Com a posse de Biden, como ficam as relações entre Brasil e Estados Unidos?

Carlo Barbieri é analista político e economista

O analista político e economista Carlo Barbieri faz análise dessa situação

DA REDAÇÃO – Na próxima quarta-feira (20), o democrata Joe Biden irá tomar posse como presidente dos Estados Unidos. Ele venceu o republicano Donald Trump, que sempre recebeu apoio declarado do presidente do Brasil Jair Bolsonaro. Esse apoio dado a Trump por parte de Bolsonaro poderá prejudicar as relações entre Brasil e Estados Unidos? Para saber sobre essa situação, o DIÁRIO falou com exclusividade com Carlo Barbieri.

Carlo Barbieri é analista político e economista

Carlo Barbieri é analista político e economista. Com mais de 30 anos de experiência nos Estados Unidos, é presidente do Grupo Oxford, a maior empresa de consultoria brasileira nos EUA. Consultor, jornalista, analista político, palestrante e educador. Ele é formado em Economia e Direito com mais de 60 cursos de especialização no Brasil e no exterior. Mais informações: oxfordusapontocom.

Barbieri, que inclusive em maio de ano passado participou de uma live realizada pelo DIÁRIO, traçou um panorama sobre o comércio entre os dois países, tratou sobre diplomacia e, claro, a China também esteve na pauta desta entrevista.

 

Como a vitória de Biden impacta as relações Brasil-Estados Unidos, e como fica o governo Bolsonaro, que sempre declarou abertamente apoio à Donald Trump?

A vitória do Biden impactará seguramente a relação entre o Brasil e os Estados Unidos para melhor ou para pior, dependendo do posto de vista que se analisa a questão. No que diz respeito ao ponto fundamental do acordo de livre comércio que estava sendo discutido e agilizado durante o governo Trump, nós sabemos que ele deverá sofrer uma revisão, se não no conteúdo, principalmente no que diz respeito ao prazo. Para os Estados Unidos interessa profundamente este acordo porque dentro de um acordo de livre comércio os países abrem mão de seu fator tarifário na entrada de produtos estrangeiros e o Brasil hoje leva uma vantagem grande com relação aos Estados Unidos porque é menos taxado quando seus produtos vão para os Estados Unidos do que quando os Estados Unidos mandam para o Brasil. Esse acordo facilitaria a entrada de produtos americanos no Brasil e abriria a porta para o Brasil colocar uma série de produtos que hoje são contingenciados, no caso do açúcar, aço e assim sucessivamente. Enfim, é um acordo que vai ser renegociado e esperamos que essa renegociação venha de alguma forma acontecer no menor tempo de espaço possível e para facilitar as nossas exportações para o mercado americano.

 

O Brasil exporta ferro e aço, petróleo, celulose e café para os Estados Unidos. Esses produtos podem ter uma taxação maior agora?

O comércio entre o Brasil e os Estados Unidos não é composto de produtos basicamente semimanufaturados e elaborados. Em 2002 quando entrou um processo de desindustrialização do Brasil e os Estados Unidos foram colocados fora da pauta de exportação brasileira e comércio exterior em geral, os Estados Unidos representavam algo em torno de 26% do nosso comércio mundial. Com o sucesso do processo de tirada dos Estados Unidos como mercado preferencial do Brasil, no ano passado nós tivemos um pouco menos de 11% desse comércio feito entre os dois países. Em 2002 nós tínhamos cerca de 73% do comércio entre os dois países justamente feito de produtos acabados e semimanufaturados. Gradualmente com a determinação do governo brasileiro de priorizar mercados como Cuba, Venezuela, Moçambique, Angola e etc., o Brasil tirou a importância dos Estados Unidos e passou a exportar na verdade serviços para esses países que até, infelizmente, não foram pagos. Hoje o Brasil ainda exporta ferro, exporta aço, exporta petróleo, celulose como foi bem colocado na pergunta, porém há produtos que o brasileiro pode mandar para lá e que não estão sendo bem aproveitados. Tenho a impressão de que na medida que avance o acordo de livre comércio, outros produtos, principalmente, da área de alta tecnologia e produção industrial brasileira farão parte dessa nova pauta exportadora brasileira, que seguramente será melhor para o país.

 

Quais os desafios que a diplomacia brasileira terá já neste início de 2021 se quiser manter posição de destaque dos produtos brasileiros no comércio exterior com os EUA?

O comércio entre o Brasil e os Estados Unidos, assim com os outros pontos em geral sofrerão uma mudança necessária a partir da posse do Biden. A diplomacia brasileira terá que ser extremamente habilidosa no sentido de tentar apagar ou pelo menos deixar um véu sobre aquilo que foi falado e acordado até o dia 20 de janeiro e aquilo que será a partir da posse do Biden. Os Estados Unidos têm interesse no Brasil como nós dissemos anteriormente e os Estados Unidos terão interesse em recompor uma relação com o país que é um líder, de alguma maneira, economicamente falando da América Latina. Se a diplomacia brasileira mantiver a sua habilidade e a sua qualidade que demonstrou desde a fundação do instituto que norteia o Itamaraty, no caso o Instituto Rio Branco, será capaz de rever essa posição. Vai depender da habilidade do Itamaraty e vai depender logicamente do governo determinar-se a entender que mudou o quadro e que precisa mudar as suas atitudes. Agora a partir daí evidentemente os produtos brasileiros poderão passar a representar um ponto importante na pauta de importação dos Estados Unidos, que hoje tem uma importação na ordem 3,2 trilhões de dólares e o Brasil praticamente representa traço, não por falta de interesse dos Estados Unidos em comprar, mas por falta de capacidade do Brasil de colocar seus produtos lá em valores competitivos, isso em função do próprio custo Brasil e a competência comercial tanto do setor privado quanto do governo. Caberá ao Itamaraty ajudar, mas caberá principalmente ao setor privado brasileiro se empenhar nesse aumento necessário de produtos principalmente os industrializados para os Estados Unidos.

 

Joe Biden tem defendido algumas causas e chegou a dizer que se o Brasil não atuar pela preservação ambiental, vai enfrentar “consequências econômicas significativas”. Essa foi uma afirmação ou algo que saiu de sua boca no calor da campanha eleitoral?

Sempre temos que diferenciar as propostas de campanha e as propostas de governo. Evidentemente o governo Joe Biden para ajudar na equalização de seu quadro interno, lembremos que Joe Biden foi eleito por uma coalisão do Partido Democrata, que tem mais de 40 agrupamentos bem definidos, que vão de extrema esquerda até empreendedores conservadores, ele vai precisar usar na área externa até uma acertação pirotécnica no que diz respeito a preservação ambiental de maneira a poder desviar um pouco a atenção das dificuldades que ele vai enfrentar dentro de seu próprio quadro interno de poder. A questão ambiental tem um outro significado que é realmente dificultar a exportação do Brasil de seus itens fundamentais na área de commodities como a soja, o milho e o próprio minério de ferro para não competir com os grandes poderes econômicos do mundo, particularmente a França que tem insistentemente busca uma forma de tentar limitar a exportação brasileira de soja em particular. Os Estados Unidos têm, logicamente, o interesse de colocar a sua produção de soja, milho e outros produtos em outros mercados e em particular a China. Então nós veremos esse tema colocado nas manchetes dos jornais, mas o acordo definitivo vai depender do interesse da capacidade do Brasil negociar o resto da pauta, pois sabemos que esse tema é pirotécnico, o mundo inteiro sabe que a preservação da Amazônia tem sido um ponto essencial e de responsabilidade do vice-presidente do Brasil, mas ele nunca será abandonado como forma de pressão política para evitar a exportação desses produtos para o resto do mundo. E nisso nós vamos ter a liderança do Joe Biden e do presidente da França.

 

O Brasil se viu envolvido diversas vezes nos embates políticos entre o Trump e a China. Como fica essa questão agora com o governo Biden?

A questão dos Estados Unidos com a China deverá diminuir em termos de tensão pública, mas não poderá mudar em termos da realidade econômica americana. A China tem um projeto de poder em nível mundial; a China esperar chegar em 2025 dominando a logística do mundo inteiro e partir daí ter o controle internacional, sendo dominado por empresas chinesas. E o governo Biden, por mais que ele tenha recebido apoio, inclusive financeiro da China na sua campanha, ele vai ter que de alguma maneira refrear as promessas feitas à China de uma repactuação harmônica. Seguramente o governo de Biden vai ter que encontrar uma forma inteligente de ceder à China sem que isso venha a prejudicar nem ao emprego americano e nem a indústria estabelecida nos Estados Unidos.

A China não tem o viés político ideológico como a prioridade na sua forma de relações comerciais. A China tem interesses puramente comerciais. Vejamos e lembramos que o primeiro país da América Latina que reconheceu a China Popular após ela ter sido eleita para a ONU (Organizações das Nações Unidas) foi o Chile, à época comandado pelo general Pinochet, e a China a partir daí desenvolveu intenso comércio como Chile, até de uma maneira harmônica, independentemente de terem colocações ideológicas completamente diferentes.

Então não vai mudar nada agora, o embate vai continuar. Provavelmente o Brasil será chamado a participar de um projeto que o Biden tem intenção de fazer, que é uma unidade mundial para de alguma maneira diminuir a influência chinesa, diminuir o seu crescimento através de acordos diplomáticos. É provável que o Brasil seja chamado para isso também. Os Estados Unidos não pretenderão mais, como fez na época Trump, de aceitar o desafio da China isoladamente usando apenas seu poder econômico. Nós queremos crer por todas as declarações e pela própria equipe do Biden que tentará fazer uma frente mundial que venha de alguma maneira limitar o crescimento chinês e o Brasil certamente deverá fazer parte.

 

Em sua avaliação, o Brasil nesse governo Bolsonaro cedeu muito sem receber o mesmo em troca com os Estados Unidos? Há uma relação desigual? Por exemplo, a questão do visto para brasileiros.

Em termos de quem cedeu mais no governo Trump e no governo Bolsonaro, o pior exemplo seria justamente o dos vistos. Aí seria uma questão de interesse, o Brasil tinha e precisa receber turistas do mundo inteiro e os americanos, não só tem possibilidade de contribuir muito com o Brasil na área de turismo como também na área empresarial. Então o fato do Brasil abrir o visto aos americanos representou de alguma forma o interesse exclusivo brasileiro enquanto os Estados Unidos dentro da sua política que estabelece percentuais para que os países tenham direito ir através de seus cidadãos para os Estados Unidos sem o visto, o Brasil não cumpre seu ‘dever de casa’ como imigrantes, porque nós temos uma quantidade muito significativa que entraram legalmente nos Estados Unidos com o visto de estudantes, visto de turista e não retornaram ao Brasil na época adequada. Então é isso que norteia uma política americana. No resto acho que realmente o Brasil cedeu mais e cedeu mal porque nós vimos essa negociação da entrada do etanol no Brasil. O Brasil foi inábil, o setor empresarial brasileiro foi incompetente porque nós cedemos para a entrada do etanol, que nos Estados Unidos é feito de milho. O setor do milho americano estava extremamente bem atendido pelo governo Trump na exportação de seu produto para China, então não havia excesso de estoque de milho para fazer etanol nos Estados Unidos e o Brasil que tem uma capacidade de produção alternativa entre o milho e o álcool, poderia e deveria ter utilizado essa oportunidade para aumentar a suas cotas de exportação de açúcar. O que mostra que nem o governo estava preparado para isso e nem o setor privado se agilizou no sentido de buscar esse aumento das cotas do açúcar sem impostos para colocar o seu produto nos Estados Unidos, tendo em vista que era outro setor que não queria a mesma força para refrear a exportação brasileira de açúcar porque o Brasil contaria não com os aliados fundamentais na Flórida, que o grande produtor, mas no resto dos Estados Unidos a indústria consumidora do açúcar, mas nada foi feito, isso mostra que ainda nosso setor privado não entende como se maneja o lobby dentro dos Estados Unidos.

 

No último dia 6 o mundo assistiu perplexo a invasão ao Capitólio. Como esses apoiadores de Donald Trump podem prejudicar a gestão Biden?

Foi um verdadeiro atentado à democracia no mundo o aconteceu no Capitólio. Nós tivemos uma soma de interesses para que essa situação acontecesse. Por um lado tinha uma turba de apoiadores do Trump que se sentiam violentados pela fraude eleitoral e estavam dispostos a cometer loucuras. Tivemos uma polícia incompetente e até, digamos assim, cooperadora para que essa invasão acontecesse. E nós tínhamos grupos radicais de esquerda, inclusive da Antifa, que fizeram parte da turba que invadiu o Capitólio. Mas o que importa dizer é que acabou prejudicando a imagem do próprio Trump de uma maneira significativa, mas não vão perturbar para a ideia do Biden a não ser que o Partido Democrata siga com a intenção de promover o impeachment de Trump e vai continuar porque vai tumultuar os primeiros dias Biden impedindo que ele coloque uma pauta própria de interesse de discussão no Senado.

 

O senhor atua nos EUA há mais de 30 anos. Qual a imagem, se é que há, que o americano tem hoje do Governo Bolsonaro?

Aqui nos Estados Unidos tem-se uma imagem muito fraca. Em primeiro lugar o Brasil deixou de ter algum significado para os Estados Unidos desde o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. O americano em geral passou a desconhecer o Brasil e os investidores passaram a temer o Brasil. Infelizmente esse governo não conseguiu recuperar uma imagem que dê confiança por parte do governo americano em investimento no Brasil principalmente nas áreas de geração de emprego. Nós temos alguns investimentos como na bolsa de valores, que é um investimento especulativo, o dinheiro sai e entra. Há possibilidade de lucro ou não. A imagem é que é um país desorganizado. Nós temos 12 presidentes da república, um eleito e mais 11 ocupando a toga no Supremo Tribunal Federal (STF). Nós temos um parlamento completamente despido de interesse público e vê apenas seus interesses e busca aumentá-los ao invés de diminuí-los. Vemos de longe que as reformas essenciais são politicamente tratadas e não são levadas com o espírito público. Enfim, a imagem que eu o Brasil tem aqui que é um pais em decadência, desarmônico, sem um poder que exerça a sua função, com os políticos sem espírito público, com a justiça controversa, que fez com que aquele velho dito sobre o Brasil ganhasse corpo e até o passado é incerto. Infelizmente, eu como brasileiro vejo um Brasil pobre de imagem aqui nos Estados Unidos, que foi construída com muito empenho pelo segundo mandato do Lula e nos mandatos da presidente Dilma no sentido de afastar realmente os Estados Unidos do Brasil. Vejo que a incompetência do atual governo, seja na gestão interna, seja na ação externa, que não fez com que essa imagem melhorasse.