O exercício do mandato parlamentar é revestido de prerrogativas que visam garantir a independência e a liberdade do representante popular no desempenho de suas funções. Todavia, o uso dessas prerrogativas deve observar os limites da legalidade, da ética pública e do decoro, sob pena de se converter em abuso de direito e violação ao próprio mandato.
No plano municipal, a Lei Orgânica do Município de Caratinga, estabelece em seu artigo 17, inciso II, que perderá o mandato o vereador cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar. O § 1º do referido artigo define que é incompatível com o decoro, além dos casos previstos no Regimento Interno, “o abuso das prerrogativas asseguradas ao vereador ou a percepção de vantagens indevidas”, e o § 2º dispõe que, nos casos dos incisos I a V, o mandato será cassado por decisão da Câmara, mediante voto secreto e maioria absoluta, assegurando-se ampla defesa e contraditório ao acusado.
Esse dispositivo reproduz, em âmbito local, o comando contido no art. 55, inciso II, da Constituição Federal, que prevê a perda do mandato do parlamentar cujo comportamento for declarado incompatível com o decoro, e concretiza o dever republicano de preservar a dignidade da função pública. O decoro parlamentar, portanto, é expressão de probidade, urbanidade e respeito às instituições, constituindo verdadeiro parâmetro ético-jurídico de atuação do agente político.
A quebra de decoro parlamentar manifesta-se quando o vereador, valendo-se da tribuna, utiliza a palavra para proferir acusações infundadas, de cunho pessoal ou difamatório, contra seus pares ou terceiros, desvirtuando a finalidade fiscalizatória e legislativa do mandato. O uso da palavra pública com o propósito de atingir a honra de outros agentes políticos, sem suporte probatório mínimo, configura violação do dever funcional e afronta direta ao princípio da moralidade administrativa.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 29, inciso VIII, estende aos vereadores a inviolabilidade por opiniões, palavras e votos, na circunscrição do município, mas essa imunidade material não é ilimitada. O Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 600.063/DF (Tema 469 da Repercussão Geral), firmou entendimento de que a imunidade parlamentar não se aplica a manifestações que não guardem nexo com o exercício da função pública ou que configurem ofensa pessoal gratuita, reafirmando que o direito à liberdade de expressão do parlamentar encontra restrições no respeito à dignidade e à honra de terceiros.
O Superior Tribunal de Justiça, tem o entendimento consolidado igual ao reconhecer que a imunidade material não constitui salvo-conduto para agressões verbais desvinculadas da função legislativa, sujeitando o agente político às consequências civis e políticas decorrentes do abuso. Nessa linha, as manifestações ofensivas e destituídas de finalidade pública não são amparadas pela inviolabilidade constitucional, sendo legítima a atuação da Casa Legislativa para apurar eventual quebra de decoro.
A jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais é igualmente firme. No sentido de que a Comissão Processante Parlamentar deve observar o devido processo legal, mas reafirmou que a imunidade parlamentar não protege condutas abusivas praticadas sob o pretexto de liberdade de expressão. Assim, a Câmara Municipal possui competência para instaurar o procedimento disciplinar destinado à cassação de mandato, desde que respeitado o rito previsto no Regimento Interno e na Lei Orgânica.
No âmbito da Câmara Municipal de Caratinga, o Regimento Interno, instituído pela Resolução N.º 1118/2023, prevê expressamente o rito processual da Comissão Processante Parlamentar (CPP).
“Art. 26. A denúncia sobre infração dos incisos I, II, VI e IX do artigo anterior será encaminhada à Presidência desta Casa Legislativa, que consultará o Plenário da Câmara sobre a constituição de Comissão processante, composta por 3 (três) Vereadores para, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, contados da data em que se efetivar a notificação do acusado, apurar o fato, receber a defesa do Vereador denunciado e apresentar parecer conclusivo para apreciação do Plenário e votação sobre a cassação pretendida.”
Tal procedimento assegura ao denunciado a ampla defesa, o contraditório e a decisão mediante votação nominal e fundamentada, em consonância com os princípios do devido processo legal e da moralidade administrativa.
Desse modo, quando um vereador, em sessão pública, imputa a seus pares a prática de ilícitos, sem respaldo fático ou probatório, ultrapassa os limites da imunidade material, afronta o decoro parlamentar e viola o princípio da moralidade, ensejando a instauração de processo disciplinar de cassação. Tais condutas comprometem a credibilidade do Legislativo, geram instabilidade institucional e desconstroem a imagem da Câmara perante a sociedade.
A palavra do vereador é prerrogativa democrática, mas também responsabilidade pública. A tribuna deve ser utilizada para o debate de ideias, a defesa do interesse coletivo e a fiscalização legítima do Executivo, jamais para ataques pessoais ou difamações. O uso abusivo do mandato para a promoção de acusações sem provas descaracteriza a função representativa e ofende o próprio Estado Democrático de Direito.
Preservar o decoro parlamentar é preservar a confiança do povo no Poder Legislativo. A aplicação rigorosa do artigo 17 da Lei Orgânica de Caratinga, em harmonia com o artigo 55 da Constituição Federal, não representa perseguição política, mas o cumprimento do dever institucional de manter a dignidade do cargo e o respeito entre os representantes eleitos. O vereador que transforma sua voz em instrumento de desordem e desrespeito perde, por consequência, o direito de representar a sociedade.
A democracia exige liberdade, mas também responsabilidade. E, no exercício do mandato, a palavra sem verdade é o primeiro passo para a quebra da confiança pública e para a perda do decoro.
Referências Normativas e Jurisprudenciais
- Lei Orgânica do Município de Caratinga (MG) – Art. 17, incisos I a VIII e §§ 1º a 3º.
- Constituição Federal de 1988, arts. 29, VIII; 37, caput; 55, II e § 1º.
- Regimento Interno da Câmara Municipal de Caratinga, Resolução N.º 1118/2023.
- STF, RE nº 600.063/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 23/06/2016 (Tema 469 da Repercussão Geral).