Amor não tem idade: o fenômeno do namoro e do casamento depois dos 60 anos

O RECOMEÇO - Par grisalho: relações em que cabe maior independência e um puxa o outro para uma vida mais ativa e rica (FG Trade/Getty Images)

A tendência está ligada à longevidade no país

O roteiro de vida que uma abrangente fatia da população mundial seguia até poucas décadas atrás incluía namoro longo, subida ao altar e abundância de filhos. Depois, vinham os netos e toda uma agenda voltada para o exercício da chamada terceira idade. Pois em pouco tempo o mundo deu tantas voltas que o figurino do passado não serve mais aos que cruzam hoje a barreira dos 60, 70 anos — nem mesmo a expressão “terceira idade” lhes cai bem. A chacoalhada na noção de velhice, que continua a se reinventar, acompanha os ventos da demografia: a longevidade avança a passos largos em nações europeias, asiáticas e também no Brasil, o que dá aos indivíduos a chance de uma existência com maior variedade de experiências e enlaces afetivos. E, assim, o tradicional roteiro vem ganhando capítulos antes impensáveis a cabeças já prateadas, que agora se sentem mais livres para romper matrimônios duradouros, lançar-se nas incertezas da solteirice e buscar o amor sem se importar com a idade.

O mais recente levantamento que examinou o assunto entre brasileiros revela uma acelerada curva de crescimento nas uniões estáveis seladas entre sessentões ou mais: desde 2018, a formalização desses relacionamentos subiu 23%, de acordo com o IBGE (veja no gráfico) — um número extraordinário do ponto de vista das transformações sociais. Esse contingente vem disseminando uma ideia repaginada do envelhecimento, etapa em que amarras da juventude se foram e sobra espaço para mais leveza. “No lugar de uma fase de reclusão e inatividade, a velhice está sendo percebida neste século XXI como um novo capítulo repleto de oportunidades”, afirma o demógrafo José Eustáquio Alves. E, como ocorre com outras viradas no campo do comportamento humano, pares de celebridades vêm atraindo os flashes para o fenômeno. A atriz Pamela Anderson, 58 anos, recentemente teceu rasgados elogios ao namorado Liam Neeson, de 73, com quem engatou romance no set de filmagens. “Ele é tão generoso, bom caráter e prestativo que é impossível não se apaixonar”, declarou-se. Já a sempre discreta Meryl Streep, 76 anos e separada depois de quase quarenta anos de casamento, preferiu não se pronunciar sobre o muito comentado namoro com o ator Martin Short, 75.

Relatos de homens e mulheres ouvidos por VEJA mostram o quanto este estágio da vida pode ser favorável a relações fincadas em elos saudáveis e verdadeiros, sem o mesmo peso que costuma recair sobre os ombros das jovens gerações. Para a turma grisalha, com filhos já crescidos, em geral há maior estabilidade financeira e menor carga de trabalho. A idade também contribui para reduzir as inseguranças e limitar os conflitos ao que é essencial. Outra vantagem frequentemente citada por esse grupo que decide se arriscar de novo é se basear na própria biografia para não repetir os equívocos do passado. “Hoje, tento corrigir os erros que cometi no primeiro casamento e me dedico ao relacionamento, tentando não criar desgastes desnecessários”, diz o comerciante aposentado Sérgio Duque, 71 anos, que foi casado durante mais de quatro décadas, ficou viúvo e desde 2021 namora a artesã Nilda Maria de Carvalho, de 62, também viúva.

Vários enamorados grisalhos firmam laços que contêm mais independência, sem aquele grude da juventude, não raro vivendo cada qual na sua casa. De tão expressiva, a tendência foi batizada nos Estados Unidos, onde anda em alta, de living apart but together (“morando separados, mas juntos”) — um arranjo que, sobretudo nesta etapa, eleva as chances de sucesso da união. Uma pesquisa da University College London, que observou por mais de dez anos uma amostra de homens e mulheres entre 60 e 85 anos, constatou que, em tetos separados, a autonomia é naturalmente maior, o que conspira a favor do equilíbrio emocional dos casais. “É cada vez mais comum encontrar idosos em relacionamentos sérios morando sozinhos, justamente para conservar a liberdade”, afirma a psicóloga Fátima Mangueira, do Núcleo de Envelhecimento Humano da Uerj. “Isso também os estimula a estar em movimento e não cair na tentação de se instalar no sofá e viver na inércia”, completa.

Os benefícios da união estável na velhice vêm sendo vastamente mapeados à medida que a ciência da longevidade se desenvolve. A troca constante de ideias em um ambiente no qual um vai puxando o outro está diretamente associada à diminuição de riscos de males da mente, como a demência, e da incidência de solidão, que já tomou contornos de uma pandemia moderna, atingindo os idosos (outro verbete em baixa) em maior grau, segundo a Organização Mundial da Saúde. Os especialistas sabiamente ressaltam que não vale qualquer relacionamento para obter tais ganhos, mas apenas aqueles fundados sobre pilares como admiração, respeito e sentimento legítimo. Um levantamento da Universidade da Califórnia revelou que esse tipo de satisfação conjugal entre pessoas mais velhas tende a se desdobrar em um check-up de dar inveja: os níveis de colesterol baixam, o hormônio do estresse aquieta, e os sistemas cardiovascular e imunológico costumam ficar mais protegidos. “Sempre fui agitada e bastante intransigente. Depois do segundo casamento, desacelerei e consegui uma relação mais plena”, afirma a dona de casa Janayna Sofia, 66 anos, casada com a cantora Patrícia de Araújo, 53.

Os estudiosos do amor maduro enfatizam que, na maioria das vezes, ele se manifesta sobre um terreno mais realista, sem aquelas expectativas elevadíssimas e praticamente impossíveis de alcançar. “Quando a pessoa recasa depois dos 60, não há idealização nem a ideia de que o parceiro vai completá-­la em tudo”, explica a antropóloga Mirian Goldenberg. Quase 100% do pelotão grisalho que vai à luta já trocou alianças antes, tendo tomado a dura decisão de se separar mais tarde na vida — segundo o IBGE, o divórcio após os 50 expandiu 28% em duas décadas e, pela primeira vez, ultrapassou as separações entre casais no princípio da jornada, na casa dos 22%. Essa turma cheia de vigor para recomeçar já não tem a vergonha de antes. Uma boa parcela, inclusive, se lança de peito aberto no mundo dos aplicativos de relacionamento, alguns feitos só para eles, para achar um par ou às vezes só mesmo para se aventurar pelo universo da paquera (leia abaixo). A reinvenção do casamento em idade mais avançada é quase em tudo diferente do primeiro “sim”, à exceção do que já filosofava lá atrás o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). “Ao iniciar um casamento, o homem deve se colocar a seguinte pergunta: você acredita que gostará de conversar com esta mulher até a velhice? Tudo o mais é transitório”, acreditava ele, indo à essência do que vale até os dias de hoje, para qualquer idade.

O flerte on-line está mais seguro

Tão comum entre jovens, o mundo da paquera virtual vem de forma gradativa, mas constante, rompendo a resistência de quem já registra fios grisalhos. O freio para se lançar neste universo que mudou o padrão com que as pessoas se relacionam em tempos modernos não era só a tecnologia, mas também a linguagem repleta de códigos muito próprios, um dicionário todo particular em que distribuir matches e likes é só o começo. Mas há sinais contundentes de que o público mais velho aderiu de vez às plataformas de relacionamento — e um deles é a existência de apps voltados para essa turma. O brasileiro Coroa Metade, onde só entra quem já passou dos 50, contabiliza quase 100 000 inscritos e se expande a cada dia. “Percebi uma demanda crescente entre amigos que, como eu, haviam se divorciado e tinham dificuldade em encontrar uma nova parceira”, diz Airton Gontow, que criou o site em 2012. Como em outras plataformas do gênero — para esta faixa há ainda o Namoro Terceira Idade e o Solteiros50 —, ali o usuário elenca as características que considera indispensáveis para firmar um elo. Um levantamento das qualidades que encabeçam a lista indica que “ser honesto”, “sincero” e “respeitoso com o outro” são de longe as mais citadas. “Mulheres e homens reclamavam que nos aplicativos comuns ninguém queria compromisso sério, só sexo”, conta Gontow.

A marcha das gerações mais velhas rumo ao flerte on-line, que não raro se desdobra em compromisso sério e amor verdadeiro, vem fomentando o nicho dos aplicativos pensados para elas. O australiano Stitch, que reúne cerca de 300 000 membros, promove até atividades e eventos presenciais para facilitar os encontros, justamente mirando uma turma que gosta de um tête-à-tête. Já o americano OurTime, dos mesmos fundadores do Match.com e do Hinge, ultrapassou a marca de 1 milhão de cadastrados oferecendo atrativos como videochamadas para dar densidade à conversa. Há muitos relatos de pessoas sobre matches desastrosos, mas uma fatia acaba encontrando perfis interessantes e, às vezes, o laço se fortalece. Casados há dois anos, os aposentados Armando Alves Filho, 71, e Ana Maria Alves, 68, se conheceram em um desses aplicativos e flertaram por seis meses, até furar a bolha da internet e estabelecer o bate-papo na vida real. Depois, não se desgrudaram mais. “Achei minha cara-metade”, diz Ana Maria, viúva há uma década, que entrou no app por sugestão de uma amiga, após amargar um período de sofrida solidão. Ela e tantos outros romperam várias barreiras antes de se lançar à paquera virtual e todos eles têm, no mínimo, uma boa história para contar.

Fonte: Veja

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