“A individualização fragmenta a sociedade em um conjunto de indivíduos solitários, cada um buscando soluções privadas para problemas produzidos socialmente. O resultado é uma comunidade enfraquecida, onde a solidariedade é sacrificada no altar da autonomia individual.”
— Zygmunt Bauman, “Vida para Consumo: A transformação das pessoas em mercadoria”
Não é novidade para ninguém que a era digital tem criado um rompimento entre os modos de pensar e perceber a realidade, assim como tem mudado o modo como percebemos e interpretamos o mundo à nossa volta se compararmos com os tempos passados. E já é possível perceber que essa nova forma de perceber e interpretar o mundo e a realidade tem trago algumas dificuldades para o tempo presente, pois, além de intensificar o relativismo moral, já é fato comprovado que essa imersão e dependência do meio digital tem provocado impactos devastadores nas relações interpessoais e na saúde mental.
Estamos vivendo em uma era em que famílias se dividem por divergências ideológicas alimentadas por conteúdos polarizados nas redes sociais. Amizades de longa data se desfazem por discordâncias políticas que ganham roupagem e importância completamente exageradas nas redes sociais e em ambientes virtuais. Jovens enfrentam ansiedade e depressão ao tentar conciliar identidades múltiplas entre o mundo online, onde projetam versões idealizadas de si mesmos, e o mundo real, onde lidam com inseguranças e as cobranças do mundo real. Também dentro desse contexto, vivemos em tempos em que a verdade estabelecida por meio de fatos e provas é questionada, com “fatos alternativos” e teorias conspiratórias ganham força pelo apelo emocional, e não por evidências reais.
Vivemos tempos em que cada indivíduo parece caminhar conforme as batidas do próprio coração, ignorando qualquer compasso coletivo. O que antes sustentava e dava sentido para a vida em comunidade, como os bons princípios, valores e padrões universais, têm sido substituídos por algoritmos que moldam não apenas o que se vê, mas o que se crê. As redes sociais, para lembrarmos do mito platônico, são verdadeiras “fogueiras modernas” que projetam sombras personalizadas diante dos olhos de cada um, fazendo com que a verdade se torne relativa e o diálogo se torne praticamente impossível. Em meio a esse cenário, o egoísmo — agora impulsionado por “likes” e curtidas — se ergue como senhor absoluto, dissolvendo muitos dos laços que um dia chamamos de afeto, responsabilidade, ou laços de compromisso. A sociedade, que antes estruturada e organizada sobre bases e alicerces comuns, se transforma num grande mosaico de vontades egoístas, onde cada um briga para ser o centro. E, assim, os relacionamentos se tornam rasos, medíocres e descartáveis. É o retrato de uma geração que, ao rejeitar a responsabilidade do “nós”, optou por se afundar na tirania do “eu”.
Essa fragmentação social resulta da ausência de valores compartilhados, e é ainda mais agravada pelas dinâmicas e pelo modo de funcionamento das redes sociais e meios digitais. As redes sociais, ao personalizarem conteúdos por algoritmos, criam realidades paralelas que dificultam o diálogo e a empatia, nos privando de termos um conhecimento mais amplo e verdadeiro da realidade. Uma sociedade onde cada um segue suas próprias regras, sem padrões aceitos por todos, caminha para o caos, que surge como consequência do egoísmo extremo e da falta de respeito, consideração e empatia para com o próximo. O egoísmo, amplificado pelo ambiente digital, torna-se um princípio dominante, corroendo os laços que sustentam a convivência. Em nossa sociedade, os relacionamentos são frequentemente marcados pela superficialidade e pela ausência de compromisso, refletindo a imagem de um mundo onde o egoísmo e a falta de responsabilidade tem prevalecido.
Por meio das redes sociais aprendemos a compartilhar tudo, menos aquilo que é mais importante: os bons sentimentos que unem e sustentam os laços humanos. Compartilhamos imagens, opiniões e momentos superficiais, mas deixamos de compartilhar e de cultivar sentimentos profundos, como empatia, compaixão, respeito, perdão e gratidão.
A busca por aceitação, reconhecimento e validação online por meio das redes sociais, tendo como parâmetro de medida as curtidas e compartilhamentos, substitui conexões e relacionamentos reais, trazendo, como consequência, insegurança e isolamento. Nossa saúde mental sofre quando nos vemos presos em um meio de comparações e polarização, sem referenciais éticos sólidos para orientar nossas escolhas. Dentro disso, a desordem social que vemos todos os dias em nossa sociedade também reflete uma crise mais profunda de integridade, onde o imediatismo supera a responsabilidade e o compromisso que deveríamos ter uns com os outros, pois pertencemos ao mesmo meio, e somos afetados pelos mesmos problemas e crises. Em nosso contexto atual, o desejo por sucesso imediato, mesmo às custas dos outros, tornou-se a norma, levando ao colapso de sistemas políticos e sociais conduzidos por pessoas que priorizam somente os seus interesses próprios.
Para reverter essa situação e amenizar um pouco mais as consequências e os perigos dessa fragmentação, é essencial voltarmos a resgatar os valores que promovam empatia, diálogo e compromisso com o bem comum. Resgatar os bons valores que são fundamentais para formação estrutural de um ser humano que visa o bem e a união, sempre respeitando e buscando o bem para o próximo e para a sociedade como um todo. Temos ouvido falar ultimamente sobre regulamentação das redes sociais, e isso nos deveria fazer pensar: o verdadeiro problema tem sido as “redes sociais”, ou as pessoas que a utilizam? O real problema está no ser humano, está na estrutura que forma o nosso caráter e nosso jeito de compreender as estruturas do mundo e da realidade. Se não houver uma mudança no interior do ser humano, uma valorização e disseminação dos princípios que ajudam o homem a dominar seus instintos e impulsos não existirá lei que contenha e estanque as crises e as barbáries. A mudança deve ser feita de baixo, focando nas bases e nos princípios norteadores que regem o pensamento e a vida humana, e não por força e imposição vinda de cima. Seja no meio virtual, nas redes sociais, ou no mundo aqui fora, se o interior do ser humano e os princípios que dirigem suas vidas não forem modificados, ainda reinará a barbárie, a desordem e o caos. O problema não é o meio, é o interior do ser.
Diante de tudo isso, é preciso reconhecer que a crise que enfrentamos não é apenas tecnológica, mas profundamente moral e existencial. O colapso das relações humanas, da saúde mental e do senso de coletividade é o reflexo de uma ruptura muito maior: a desconexão do homem com valores que transcendem sua própria vontade, que vão além do “eu” e de seus desejos individuais. A transformação que o mundo tanto necessita não virá de algoritmos mais éticos nem de plataformas mais humanas, mas de indivíduos que escolham conscientemente cultivar virtudes que sustentam a vida em comunidade. Sem esse alicerce interno — forjado por princípios como a empatia, a verdade, o respeito e a responsabilidade —, continuaremos a construir, tanto no mundo físico quanto no digital, estruturas frágeis que desabam ao menor sinal de crise. Sendo assim, ou reencontramos as raízes morais que sustentam uma convivência saudável, ou nos afundaremos cada vez mais em um deserto de almas conectadas, porém vazias. Sem uma base moral sólida, a sociedade continuará a se desintegrar, e o ambiente digital, em vez de ser uma ferramenta de união, seguirá amplificando o caos social.