
Doutora em Sociologia Política (IUPERJ / Universidade Candido Mendes – RJ)
Membro do Instituto Nacional dos Advogados do Brasil – RJ (IAB)
Quem diria que Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump, dois líderes de estilos tão distintos, encontrariam uma sintonia surpreendente em uma videochamada de apenas 30 minutos?
Pois foi exatamente o que aconteceu. A conversa, que começou com formalidades diplomáticas, terminou com um clima de pragmatismo e até certo entusiasmo mútuo. Em uma videochamada de 30 minutos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente norte-americano Donald Trump surpreenderam o cenário político internacional ao demonstrar uma química inesperada.
Lula foi direto: pediu a retirada da tarifa extra sobre produtos brasileiros, especialmente o aço e o alumínio — setores fortemente atingidos pelas políticas protecionistas dos Estados Unidos. Trump, por sua vez, ouviu com atenção e demonstrou disposição em “rever certas medidas”, embora sem qualquer promessa concreta.
Essa aproximação entre dois líderes de perfis opostos revela um novo momento na política internacional: a prevalência dos interesses econômicos sobre as diferenças ideológicas.
Será que Lula busca ampliar a presença brasileira no mercado americano, enquanto Trump, de olho em um possível retorno à Casa Branca, vê vantagem estratégica em estreitar laços com o maior país da América do Sul?
Mas o caminho não será simples. Marco Rubio, senador republicano e crítico ferrenho de governos de esquerda latino-americanos, pode se tornar o principal obstáculo, pressionando o partido a manter as barreiras tarifárias e o discurso duro contra a América.
XXX
Lier Pires Ferreira é advogado, professor titular do Colégio Pedro II e pesquisador da UERJ e da UFF. Doutor em Direito e pós-doutor em Direitos Humanos, é autor de diversas obras nas áreas de ciência política, relações internacionais e direito internacional
Para entendermos melhor o que se passa nessa química política que rolou entre Trump e Lula, recorremos a quem entende do assunto: o professor Lier e o meu editor, José Horta, que, como sempre, me ajudam a construir textos de grande relevância para o nosso Brasil.
Seguem as questões abaixo:
Qual foi a reação inicial de Lula ao aceno de Donald Trump durante a 80ª Assembleia Geral da ONU e como ele descreveu a “química” entre os dois?
Embora houvesse contatos de diplomacia pública e privada para que Trump e Lula se encontrassem, o momento e a circunstância geraram, sim, certa surpresa em Lula. Todavia, o experiente político brasileiro ratificou que houve “uma química mesmo” entre eles, evidenciando a convicção do petista de que “não tem nada impossível quando temos disposição”. Assim, Lula mais uma vez se mostrou aberto ao diálogo, mesmo diante de diferenças políticas e ideológicas evidentes.
Da GloboNews à CNN Brasil, todos os canais destacaram o encontro do empresário Joesley Batista com Donald Trump e a influência dele na percepção positiva do presidente norte-americano sobre Lula. Qual é a relevância dessa influência na análise política das relações entre os países?
Como disse acima, os esforços para um diálogo entre Lula e Trump — um diálogo com muitas clivagens políticas e ideológicas — passaram por diversos canais. Dentre eles, a diplomacia oficial do Itamaraty, a diplomacia palaciana, os contatos parlamentares entre congressistas brasileiros e norte-americanos, além de diferentes atores privados, pela via da diplomacia corporativa. Os irmãos Batista, da JBS, também participaram desses esforços e, pelas informações circulantes, tiveram sucesso. Enfim, é importante frisar que múltiplos atores estiveram e continuam atuando no distensionamento das relações entre Brasil e EUA, o que é altamente positivo.
De que forma a falta de informações corretas pode ter influenciado decisões recentes de Trump em relação ao Brasil, segundo Lula?
Em diferentes momentos, o petista expressou sua preocupação de que Trump estaria “mal-informado” sobre o país, fato que teria influenciado negativamente a relação bilateral. Um ponto crucial levantado por Lula é a influência do deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que, como é de domínio público, compartilha “informações deformadas e erradas” com assessores de Trump. Diante desse cenário, Lula enfatizou a importância de um diálogo direto com Trump. O objetivo seria esclarecer a verdadeira situação do Brasil e corrigir quaisquer mal-entendidos que pudessem ter influenciado as decisões do presidente norte-americano.
Qual é a expectativa de Lula em relação a um possível encontro futuro com Trump e quais temas ele considera prioritários para a agenda bilateral?
Como não poderia deixar de ser, Lula nutria altas expectativas no encontro com Trump. Para o petista, essa era uma oportunidade crucial para fortalecer os laços Brasil–EUA. Na conversa de 30 minutos que travaram nessa segunda-feira (06/10), por iniciativa de Trump, Lula abordou interesses empresariais, comerciais e tecnológicos, além da queda do tarifaço e da aplicação da Lei Magnitsky contra autoridades do Judiciário. Além de apontarem para uma reunião presencial próxima — que pode ocorrer na Malásia, ao final deste mês —, Lula ratificou o convite para que Trump participe da COP-30 (seria um golaço) e houve uma bem-vinda troca de telefones entre ambos, fixando uma via direta de comunicação. O saldo dessa conversa desmonta narrativas criminosas contra o Brasil, hoje infelizmente feitas por brasileiros como Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo, radicados nos EUA.
Como Lula contextualiza a relação diplomática entre Brasil e Estados Unidos, considerando os mais de 200 anos de história?
No encontro com Trump, Lula ratificou o histórico de amizade Brasil–EUA e o fato de que somos deficitários na relação comercial com os EUA. Além disso, pontuou os diversos investimentos de empresas brasileiras nos EUA, como Embraer e Gerdau, além de apontar para a necessidade de um diálogo cada vez mais estreito entre os dois presidentes, em benefício de seus países.
De que maneira a idade e a experiência de ambos os líderes influenciam a abordagem de Lula sobre possíveis constrangimentos diplomáticos?
O contato inicial entre eles minimiza a possibilidade de que Trump arme uma arapuca para Lula, como já fez com líderes como Zelensky (Ucrânia) e Ramaphosa (África do Sul). Todavia, a indicação de Marco Rubio (secretário de Estado) para dar prosseguimento aos diálogos, ao mesmo tempo que valoriza o lugar do Brasil — pois se trata de uma autoridade do primeiríssimo escalão —, apresenta também um certo risco, pela tradicional intransigência político-diplomática de Rubio. Portanto, embora os contatos iniciais tenham sido muito bons, há que se ter cautela. Lula e Trump devem ter um ou mais encontros presenciais, no Brasil e nos EUA, como bem sinalizou o americano em sua rede social particular. A ver os próximos passos dessa relação, ainda vital para o Brasil.
Quais setores econômicos Lula destacou como estratégicos para fortalecer a parceria Brasil–Estados Unidos e por que esses setores são prioritários?
Como dito acima, do ponto de vista econômico, os destaques foram para a agenda empresarial (investimentos), comercial (normalização e fim do “tarifaço”) e tecnológica (incluindo a questão das big techs). Alguns segmentos específicos, como madeira, móveis e sofás, já estão em fase avançada de retração (total ou parcial) dos “tarifaços”. A economia, não a política, foi dominante nesse diálogo.
Como a afirmação de Trump de que “só faz negócios com pessoas de quem gosta” pode impactar negociações econômicas e políticas entre os dois países?
Essa postura sugere que as afinidades pessoais e políticas podem se sobrepor a considerações estratégicas e interesses nacionais nas decisões de Trump, introduzindo um elemento de imprevisibilidade e subjetividade nas relações bilaterais. Essa postura mais amigável também faz parte da “armadilha Trump”, ou seja, o norte-americano tende a criar um clima amistoso, quase personalíssimo, para constranger seus interlocutores e induzi-los a aceitar seus termos — sempre assimétricos e desiguais.
Quais medidas Lula sugere para reduzir conflitos e fortalecer a cooperação bilateral em termos comerciais, tecnológicos e científicos?
Diálogo. Diálogo direto, de alto nível, com a participação dos respectivos corpos diplomáticos. Daí a importância da troca de telefones entre eles. Lula sabe que a política ideológica e partidária os afasta, mas sabe também que os negócios podem ser uma ponte segura para o aprimoramento das relações bilaterais, sem que questões como a soberania brasileira tenham que ser barganhadas.
Qual é a relação entre a diplomacia pessoal entre líderes e os interesses estratégicos de uma nação, segundo a leitura do encontro entre Lula e Trump?
Conforme ilustrado pelo encontro entre Lula e Trump, a relação entre a diplomacia pessoal dos líderes e os interesses estratégicos de uma nação é complexa e multifacetada. A análise dessa interação revela que, embora a “química” pessoal possa ter um papel importante, ela não determina a totalidade das relações bilaterais nem substitui os interesses estratégicos de cada país. Portanto, o encontro entre Lula e Trump revela que a diplomacia pessoal é um instrumento valioso, que, como outros canais de diálogo, deve estar sempre aberto. Entretanto, a pessoalidade não pode e não deve substituir a diplomacia tradicional. É crucial que os líderes encontrem um equilíbrio entre as interações pessoais e uma análise cuidadosa dos objetivos, prioridades e valores de cada nação, garantindo que as relações internacionais sejam construídas sobre bases sólidas e duradouras.
Como a mídia internacional influencia a percepção pública e política sobre a relação Brasil–Estados Unidos, considerando reportagens sobre a Assembleia da ONU em Nova York?
Mesmo no contexto das big techs e das redes sociais, a mídia internacional exerce uma influência fundamental na formação da percepção pública e política sobre as relações Brasil–EUA, especialmente durante eventos de alta visibilidade, como a Assembleia Geral da ONU em Nova York. As reportagens e análises veiculadas por veículos de comunicação globais não apenas informam, mas também conformam as interações bilaterais, moldando narrativas e destacando aspectos específicos que ressoam com diferentes públicos e formuladores de políticas.
Considerando o contexto econômico global, por que é relevante para o Brasil manter uma relação positiva com os Estados Unidos, mesmo diante de divergências políticas ou ideológicas?
Manter uma relação positiva com os EUA é vital para o Brasil. A América é nosso segundo maior parceiro comercial, com um comércio bilateral de US$ 80,9 bilhões em 2024. Os EUA também são fonte essencial de investimento estrangeiro direto, bem como um mercado fundamental para vários setores exportadores do Brasil. Portanto, para além das simpatias ou antipatias políticas, a relação com os EUA, embora assimétrica e marcada por forte dependência, traz benefícios tangíveis para o Brasil.
Sobre uma possível anistia a Jair Bolsonaro. Trump poderia usá-la como instrumento de influência?
Sim, mas é pouco provável que Lula caia nessa armadilha. Sob a influência de Steve Bannon, seu assessor geopolítico, Trump vem demonstrando apoio ao clã Bolsonaro, tendo como base a afinidade político-ideológica entre os dois neofascistas. Contudo, Lula tem reiterado que a soberania nacional e a independência do Judiciário não serão objetos de barganha. Na conversa de hoje entre Lula e Trump, os interesses privados do clã Bolsonaro, inclusive a anistia ao ex-presidente, não foram abordados pelos dois líderes. O petista afirmou reiteradas vezes que “ninguém está acima da lei” e que o Brasil não cederá a pressões externas, reiterando seu compromisso com as instituições democráticas.
Como o Brasil poderia aproveitar a reaproximação com os Estados Unidos para avançar em agendas de interesse nacional, mantendo equilíbrio entre política interna e relações externas?
A reaproximação entre Brasil e EUA oferece uma oportunidade estratégica para o Brasil avançar em temas de interesse nacional, desde que o país mantenha um equilíbrio cuidadoso entre suas políticas internas e suas relações externas. Dentre os principais temas estão: fortalecimento da cooperação econômica e comercial; ratificação da pluralidade política e diplomática brasileira; fomento à inovação e à sustentabilidade — embora a questão ambiental seja uma barreira entre os dois presidentes —; e o próprio fortalecimento da democracia, tema no qual, indiretamente, o Brasil tem hoje muito a oferecer aos EUA, mesmo que o ocupante circunstancial da Casa Branca não tenha maior apreço pela institucionalidade democrática.
Donald Trump está taxando até aliados numa forte política protecionista. O presidente estadunidense é confiável quando se trata de negociações, sejam elas políticas ou econômicas?
Trump não é um player confiável. Não por outro motivo, sua política comercial tem sido altamente protecionista, impondo tarifas ilegais inclusive sobre países aliados dos EUA. Essa abordagem levanta questões sobre a confiabilidade da América como potência-líder do Ocidente e (ainda) principal economia mundial. Todavia, cumpre notar que a falta de confiabilidade de Trump e sua falta de lisura enfraquecem a governança global e fragilizam o multilateralismo, inclusive instituições de proa como a ONU e a OMC. Portanto, o America First cria um ambiente de incerteza e imprevisibilidade que só tende a beneficiar a China, principal antagonista dos EUA na geopolítica global. Em outras palavras, o personalismo, a imprevisibilidade e a ilegalidade nas políticas globais da América trumpista fortalecem Pequim, cuja importância estratégica se agiganta a cada nova ilegalidade ou imprudência cometida pelo atual titular da Casa Branca.
Como o senhor avalia este contato ocorrido na última sexta-feira (6) entre Lula e Trump?
A reunião foi muito boa, mas a equalização das relações recíprocas ainda terá novos e decisivos “rounds”. Lula e Trump ainda deverão se encontrar, seja na Malásia, ao final deste mês, seja nos EUA ou mesmo no Brasil — quiçá por ocasião da COP-30. O importante é que, para além da “química” entre os dois líderes, as relações institucionais entre os dois países voltem ao eixo, com o diálogo (mesmo que assimétrico) se sobrepondo ao unilateralismo. Por evidente, estaremos acompanhando a evolução das conversas, que certamente é de interesse para ambas as nações.
Por fim, Marco Rubio pode ser um obstáculo para a aproximação entre Lula e Trump?
Marco Rubio pode atrapalhar ou não, a depender daquilo que for determinado por Trump. Sua designação, por um lado, como já dito, mostra que a interlocução entre Brasil e EUA se dará em nível de primeiro escalão. Por outro lado, sabemos o quão radical Rubio tem sido em várias questões. Mas insisto que o eixo será o comando de Trump ao seu “secretário” de Estado. Se o presidente Trump compreender os benefícios recíprocos da normalização da relação com o Brasil, Rubio certamente não será um grande obstáculo.
XXX
Concluo, após as respostas dadas por meio do professor Lier para as questões elaboradas pelo editor José Horta, que, apesar do tom amistoso da conversa, a verdade é que a retirada das tarifas ainda não está em pauta oficialmente. Foi um primeiro gesto — simbólico, mas importante — que abre espaço para futuras negociações, sem compromissos imediatos.
Mesmo assim, o simples fato de Lula e Trump terem trocado ideias com respeito e convergência já é um sinal político poderoso. Mostra que, quando o diálogo prevalece sobre as diferenças ideológicas, o Brasil pode ganhar protagonismo. Mas, até que as palavras se transformem em ações concretas, a pauta continuará fora da mesa — embora a conversa, definitivamente, já tenha começado.
Ainda assim, diplomatas avaliam que a disposição de Lula e Trump em dialogar marca um novo capítulo nas relações Brasil–EUA, e que a “química política” entre ambos pode, sim, gerar frutos — desde que consigam contornar resistências internas em Washington que poderão alterar o tabuleiro geopolítico.
O destaque é que o gesto político tem peso. Em tempos de polarização e desconfiança mútua, o simples fato de dois líderes tão diferentes conseguirem dialogar já representa um movimento importante. Se dessa química nascerem resultados concretos, o Brasil poderá ganhar voz e relevância no cenário global.
Mas, por ora, a pauta segue fora da mesa — e a diplomacia, mais uma vez, mostra que, às vezes, um gesto pode valer tanto quanto um acordo.
AGRADEÇO AO PROFESSOR LIER POR ESTAR SEMPRE CONOSCO E AO MEU EDITOR (DIÁRIO DE CARATINGA), JOSÉ HORTA.
PAZ E BEM!