
Doutora :Sociologia Política (IUPERJ/Universidade Candido Mendes-RJ)
Membro do Instituto Nacional dos Advogados do Brasil/RJ (IAB)
A corrida da Amazônia para receber a COP 30 expõe desigualdades, conflitos territoriais e a disputa global pelo futuro da floresta, quando Belém do Pará foi anunciada como sede da COP 30, o mundo voltou seus olhos para a Amazônia como nunca antes. A promessa era grandiosa: transformar a capital paraense no epicentro das decisões climáticas mais importantes do planeta. Mas, enquanto autoridades comemoravam, a cidade mergulhava em uma corrida contra o tempo — e contra seus próprios fantasmas.
A reportagem especial que você lê a seguir analisou notícias on-line e impressas para desvendar a engrenagem que se moveu nos bastidores da preparação para o maior evento ambiental do mundo. O resultado revela uma Belém dividida entre expectativas internacionais e desigualdades históricas.
- Obras incompletas e bairros esquecidos: o que a COP não mostrou
- A corrida por moradia e a explosão do custo de vida na capital
- Floresta em disputa: quem ganha e quem perde com o neoextrativismo
- A voz dos povos tradicionais nas negociações climáticas
Belém, com suas ruas estreitas, canais poluídos e bairros que se transformam em lagoas na época das chuvas, viu-se diante de uma tarefa urgente: modernizar-se a tempo de receber chefes de Estado, especialistas, negociadores e milhares de participantes de todo o mundo.
A promessa de um “legado transformador” parecia sedutora. Mas a pressa em entregar obras deixou rastros pelo caminho, mas as passagens e periferias continuaram convivendo com lama, buracos e esgoto.
Para quem vive de salário mínimo, sobreviver em Belém ficou substancialmente mais caro. Urbanistas classificam o fenômeno como gentrificação acelerada por megaevento — e alertam para seus efeitos duradouros.
Dentro dos pavilhões climatizados, chefes de Estado discursavam sobre preservação, créditos de carbono e metas de neutralidade. Do lado de fora, movimentos sociais protestavam contra o avanço do neoextrativismo, que inclui mineração, agronegócio e megaprojetos de logística.
Abaixo, estão as ponderações de José Horta, editor do Diário de Caratinga, que são respondidas por Lier Lier Pires Ferreira, que é advogado, professor titular do Colégio Pedro II e pesquisador da UERJ e da UFF. Doutor em Direito e pós-doutor em Direitos Humanos, é autor de diversas obras nas áreas de ciência política, relações internacionais e direito internacional
COP30 em Belém: entre o simbolismo amazônico, os impasses climáticos e a conta bilionária — e um saldo ainda indefinido
A COP30 em Belém deslocou o centro da diplomacia climática para a Amazônia, gesto carregado de simbolismo e expectativa — mas até que ponto essa mudança de cenário influenciou o conteúdo das negociações? O encontro no próprio bioma ampliou de fato sua força política ou reforçou narrativas já conhecidas e pouco concretizadas?
Análise do Professor Lier: Ao final das discussões, 195 países aprovaram o “Pacote de Belém”, composto por 29 decisões. O conjunto preserva o multilateralismo, mas deixa no ar a sensação de avanço limitado: a incorporação de temas como adaptação e cidades resilientes aparece como mérito, embora a ausência de uma definição clara sobre a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis mantenha a conferência dentro do padrão cauteloso de anos anteriores. A pergunta permanece: os textos aprovados são suficientes para enfrentar a urgência da crise?
Certamente que não. Todavia, talvez fosse utópico supor que duas semanas de trabalho seriam suficientes para sanar problemas que, no limite, referem-se às formas de produção, trabalho, consumo e inter-relacionamento entre os seres humanos, bem como entre estes e a natureza, da qual também fazem parte.
Assim, se não foi possível avançar no Mapa do Caminho, nem para uma Meta Global de Adaptação consistente, se o financiamento climático ainda é insuficiente e se a questão dos combustíveis fósseis não avançou em relação à COP anterior, em Baku, no Azerbaijão, houve avanços notáveis, como o Mecanismo de Belém para uma Transição Justa (BAM, Belém Action Machanism), houve a adoção de uma Meta Global de Adaptação, criou o Fundo das Florestas e fixou o compromisso de triplicar o financiamento para os esforços de transição energética.
Enfim, nos limites do multilateralismo e das relações reais de poder, essa COP, com grande protagonismo amazônico, deixa um saldo positivo, bem como alertas importantes.
Amazônia no centro — com alcance ainda em avaliação
A COP30 reposicionou a Amazônia no foco mundial e reafirmou sua centralidade climática. No entanto, cabe perguntar se esse protagonismo será profundo ou apenas simbólico. As delegações de países vulneráveis deram novo peso ao debate sobre adaptação urbana e infraestrutura — drenagem, mobilidade, saneamento — mas como transformar diagnósticos em políticas robustas e financiáveis? Os novos modelos de financiamento florestal apresentados pelo governo federal representam realmente uma “virada” para a região ou sobretudo um instrumento diplomático de curto prazo?
Análise do Professor Lier – O pensamento prospectivo é sempre limitado, mas, concretamente, a CPO30 colocou a Amazônia no eixo geopolítico global pela primeira vez, na condição de protagonista. Além disso, para além da COP oficial, aquela com a presença das diversas autoridades estatais, tivemos também a COP dos povos tradicionais, a COP dos movimentos sociais organizados, a COP da cidade de Belém. O legado desse encontro para o Brasil, para a Amazônia e para o povo paraense dependerá das ações presentes e futuras dos atores estatais e societais, das políticas públicas e das coalizões que puderem ser construídas. Mas pelo menos uma primeira grande ação, inédita no mundo, foi posta em marcha: a Colômbia, um país amazônico, assumiu o compromisso de erradicar os combustíveis fósseis e os garimpos ilegais, protagonizando, junto com a Holanda, a “Declaração de Belém para uma Transição Justa dos Combustíveis Fósseis”, assinada por mais de 20 nações. Trata-se de um marco na história da luta ambiental, cujos desdobramentos serão acompanhados com muita atenção e cuidado.
Recepção dividida — e uma percepção pública fragmentada
Pesquisas revelaram um país dividido entre expectativas e descrença. Cientistas, organizações ambientais e delegações mais afetadas qualificaram o texto como pouco ambicioso. Resta a dúvida: a COP30 manteve o diálogo vivo com ganhos incrementais — ou deixou escapar a chance de acordos mais enfáticos sobre combustíveis fósseis e financiamento climático?
Análise do Professor Lier – Não há dúvida de que o documento final é limitado em relação às reais necessidades do planeta. Os pontos anotados por você e outros, como uma meta global esquálidas, ratificam essa compreensão, esse ceticismo. De fato, há que se fazer muito mais e muito mais rápido, se quisermos materializar os ideais de sustentabilidade fixados em Estocolmo, 1972, e reafirmados na Rio-92.
Todavia, como diriam os romanos, “a política é a arte do possível”. Neste sentido, viveremos sempre sob o dilema do copo meio cheio ou meio vazio. Seria necessário fazer muito mais, mas os resultados alcançados foram o máximo possível, cabendo, de fato, saudar a presidência brasileira, cujos esforços político-diplomáticos foram dignos de nota.
Logística, obras e transparência: os limites da estrutura
A escolha de Belém como sede suscitou entusiasmo, mas também expôs limitações. Obras de mobilidade e recepção enfrentaram atrasos e denúncias de superfaturamento; hospedagens se mostraram caras e insuficientes para algumas delegações. Reportagens e relatórios apontaram lacunas documentais em cerca de R$ 2,8 bilhões de projetos vinculados ao evento, com falhas na publicidade de contratos e no licenciamento ambiental. A questão que atravessa o debate é prática e ética: como assegurar que investimentos massivos feitos a toque de caixa para um megaevento resistam ao escrutínio público e resultem em benefícios duráveis para a cidade-sede?
Análise do Professor Lier – Não se faz omelete sem quebrar ovos. A opção por cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, tradicionais palcos de grandes eventos, garantiria a infraestrutura necessária para um evento dessa magnitude. Mas continuo acreditando que a escolha de Belém, como, alternativamente, de Manaus, foi adequada. Claro que o gap infraestrutural, logístico e mesmo de transparência no uso de recursos públicos merece ser destacado. Também houve falhas de segurança e falhas no credenciamento, em particular de atores societais, como indígenas e quilombolas. Também tivermos problemas de mobilidade urbana, déficit de hospedagens, sobrevalor nos aluguéis e muitas outras, que maculam o trabalho do Brasil e acendem o sinal para novos eventos.
Mas também é importante sair do eixo Rio-São Paulo, mostrar outras realidades brasileiras, escancarar déficits s limitações para que possamos repensar a agenda de desenvolvimento nacional. O Fundo das Florestas também poderá contribuir para que a floresta em pé possa gerar os recursos necessários para que possamos desconcentrar o desenvolvimento socioeconômico nacional, incorporando regiões que, até aqui, em grande parte restaram marginalizadas.
A conta bilionária — e o debate sobre custo e legado
Dados oficiais registravam aproximadamente R$ 787,2 milhões gastos pelo governo federal antes do encerramento, com previsão próxima de R$ 1 bilhão ao final. Somadas às intervenções de infraestrutura — estimadas em R$ 2,8 bilhões e financiadas por bancos públicos e convênios —, as cifras reacendem a dúvida sobre retorno social e ambiental: quanto disso se converterá em legado efetivo para Belém e o Pará, e quanto poderá se perder em obras incompletas ou subutilizadas após o evento?
Análise do Professor Lier – Mais uma vez, é impossível pensar prospectivamente. Realidades como a do Rio de Janeiro, cujos investimentos para grandes eventos como Copa do Mundo e Olimpíadas nem sempre deixaram o legado imediato que foi desejado. Entretanto, é certo que o Rio ganhou ainda mais visibilidade após esses megaeventos, após cada Rock in Rio, cada show em Copacabana.
Por isso, compreendo que os ganhos de curto prazo talvez sejam frustrantes, mas a experiência do Rio sugere que Belém e a região amazônica podem viver novos ciclos de desenvolvimento, investimento, turismo etc. Acredito que seja possível que toda essa macrorregião possa se reposicionar no tabuleiro socioeconômico nacional a partir de sua novíssima inserção internacional. Estaremos acompanhando também esses desdobramentos.
Um legado em disputa — e ainda em construção
A COP30 deixou marcas: atenção mundial, recursos e reposicionamento simbólico de Belém. Mas o peso do simbolismo convive com incertezas sobre ambição do texto, execução das obras e transparência dos gastos. O caráter transformador da conferência não está garantido; depende da capacidade de governos e instituições de transformar promessas em ações mensuráveis — e de manter a Amazônia não apenas como palco, mas como protagonista das decisões.
Análise do Professor Lier – Por conhecer bem o assunto, você lançou a questão mas também trouxe a resposta. A COP legou tudo isso: atenção, recursos, visibilidade… nem sempre para o bem… potencialidades e vulnerabilidades restaram à mostra para o Brasil e para o mundo… O futuro, por certo, dependerá das ações que atores governamentais e societais forem capazes de implementar… O fato é que dificilmente o protagonismo experimentado pela região e por seus povos deixará de trazer benefícios coletivos, que concorram para o melhoramento da vida dos povos e das próprias florestas.
CONCLUSÃO
A COP30 em Belém revelou, ao mesmo tempo, a potência e a vulnerabilidade de se colocar a Amazônia no centro do tabuleiro climático mundial. O encontro projetou o bioma como protagonista e abriu caminhos antes inimagináveis — como a Declaração de Belém e o compromisso amazônico de enfrentar combustíveis fósseis —, mas evidenciou também a distância entre o simbolismo poderoso e a materialidade lenta das políticas públicas. Entre avanços diplomáticos relevantes, limitações estruturais e uma conta bilionária ainda sob escrutínio, a conferência deixou claro que nenhum protagonismo se sustenta sem continuidade.
O saldo, portanto, permanece em disputa. Belém ganhou visibilidade, investimentos e uma inédita inserção internacional; porém, os resultados concretos dependerão do que governo, sociedade civil e organismos internacionais conseguirão construir após o fim das luzes do evento. Se a COP30 terá sido um ponto de inflexão ou apenas um marco simbólico, isso só será definido nos próximos anos — quando se verá se as promessas sairão do papel e se a Amazônia continuará sendo tratada como sujeito político e não apenas cenário. O futuro do legado começa agora.
Gostaria de fazer uma observação: Este texto nasceu do encontro entre três olhares sobre a COP30 — três lentes distintas que, quando sobrepostas, revelam nuances, contradições e esperanças. Ao observar o evento por ângulos diversos, torna-se possível acreditar que há, sim, sementes de futuro plantadas ali: sinais de que uma nova Amazônia pode ser tecida, onde o extrativismo sustentável e a riqueza cultural dos povos da floresta se entrelaçam sem que alguém precise perder para que outro ganhe nessa longa disputa entre capital e geopolítica.
Agradeço ao professor Lier, sempre generoso em compartilhar seu conhecimento com o Diário de Caratinga, e ao editor José Horta, parceiro incansável na missão de entregar ao leitor análises que iluminem o Brasil e o mundo para além das manchetes do dia.
Que estas reflexões encontrem eco, assim como os rios encontram o mar.
Paz e bem.









