo, viúvo, nunca teve muito problema para dormir. Mas, naquela noite, a coisa não estava fácil, tudo parecia incomodar. Bertoldo rolou na cama, de um lado para o outro, buscando a melhor posição para a chegada do sono, mas, nada. Não conseguia se desligar do telefonema que recebera no final da tarde…
– Alô.
– Boa tarde. Este telefone é do Bertoldo?
– Sim. Quem está falando?
– Não reconhece a minha voz? Não acredito…
– Não me é estranha… Estou no centro da cidade, muito barulho.
– Aqui é a Maria Antônia…
Bertoldo, sem conseguir dormir, desligou o ar condicionado, abriu a janela e deixou que a noite iluminada pela bela lua cheia invadisse o seu quarto e os seus pensamentos. Voltou no tempo, foi até à pequena Sucanga e fixou-se na imagem de Maria Antônia: uma menina linda, da pele de algodão, de cabeleira ruiva a coroar os grandes e esverdeados olhos. Ah, que saudades de Maria Antônia. Há quanto tempo não via aquele que foi – se não o primeiro -, certamente um dos mais importantes amores de sua infância. Iria encontrá-la, conforme combinaram na sequência do telefonema…
– Não acredito… Maria Antônia de Sucanga?
– Sim, eu mesma. Consegui o número do seu telefone com o pessoal da empresa…
– Você deu sorte, pois já estou aposentado e, normalmente, eles não fornecem este tipo de informação de seus ex-funcionários…
– Ah, mas eu tenho os meus encantos (risos)… Consegui convencer o funcionário.
Sim, ela sempre teve os seus encantos. Não apenas porque era muito bonita, mas, também, porque era simpática, amável. Além disso, tinha a voz aveludada e os lábios doces como o mel.
Sentado na cama, Bertoldo não percebeu o clarão da lua ser substituído pelos primeiros raios do sol. Passara a noite inteira, sentado na cama, embalado pelas boas lembranças de sua adolescência, marcada pela sublime presença de Maria Antônia. Combinara de encontrá-la no dia seguinte, em Manhuaçu, onde ela passou a residir depois que ficou viúva. Bertoldo, de sobressalto, percebeu que precisava tomar algumas providências para conseguir chegar a tempo ao encontro, marcado para a praça da matriz da cidade, às onze horas. Iria almoçar com aquela maravilha de mulher que respondia pelo nome de Maria Antônia…
– Coronel?
– Fala meu amigo Bertoldo…
– Preciso da ajuda do amigo… Preciso ir a Manhuaçu.
Assim, na companhia do amigo Coronel – que precisou fazer um arranjo na sua atribulada agenda -, Bertoldo foi ao encontro de Maria Antônia. No caminho, compartilhou lembranças e embalou sonhos. De vez em quando esfregava uma mão na outra, como se dissesse: “Está chegando a hora. Que saudade de Maria Antônia!”. O Coronel sorria daquela ansiedade toda, mas a entendia.
– Meu amigo, você parece um adolescente.
– Há muito tempo não sinto esse fogo que queima a alma… É diferente dos outros encontros… Reencontrarei uma linda garota, um antigo amor, um sonho adormecido…
– Bertoldo, antes que eu me esqueça, como você saberá que é ela?
– Ora, jamais me esqueceria daqueles olhos… Daquela pele… Daquele sorriso… Daquele corpo! Mas, de qualquer forma, ela me disse que estará de calça amarela e blusa azul. Estará sentada no banco da praça, ao lado direito da igreja.
– Assim fica mais fácil meu amigo, porque o tempo passa e a gente muda.
– Ela me disse que não mudou nada, que continua a mesma menina… Chega logo Manhuaçu!!!
E, assim, chegaram a Manhuaçu. Enquanto percorriam o caminho entre o trevo da BR e a praça central da cidade, Bertoldo não pôde deixar de relembrar as últimas palavras de seu amigo: “o tempo passa e a gente muda”. Achou melhor fazer uma combinação para que este, percebendo qualquer desconforto seu com uma eventual Maria Antônia diferente do que imaginava, pudesse arranjar uma desculpa, quem sabe um telefonema, para poder encerrar o diálogo se fosse preciso.
Chegaram à praça, precisamente, às onze horas. Já desceram do carro com a visão de Maria Antônia sentada no banco, conforme combinara. Caminharam para o seu encontro com Bertoldo balbuciando, entre dentes, ao amigo Coronel: “Pode inventar uma ligação, rapidamente”. Maria Antônia, após sessenta anos, claro, não era nem a sombra da doce e alva menina da qual se enamorou na adolescência. Com quatro vezes o peso de outrora, cabelos tingidos por alguma cabeleireira com problemas visuais, com dentes substituídos por dentaduras certamente moldadas em outra boca, com a pele queimada por anos de exposição ao sol sem proteção e com os olhos fechados por algum bisturi de quinta categoria, a única coisa que batia com a imagem que Bertoldo veio construindo de Maria Antônia desde que acertara o encontro eram a calça amarela e a blusa azul, mesmo não sendo o manequim do tamanho mignon que esperava.
Alguns minutos de conversa ali, na praça, e foram convidados a uma visita ao apartamento da senhora, próximo à Igreja. Em todo o percurso de ida, no uso do elevador, na sala de estar, a todo o momento, sempre que podia, Bertoldo dizia ao amigo: “Invente uma ligação, por favor. Tira-me dessa furada”. O Coronel, depois de muita insistência e de se divertir com a situação do amigo, informou em voz alta que havia uma ligação, urgente, do Jornalista Alberto. Bertoldo atendeu ao “telefonema” e disse que retornaria, imediatamente, a Caratinga. Despediu-se de Maria Antônia com um caloroso abraço, mas, certo de que jamais iriam repetir os bons afagos de antigamente.
Voltaram para casa. O Coronel, respeitando o, agora, calado amigo, também não disse nada, embora fosse difícil conter a vontade de gargalhar. Enquanto isso, cansado da noite passada em claro, Bertoldo pensava: “Fui vítima de um golpe. Um golpe do tempo”.
Um tempo que, às vezes, se torna implacável!
* Eugênio Maria Gomes é escritor, professor e pró-reitor de Administração da Unec. Grande Secretário de Educação e Cultura do GOB-MG. Membro das Academias de Letras de Caratinga e Teófilo Otoni, do MAC, do Lions Itaúna e da Loja Maçônica Obreiros de Caratinga.