Destaque do DIÁRIO, Daniel Dornelas fala sobre gosto pela leitura, escrita e dá lição sobre família
CARATINGA- Tem uma frase que diz: “Uma família unida é capaz de enfrentar seja o que for e vencer qualquer batalha!”. E ela se aplica perfeitamente à história de Daniel Dornelas, seu irmão Davi e os pais Maria Auxiliadora e Aparecido Iraídes Dornelas. Um componente que foi e ainda é fundamental nisso tudo é a literatura.
Daniel e Davi são gêmeos de 16 anos de idade e um deles é portador de necessidades especiais. Davi foi diagnosticado com paralisia cerebral e, recentemente, com Síndrome de Rasmussen, que é uma desordem neurológica rara e progressiva que gera perda de habilidades. Hoje, não anda, não fala e não enxerga.
Ao longo dos anos, a família precisou se desdobrar com os o tratamento de Davi e ao mesmo tempo lidar com a angústia de imaginar o que se passava na mente de Daniel, já que uma atenção especial precisava ser dedicada ao irmão. E eles só foram descobrir isso, recentemente, após a publicação do livro ‘Antologia Fantásticos’, a primeira antologia inclusiva da Editora Sinna. Daniel contribuiu com um texto falando sobre a relação que nutre com o irmão desde a infância.
COMO TUDO COMEÇOU
O DIÁRIO esteve na casa da família, no Córrego Cachoeira Alegre, zona rural de Santa Bárbara do Leste. Logo que a Reportagem chegou, Daniel convidou para conhecer o irmão Davi e chamou atenção o fato de que ele descansava próximo a um rádio ligado. A mãe, Maria Auxiliadora, esclareceu que o garoto adora música e que a família usa esta estratégia até mesmo para saber se Davi está doente. “Se ele ouve uma música que ele gosta e não esboça nenhuma reação, alguma coisa está errada”, diz.
Para Maria Auxiliadora, ser mãe do Daniel é um orgulho. “Graças a Deus, ao contrário de muitas pessoas pensarem que ele iria ser revoltado comigo por eu ter que ficar mais tempo com o Davi, ele soube entender isso de uma forma totalmente diferente do que as pessoas colocavam na minha cabeça e na dele. Ele procurou ser uma pessoa do bem, fazer algo pela mãe dele e pelo irmão, porque vê a dificuldade que eu enfrento com ele. Muitos torcem por ele e pelo Davi, sempre tem algumas pessoas que estavam levando por esse lado, infelizmente. E por onde o Daniel vai as pessoas são apaixonadas com ele, todo mundo quer ajudar. Nós não participávamos de reunião da escola, por ter que levar o Davi para tratamento e ele (Daniel) nunca cruzou os braços e desistiu. Ele nunca teve a melhor mochila, muito pelo contrário, sempre a mochila mais barata, material ruim, mas isso só fez ele pensar em mudar, estudar e ser alguém na vida”.
Daniel não expressava para os pais o que sentia, mas sempre teve os livros como seu companheiro, quando ficava sozinho. Após ler o Antologia Fantásticos, Maria Auxiliadora pôde descobrir que o garoto, apesar da idade, soube compreender que o irmão necessitava de cuidados especiais. “De tantos as pessoas falarem comigo, tinha medo dele pensar que eu não gostava dele. Mas, não era porque eu queria, mas não tinha como eu sair com ele e o Davi. Era difícil levar os dois, para ficar internado também não tinha jeito de levar outra criança. Mas, o Daniel soube entender que eu tenho que dar mais atenção no lado que o Davi precisa, porque ele não se alimenta sem eu dar a alimentação, hoje é por sonda, mas quando comia era engasgando, sempre tudo com muita dificuldade. Para tratar dele só eu que mexo com isso, se tivesse alguém para falar que levava ele na Apae pra mim ou ficar com ele para eu ir não reunião, mas não acontecia isso”.
Por vezes, a mãe se entristecia e refletia sobre as dificuldades que enfrentava. “Eu panhava café enquanto deu, deixava os dois com a minha mãe, quando o Davi não estava internado. Teve um dia que estava chorando aqui, cozinhando, o Daniel chegou e falou assim: ‘Mamãe, abaixa aqui, que eu vou te dar um remedinho, que a senhora vai sarar agora’. Me deu um beijo. Eu estava chorando de tristeza, pensando: ‘Meu Deus, o que está acontecendo?’. Porque eu queria estar junto com ele, queria que as coisas fossem mais leves, mas era tudo muito difícil. Ainda é, todo ano tem um desafio diferente, agora o Davi já está ultrapassando a meta que para a Medicina, se não fossem os cuidados, talvez já nem teria ele mais, pra nós ele é um milagre”.
Hoje, após olhar para o passado e contemplar o presente, Maria Auxiliadora faz um balanço positivo. “Tenho duas bênçãos, o Daniel poderia estar por aí bebendo, mexendo com drogas, não querendo estudar; mas é extremamente educado, religioso, não tenho nem palavras para descrever, ele é um orgulho pra família dele. E o Davi não é assim porque ele quer, cuido dele com todo carinho do mundo”.
TRANSFORMAÇÃO PELA LITERATURA
Daniel escreve contos, crônicas e faz resenha de livros, que publica no blog ‘Lendo com Daniel’. Estudou na Escola Estadual Monsenhor Rocha, em Santa Bárbara do Leste por 10 anos, permanecendo até o ano passado, quando concluiu o 1° ano do Ensino Médio. Ele deu início ao ano letivo em 2018 na Escola Estadual Engenheiro Caldas, em Caratinga.
Em entrevista à Reportagem, Daniel fala sobre sua história com a literatura e comenta a escolha como um dos destaques 2018 pelo DIÁRIO.
Como a Escola Monsenhor Rocha contribuiu neste seu despertar para a literatura?
Aqui em Santa Bárbara do Leste só temos duas escolas, a municipal e a estadual, meus pais me matricularam na Monsenhor Rocha. Sempre para ir para lá utilizei o ônibus que busca aqui na roça e meus primeiros passos na leitura e na escrita foram lá, com as propostas de redação dos professores, com os livros que a escola oferecia para gente e com todos os desafios. O prédio da escola frágil, desabando, até saída completa, tivemos que ir para outro lugar, boa parte do tempo que eu estive estudando com eles foi em uma garagem, salas extremamente apertadas, não se tinha todo aquele aparato físico para oferecer uma educação de qualidade. Mesmo assim os professores sempre foram muito empenhados. Pela leitura, eu tinha as bibliotecárias e professoras de Língua Portuguesa, que sempre me apoiavam muito; quando a biblioteca era fechada, me levavam e deixavam escolher os livros. Os livros que eu queria ler, li todos praticamente e quando eu já não encontrava mais o que eu queria ler, eu desejava ir mais além dentro da leitura, fiz o blog e comecei a ganhar os livros. Mas, é uma escola que fez e faz parte de mim, aquela caminhada que tenho muito orgulho, mesmo diante daquela falta de estrutura, todo apoio que os professores e a equipe sempre me ofereceram.
Mas, você precisou se matricular em outra escola esse ano e sua rotina mudou, pois passou a morar em Caratinga. Como se deu isso?
Saí para Caratinga porque consegui o apoio financeiro de uma madrinha, sempre gostei muito de estudar, mas meus pais nunca tiveram dinheiro para isso, seriam despesas de deslocamento até Caratinga e pagar cursinho. Aceitei a proposta dela, minha mãe me matriculou na Escola Estadual Engenheiro Caldas e entrei para o João Martins (Núcleo de Ensino), lá tenho crescido muito, foi uma saída que doeu bastante, porque sinto muita falta da minha família. Lembro que no primeiro semestre eu chorava quase todo dia, apesar de estar muito feliz, sentia muita falta dos meus pais, do meu irmão e da minha avó. Mas, era algo necessário, uma coisa que eu queria, desde criança eu falava que queria ser médico por causa do meu irmão e quando cheguei no Ensino Médio vi que não era só falar, eu tinha que fazer algo para conseguir conquistar isso. Era um desafio, escola pública, eu tinha uma defasagem muito grande, então tinha que conseguir estudar mais matemática e outros conteúdos, mas principalmente as matérias que pesavam mais. Eu precisava de mais apoio, estava aqui em Santa Bárbara, na área rural, bem longe, meu pai, por exemplo, não poderia ficar me buscando toda hora, seria muito difícil ir e voltar todos os dias. E como aqui não tem cursinho, junto com minha madrinha optamos por ficar lá.
Como foi o período de adaptação à nova escola?
Tem sido muito bom, aprendi muito, sinto falta demais, das pessoas, meus amigos eu não sabia como seria o ambiente de outra escola. Nas primeiras semanas até estranhei o fato de não precisar ficar trocando toda hora de sala, sair de uma garagem para ir para o recreio e voltar, tinha uma estrutura que eu já nem estava mais acostumado. A Engenheiro Caldas me acolheu de uma forma muito boa, os professores me ajudam bastante, ano que vem quero participar da Olimpíada de Língua Portuguesa e eles me vão me oferecer este apoio. Mas, sem dúvidas foi a Monsenhor Rocha que me fez chegar até aqui, me mostrou como caminhar, quem me fez ter esse gosto. Sou muito feliz por isso.
Você visita sua família frequentemente?
Venho muito pouco, pelo menos umas três vezes por mês, só no final de semana. Agora tenho vindo um pouquinho menos, minha mãe fica assim: ‘Cê tá me largando’ (risos). Mas, é necessário, escolhi o curso mais difícil, com maior número de alunos por vaga, então é bem complicado. Isso exige de mim certa disciplina, tenho que ficar mais tempo estudando, dividir meu tempo melhor e acabo vindo aqui bem pouquinho, fico morrendo de saudades do Davi. Meus pais entendem né, mas o Davi, a minha vó, é bem difícil pra mim. Lembro que quando eu mudei ficava falando pra minha mãe: ‘Mas, se ele se esquecer de mim?’. Eu pensei várias vezes em voltar, tanto por questão da moradia, estar sozinho e ficar longe da minha família é muito difícil, sempre fui muito agarrado, é muito importante. Por meus pais precisarem de levar meu irmão muitas vezes para longe para fazer tratamento, ficar internado, minha mãe saía com ele quase todos os dias para fazer Apae, eu fiquei bastante sozinho, mas não deixei de gostar. Então, estava sempre aqui na roça, perto da minha família e essa saída me machucou bastante. Pelo Davi é muito complicado, às vezes converso com ele por telefone, escuto ele rindo, me dá uma saudade, uma vontade de voltar (risos). Quem convive comigo, meus amigos em Caratinga, sabem que de vez em quando alguém me questiona de eu ter um irmão, só de começar a falar eu já choro. Mas, é porque ele é importante demais pra mim. Tudo que eu planejo para minha vida, que eu quero fazer e já fiz até agora, é por ele. Pelo convívio que tive com ele, ele moldou a minha forma de pensar, toda experiência que tive aqui dentro de casa com o Davi me fez ser diferente na vida.
O que a literatura representa na sua vida?
A literatura representa para mim uma válvula de escape. É o que me fazia conseguir fugir às vezes dos problemas, era a minha companhia quando eu tinha que ficar sozinho. Foi um mundo novo que eu descobri para fugir dos problemas do nosso mundo, dessa realidade da dificuldade financeira, era preconceito que tínhamos que enfrentar. E a literatura me abraçou, pegava um livro e esquecia daquilo que estava vivendo, me envolvia somente com os desafios do personagem principal, com a história que era contada ali, mesmo assim, sem nunca perder a minha realidade. Fechava o livro e voltava para a minha vida e nunca pensei que queria viver só aquilo, soube manter essa distância, não me entreguei somente aos livros. Mesmo com todos os desafios ter encontrado essa porta na literatura é um orgulho muito grande, porque tem muita gente que se desvia, acaba passando por caminhos que no futuro vão trazer muitos problemas. A literatura só me fez bem, foram várias conquistas que me orgulham muito, na escrita principalmente. Deixei só de me envolver com o que as pessoas escreviam, para começar a colocar os meus pensamentos no papel e viver aquilo de uma forma mais intensa. Pegava um papel e uma caneta e me via ali, cada verso era uma partezinha de mim. Isso também me faz muito feliz.
O que você ainda deseja escrever, mas ainda não teve oportunidade?
Eu tenho muita vontade de escrever um romance Young Adult, que é um gênero para jovens e adultos, me agrada muito. Mas, gosto muito de livros históricos, então, ainda tenho muita vontade de escrever um conto ou crônica ambientada no Brasil Imperial ou na Segunda Guerra Mundial. Até agora fiquei muito em conto e crônica, quero expandir um pouco mais.
Quais são suas inspirações na hora de escrever?
Gosto muito de Guimarães Rosa, os textos dele são muito complexos, mas gosto muito; o meu favorito dele até agora se chama ‘A Terceira Margem do Rio’, toda hora que pego um texto dele ou esse texto mesmo, vejo como a literatura tem caminhos para várias interpretações, formas de viver. Não sei nem explicar, é algo simplesmente fantástico. No gênero para jovens e adultos, Pam Gonçalves, John Green, James Patterson, Hélio Jaques e tem alguns autores nacionais que me inspiro muito, Patrícia Baikal, Amanda Reznor e Fabi Zambelli que me inspiram a forma que eles conseguiram escrever os livros deles. Quero seguir esse caminho sem deixar o que eu gosto de relatar. O que me inspira muito a inscrever são coisas do cotidiano mesmo, por isso me encontro muito na crônica, às veze são detalhezinhos, uma florzinha que vejo na rua me dá vontade de escrever, uma criança abraçando o pai, uma rotinazinha de casa com meu irmão como foi o que escrevi na Antologia Fantásticos. São os pequenos detalhes do dia a dia, acho que por isso ainda não iniciei um livro, porque gosto muito dessas coisas pequenas. Escrever uma história de às vezes 100 ou 150 páginas ainda é um desafio para mim. Acho que é o meu estilo, por enquanto é ali que me encontro.
Você foi escolhido destaque da Literatura pelo DIÁRIO. Como foi receber este reconhecimento?
Fiquei muito feliz. Quando abri a mensagem, fui correndo atrás do jornal, ver a minha foto ali e ainda falava que quem ganhou no anterior foi o professor Eugênio Maria Gomes, fiquei muito satisfeito, porque estou começando agora, ainda sou muito pequeno. Literatura é algo tão grande, tantas pessoas já fizeram coisas imensas, principalmente na região de Caratinga temos grandes escritores, e sou pequenininho, cheguei agora, só faço o que ainda me sinto livre para escrever. Sobre minhas experiências, tenho poucas, tenho 16 anos, não conheço muitos lugares, sou bem simples e já chegar em um nível desses. Ser destaque do ano do DIÁRIO DE CARATINGA em Literatura para mim foi uma das melhores coisas de 2018, com certeza.
Quais são seus planos para 2019?
Quero muito começar o meu livro, já tenho roteiro, mas para isso preciso estudar muito, ele é ambientado em uma data histórica. Quero publicar mais contos e crônicas no DIÁRIO, quem sabe participar de mais uma antologia. Me senti muito feliz em participar de Fantásticos, pela parte inclusiva, então quero fazer algo parecido ano que vem. Quero que as pessoas reflitam mais sobre acessibilidade, dignidade e inclusão, principalmente. Quero ir por esse caminho, esse é o meu foco, retratar mais um pouco da minha experiência com meu irmão, o que as pessoas com as necessidades especiais passam. E ingressar na faculdade de Medicina.