Por Rogério José da Silva, bisneto de escravizado, homem preto, pai e avô de mulheres pretas. Radialista, cronista esportivo, comentarista de TV, palestrante de letramento, graduando em História (UNEC).
SAWABONA! “Eu te vejo. Você é importante para mim, eu te respeito, eu reconheço sua existência.”
Por que Consciência Negra?
Chegamos ao nosso terceiro artigo da série. Depois de discorrermos sobre as leis que estruturam o racismo no Brasil, elencar cada uma delas e seus efeitos, e principalmente depois de fazermos uma abordagem didática sobre a Lei de Cotas no artigo anterior, hoje, 20 de novembro, data escolhida como dia simbólico para celebrar a Consciência Negra. Muitos ainda questionam: por que mês, semana e dia da Consciência Negra?
Porque o Brasil é um país que nunca encarou de frente o próprio racismo — prefere varrer para debaixo do tapete e fingir que está tudo resolvido.
Temos um Dia da Consciência Negra porque, depois de três séculos de escravidão, a população negra foi jogada na liberdade sem terra, sem escola, sem trabalho, sem direitos e sem sequer ser reconhecida como gente.
E até hoje pagamos essa conta.
Temos um Dia da Consciência Negra porque:
- jovens negros são mortos como se suas vidas valessem menos;
- mulheres negras recebem os menores salários do país;
- negros quase não aparecem nos espaços de decisão;
- mesmo sendo a maioria da população, estamos em menor número nas faculdades, maior número nas penitenciárias ou vivendo abaixo da linha da pobreza;
- ainda tem brasileiro que acha normal fazer “piada” racista;
- muitos acreditam que “não existe racismo”, mas nunca precisaram provar sua humanidade para ninguém.
O Dia da Consciência Negra existe porque o racismo no Brasil não é exceção, não é “caso isolado”, não é mimimi — é estrutura, é cotidiano, é violência histórica que ainda molda quem vive e quem morre. Existe também para lembrar que a história negra não começou na escravidão: é cultura, ciência, luta, dignidade e resistência.
Sem o povo negro, o Brasil simplesmente não existiria. Enquanto houver quem negue isso, quem minimize isso, ou quem tente silenciar essa discussão, o Dia da Consciência Negra será urgente — e indispensável.
Zumbi dos Palmares
Quando falamos ou escrevemos sobre Zumbi, é muito importante separar o homem do mito criado em torno dele, dar os devidos descontos tanto para o bem quanto para o mal. É imprescindível contextualizar que estamos nos referindo a um homem do século XVI. Zumbi foi líder do Quilombo dos Palmares, a maior comunidade livre da história das Américas, onde milhares de negros — fugidos, libertos ou nascidos ali — construíram uma sociedade organizada, autônoma, com estrutura política, militar e econômica.
Palmares resistiu por quase 100 anos, enfrentando expedições militares, ataques oficiais e a política de destruição do Estado colonial. Zumbi representa:
- resistência ativa, não submissão;
- a luta por liberdade num tempo em que liberdade para negros era proibida;
- o direito de existir, viver e construir comunidade;
- a recusa em aceitar um sistema que lucrava com corpos negros.
Isto posto, a escolha da data de hoje para celebrar o Dia da Consciência Negra, dia da morte de Zumbi, não invalida outros heróis da resistência e da luta por liberdade. Entretanto, a escolha faz sentido por ele ter sido o primeiro. Depois de sua morte, foram necessários ainda mais 193 anos de luta até a abolição.
Na tentativa de desconstruir a figura de Zumbi, consequentemente desqualificar também a data e tudo que ela propõe, nos últimos anos tem surgido uma corrente alinhada a uma ideologia que atende a alguns interesses políticos, que prega que o líder “não era abolicionista e que mantinha escravos em Palmares”. Porém, os únicos relatos existentes sobre Zumbi foram escritos por cronistas coloniais brancos, ligados às tropas portuguesas e holandesas que tentavam destruir Palmares. São fontes parciais, produzidas para justificar a repressão ao quilombo. Especialistas lembram que a ideia de “escravidão interna” em Palmares é uma leitura anacrônica. Não há evidência de que Zumbi tenha instituído ou defendido qualquer forma de escravidão. Para pesquisadores, a difusão dessas versões coincide com o fortalecimento do Dia da Consciência Negra e funciona como tentativa de desqualificar a principal liderança negra da resistência à escravidão no Brasil.
Mais importante que a princesa
A história oficial costuma reduzir a abolição da escravidão à assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888. Mas pesquisadores são unânimes: a abolição foi resultado de séculos de resistência negra, organizada em quilombos, revoltas urbanas, articulações políticas e estratégias jurídicas. Na minha humilde opinião, alguns nomes muito mais importantes que a princesa Isabel na luta abolicionista:
Luiza Mahin
No século XIX, Luiza Mahin articulou levantes como a Revolta dos Malês (1835), em Salvador. Sua atuação como mensageira e organizadora revela a influência feminina e intelectual na luta por autonomia negra em plena sociedade escravocrata. Uma mulher muito à frente do seu tempo.
Esperança Garcia
Em 1770, escreveu uma carta ao governador do Piauí denunciando torturas e reivindicando direitos. Considerada por juristas como a primeira mulher advogada do país, sua voz antecipa a luta por justiça em plena escravidão colonial.
Luiz Gama
Advogado autodidata, jornalista e abolicionista, Gama libertou mais de 500 pessoas escravizadas por via judicial. Sua atuação combativa tornou-se referência do abolicionismo jurídico e da imprensa negra no século XIX. Luiz Gama foi tudo o que o Brasil escravista mais temia: um homem negro inteligente o suficiente para desmontar o sistema pela lei. Vendido pelo próprio pai, proibido de estudar, Gama aprendeu a ler sozinho e virou advogado autodidata. Fez o que nenhum “abolicionista de salão” teve coragem: enfrentou juízes, coronéis e políticos na marra — e libertou mais de 500 pessoas.
Enquanto a elite pregava “abolição gradual”, ele exigia liberdade já.
Enquanto o Império fingia moralidade, ele expunha a hipocrisia.
Enquanto o país esperava uma princesa assinar uma lei, Gama já estava fazendo abolição na prática.
A verdade incomoda, mas é simples:
Sem Luiz Gama, não haveria 13 de maio.
Ele foi o abolicionista que o Brasil tentou esconder — e não conseguiu.
Machado de Assis
Machado fundou a Academia Brasileira de Letras — e, ironicamente, foi cercado por homens brancos que só não o excluíram porque seria impossível ignorar o tamanho da sua inteligência.
Mas isso não impediu que, ao longo do tempo, o país tentasse se apropriar dele da pior forma: celebrando sua obra enquanto escondia seu rosto real.
André Rebouças e José do Patrocínio
Engenheiro e jornalista, respectivamente, foram protagonistas do movimento abolicionista urbano, atuando em campanhas públicas, associações e jornais que pressionaram o Império nos anos finais da escravidão.
Coisa de Preto que muitos brancos adoram
O Brasil é mestre em uma contradição nojenta: adora tudo que é coisa de preto, mas continua tratando o povo negro como problema. O país se lambuza da cultura negra enquanto finge que ela caiu do céu, como se nada tivesse sido roubado, silenciado ou apagado. Porque a verdade é simples:
Os mesmos que torcem o nariz para debates sobre racismo são os que mais consomem aquilo que o povo negro criou na marra, na dor e na resistência.
São eles que aplaudem:
O samba, que nasceu na marginalidade e hoje é patrimônio.
O funk, que eles demonizam de dia e dançam escondido de noite.
A feijoada, que veio das sobras da senzala e virou orgulho nacional.
A capoeira, antes crime, agora atração turística.
As gírias, que eles repetem sem saber de onde vieram.
As tranças e turbantes, que eles copiam enquanto ridicularizam nos corpos pretos.
O futebol, que só se tornou espetáculo graças ao talento negro que eles, historicamente, impediam de entrar em campo.
É sempre assim:
Adoram a cultura, rejeitam o povo; consomem a estética, ignoram a luta; batem palma para o produto, mas se calam diante da violência que recai sobre quem produziu. E, no fim, muitos ainda têm a audácia de dizer que “não existe racismo no Brasil”.
Existe sim — e ele se mostra justamente na hipocrisia de quem idolatra tudo que é negro, menos o negro.
Podcast especial
A semana que marca a data emblemática da Consciência Negra foi ainda mais especial pra mim. Recebi no podcast Abrindo o Jogo o amigo advogado Clausiano Peixoto “Teinha”, a jornalista Nohemy Peixoto e, pela primeira vez, tive o privilégio de dividir a bancada com minha filha, a designer e social mídia, Anna Rita Soares Silva. Compartilhar experiência com pretos de destaque em suas áreas de atuação, ouvir e aprender com as histórias de cada um deles foi uma oportunidade ímpar. Tudo ficou ainda mais especial pra mim com a participação da minha filha. Aliás, quem despertou meu ativismo e me ensinou muito sobre racismo. O podcast está disponível no canal do YouTube do Diário de Caratinga.
No próximo artigo, último da série, iremos refletir sobre os desafios da luta antirracista nos dias atuais e para as gerações futuras. Até lá! SAWABONA!
Rogério Silva
abrindoojogocaratinga@gmail.com
@rogeriosilva89,1fm
















