* José Geraldo Batista
No enredo de “Jangada de Pedra”, romance do escritor português José Saramago, não se observa a presença de caráter iníquo em nenhum personagem. Alguns deslizes, que porventura, alguém possa ter cometido, são coisas plausíveis e aceitáveis ao ser humano, o que importa são as intenções. Alguma análise crítica atenta poderia indagar sobre o episódio do adultério de Joana Carda e Maria Guavaira, porém a justificativa seria fácil de ser encontrada: as mulheres em questão se solidarizaram com o solitário Pedro Orce.
Durante a viagem da jangada, através do oceano, e o deslocamento dos indivíduos pela jangada, nota-se o interesse dos personagens em conhecerem uns aos outros e desvendar os mistérios da vida que, por sinal, é uma viagem. Diante de tão bom carácter, tanta solidariedade e disponibilidade para com seus semelhantes, dá até para desconfiar. O autor parece que tinha uma intenção ao usar esse recurso, e é isso que devemos procurar descobrir ao fazermos nossa leitura. Será que o objetivo era mostrar uma superioridade de raça ou mostrar que o povo da Península Ibérica evoluiu?
Ao se referir aos viajantes da jangada, não se pode deixar de fora o narrador, que expõe também a sua visão de vida, e o leitor que será invocado. Este último, de acordo com Wolfgang Iser, em sua famosa obra O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, pode ser de vários níveis, tudo depende do efeito estético e da recepção do texto em cada um.
O narrador de “Jangada de Pedra,” através das exposições dos acontecimentos, introduz a sua maneira de ver o mundo, e isso fica claro no seguinte trecho: “(…) Porém, foi um outro jornalista, aliás galego e de passagem, como a galegos acontece tantas vezes, quem lançou a pergunta que ainda faltava fazer, Para onde vai esta água Era então o tempo em que discutiam, com ciência brusca e seca, os geólogos de ambas as partes, e a pergunta, como de criança tímida, apenas foi ouvida por quem agora a regista. Sendo a voz galega, portanto discreta e medida, abafaram-na o rapto e o rompante castelhano, mas depois outros vieram repetir o dito arrogando-se vaidades de primeiro descobridor, aos povos pequenos ninguém dá ouvidos, não é mania de perseguição, mas histórica evidência (…) (Jangada de Pedra).
O meu caro leitor ou leitora não se assuste, a pontuação e o uso diferenciado de maiúsculas não são equívocos meus, tratam-se de uma peculiaridade do escritor lusitano. A fala “aos povos pequenos ninguém dá ouvidos” é do narrador, e com tal uso, ele evidencia todo um repertório histórico de iniquidades, revelando sua posição em relação a este ponto. É constrangedor ter de concordar com o dito do narrador, mas é verídico o fato de os povos pequenos não terem o devido respeito. Há de se ressaltar, aqui, que essa subordinação passa primeiramente pelo campo econômico para, a seguir, atingir o lado cultural. É imperioso destacar ainda que nem tudo na Europa é centro, haja vista a posição subalterna de Portugal e Espanha evidenciada na narrativa de “Jangada de Pedra”.
Se levar em conta o relevo e as posições dos continentes no Globo Terrestre, chega-se à conclusão que só a Europa é centro, contudo, as periferias, aqui, referem-se ao plano de desenvolvimento econômico. Como exemplo temos Canadá e Estados Unidos, que embora estejam acima da Linha do Equador, se situam equidistantes da Europa; no entanto, não estão na periferia do mundo hodierno, pois são nações desenvolvidas economicamente; por conseguinte, fazem parte do centro cultural da atualidade. Contudo, se o Planeta tem forma quase que arredondada, como localizar o centro? Só por convenção. Portanto, nem a Europa o é. A teoria mais admissível nesse caso de definição das fronteiras, se é que elas devam existir, seria aquela que considera a Linha do Equador como ponto de referência.
Fato é que o escritor português e Nobel de literatura estava sempre preocupado em questionar a ordem mundial das coisas. E quem ainda não se deliciou com a narrativa Jangada de pedra deve fazê-lo com urgência: não sabe o que está perdendo.
Há de se abrir, aqui, um parêntese e indagar: se a Península Ibérica, como narrado no romance de Saramago, é a periferia da Europa, não é de se estranhar que a América Latina seja a periferia do mundo Pós-Moderno, já que os países latinos eram colônias de Espanha e Portugal. Para que este argumento tome robustez e plausibilidade, no que se refere à importância econômica para o reconhecimento cultural de um país, faz-se necessário recorrer ao seguinte excerto de Silviano Santiago, em Uma literatura nos trópicos:“(…) Qual seria pois o papel do intelectual hoje em face das relações entre duas nações que participam de uma mesma cultura, a ocidental, mas na situação em que uma mantém o poder econômico sobre a outra? (…).”
Depois de tudo isso que se tem abordado até aqui, será que seria admissível dizer, ou melhor, será que não seria atrevimento indagar se em “Jangada de Pedra,” o fato de a Península viajar e parar num local onde serve de elo entre América Latina e Europa não seria uma manifestação de uma forma de o povo da Península ibérica se redimir perante os latino-americanos?
A resposta eu espero que o leitor e a leitora deem ao terminarem a leitura do romance.
*José Geraldo Batista
Professor Titular do Centro Universitário de Caratinga – UNEC, membro da ACL – Academia Caratinguense de Letras e colaborador no NUDOC – Núcleo de Documentações e Estudos Históricos. E-mail: [email protected] Mais informações sobre o autor: http://lattes.cnpq.br/4880280760796122