No coração do sistema jurídico brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) cumpre um papel que vai muito além de julgar casos isolados. Ele é a linha de frente da preservação do Estado Democrático de Direito, e um dos instrumentos mais poderosos em suas mãos é a atração de competência — a prerrogativa de julgar autoridades com foro especial quando há conexão com crimes ou funções desempenhadas.
Essa ferramenta, muitas vezes invisível ao cidadão comum, molda decisões que reverberam por toda a sociedade, da segurança jurídica ao equilíbrio entre poderes. Historicamente, a atração de competência é mais que uma formalidade: é uma barreira contra abusos, uma salvaguarda contra a impunidade e um mecanismo de proteção institucional.
A Constituição da República de 1988 conferiu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a função precípua de guardião da Constituição (art. 102, caput). A Corte tem, portanto, competência taxativamente delimitada, que não pode ser ampliada por mera conveniência jurisdicional. Todavia, situações excepcionais têm demonstrado a necessidade de atração de competência para o STF, seja para preservar a supremacia constitucional, seja para assegurar a unidade de julgamento em casos de alta relevância institucional. Clèmerson Clève complementa que o instituto deve reforçar a supremacia constitucional e a unidade do Direito (CLÈVE, 2017).
Um dos institutos mais relevantes para a compreensão do funcionamento da Suprema Corte é o da atração de competência, ou seja, a possibilidade de que determinados casos sejam remetidos ao STF em razão da matéria, da pessoa ou da conexão processual. Trata-se de um tema que mobiliza não apenas a teoria constitucional e processual penal, mas também o debate político-institucional, sobretudo quando estão em jogo autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função.
Historicamente, a atração de competência surgiu para garantir que autoridades de alta relevância fossem julgadas por tribunais superiores, evitando interferências locais ou decisões de instâncias inferiores. Esse mecanismo foi testado desde o período do regime militar (1964–1985), quando o STF, mesmo limitado por restrições políticas e legais, recebeu casos envolvendo crimes políticos e abusos de autoridade, incluindo habeas corpus para proteger civis e militares de prisões arbitrárias.
Com a redemocratização CFRB de 1988, o instituto ganhou contornos mais claros. No caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o STF anulou processos da Operação Lava Jato em Curitiba, entendendo que a competência da 13ª Vara Federal não era adequada. Já o ex-presidente Jair Bolsonaro teve inquéritos como os relacionados às fake news e aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023 analisados diretamente pela Corte, em razão da prerrogativa de foro durante o mandato e da conexão com outras autoridades com foro especial.
A competência do STF é definida de maneira taxativa no art. 102 da Constituição Federal. Trata-se de regra de hermenêutica consagrada: “a competência é de direito estrito, não comportando interpretação ampliativa” (ADI 1946/DF, Rel. Min. Ellen Gracie). Lenio Streck (UnB) alerta que a atração de competência não pode se transformar em mecanismo de conveniência política (STRECK, 2020).
Portanto, a atração de competência não significa ampliação arbitrária, mas aplicação de princípios constitucionais como:
- Supremacia da Constituição;
- Efetividade dos direitos fundamentais; Daniel Sarmento (UFRJ) e Luís Roberto Barroso, ainda como professor, enfatizam que o STF deve ser garantidor de direitos fundamentais sem se transformar em instância revisora universal (SARMENTO, 2021; BARROSO, 2019).
- Unidade da jurisdição constitucional;
- Prerrogativa de foro de determinadas autoridades.
- casos envolvendo crimes políticos ou conexos à segurança nacional.
A prerrogativa de foro continua sendo alvo de críticas. Especialistas apontam que ela pode gerar desigualdade, protegendo autoridades em detrimento de cidadãos comuns. A jurisprudência recente do STF, porém, sinaliza uma interpretação restritiva: apenas crimes cometidos no exercício e em razão do cargo devem atrair a competência da Corte, alinhando o instituto com os princípios republicanos e o juiz natural. Para Gustavo Badaró, a atração de competência deve respeitar este princípio sob pena de nulidade absoluta, pois o foro por prerrogativa é instituto de exceção (BADARÓ, 2022).
A atração de competência, portanto, cumpre dupla função: garantir que autoridades sejam julgadas por tribunais superiores capazes de proteger a estabilidade institucional, especialmente em crises políticas ou ameaças à democracia.
A atração de competência não é apenas um conceito jurídico: é a espinha dorsal da justiça em crises políticas, um escudo para a democracia e uma garantia de que o Estado respeita seus próprios limites.
Referências Bibliográficas
LOPES JR., Aury. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2023.
BADARÓ, Gustavo. Curso de Processo Penal. São Paulo: RT, 2022.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2022.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2023.
SARMENTO, Daniel. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.
BARROSO, Luís Roberto. O Novo Direito Constitucional Brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
STRECK, Lenio. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. São Paulo: RT, 2020.
CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Constituição Dirigente e a Unidade do Direito. São Paulo: RT, 2017.
Revista da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, diversas edições.