*José Geraldo Batista
Sabe-se que a relação entre literatura e religião é latente, porém esta é uma questão pouco explorada do ponto de vista científico. Alguns escritores deixam transparecer o aspecto religioso mais claramente em seus escritos, mas outros são mais sutis, e só um olhar e uma análise mais profunda trazem à baila estas manifestações do religioso em suas obras.
Neste último caso pode-se incluir Machado de Assis, cuja obra apresenta uma sociologia apurada, deixando-se influenciar pelo fenômeno religioso de forma bem disfarçada. Esse disfarce vem ocupar o primeiro plano da narrativa, de forma que um leitor desatento faz apenas uma leitura superficial, deixando para trás preciosidades que não consegue perceber.
Em Memorial de Aires e Esaú e Jacó, pode-se encontrar vários traços autobiográficos de Machado de Assis, e isso a crítica já apontou várias vezes. Fica evidente a temática abordada nos dois romances: a preocupação com a velhice. Preparar-se para ficar velho e enfrentar a morte, em Machado, passa a ser quase um ritual, que tem seu ápice em Memorial de Aires. Durante o desenrolar das duas narrativas observa-se que o aspecto religioso impõe uma certa conduta moral aos personagens, portanto influencia no comportamento social. Esse é um outro aspecto das duas obras de Machado de Assis.
Ao se fazer a leitura dessas obras do “bruxo do Cosme Velho”, o ideal é que se parta de um método fenomenológico, isto é, despir a narrativa de todos elementos que não sejam caracteristicamente religiosos e sociológicos, e, só então, analisar o fenômeno essencialmente do religioso. As significações estão implícitas, ocultas nos textos machadianos e, a exemplo de Henry James, pode-se analisá-los. Como Wolfgang Iser, em O ato da leitura, afirmou: “estamos falando da interpretação teórica da literatura que busca as significações aparentemente ocultas nos textos literários. Se o próprio Henry James tematiza a procura por significações ocultas do texto, em uma antecipação por certo não consciente dos futuros modos de interpretação (…).”
Para que se possa chegar à manifestação da essência religiosa nos dois romances de Machado, a fenomenologia, ciência que tem sido requisitada de forma mais assídua nos últimos tempos, serve como ponto de referência e propedêutico nas investigações. A epoché husserliana tem como empreitada auxiliar na descoberta e no descortinar dos fenômenos das narrativas. A observação de Luís Dreher, em A essência manifesta – sobre o texto de Rodrigo Toledo França –, aqui, é pertinente e dos dois autores pode-se lançar mão para melhores esclarecimentos acerca da relação entre religiosidade e literatura: Em “A Fenomenologia da Religião de Rudolf Otto: Uma Vereda Para os Estudos de Religião e Literatura”, Rodrigo Toledo França traz-nos, de maneira relativamente inovadora, a perspectiva dos estudos literários e da fenomenologia da religião, no caso a de Rudolf Otto. Para o autor, esta abordagem poderia ser vantajosa inclusive enquanto modelo mais geral para explorar as várias relações entre literatura e religião, ainda que sua análise se restrinja a trechos significativos da obra de João Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas”.
A obra machadiana é muito visada em termos de críticas e análises. Por ser um autor de dimensões universais, Machado tem sido alvo de muitos estudiosos, recorrentemente tem-se encontrado resíduos de exclusividade religiosa em sua obra e isso é algo que ainda precisa ser mais aprofundado. Se Machado, por um lado, em seus escritos, aborda muito a sociedade localista brasileira, por outro, no desvendar psicológico de seus personagens, atinge o universal do ser humano: rompe fronteiras, busca alteridade.
Em Esaú e Jacó, o título é clássico. A relação desse com a narrativa bíblica é evidente; agora, se é exaltador ou pejorativo é algo que deverá ser pesquisado com muita minúcia. Logo no primeiro capítulo dessa obra, o narrador tece um comentário que, se for estudado com afinco, rende uma boa quantidade de páginas. O comentário tem um quê de cinismo, deixa transparecer uma certa parcela da malícia cuja interpretação pode enveredar por caminhos de crítica dos costumes sociais-religiosos: “Natividade deu o nome de batismo somente, Maria, como um véu mais espesso que o que trazia no rosto, e recebeu um cartão – porque a consulta era só de uma –, com número 1012. Não há que pasmar do algarismo: a freguesia era numerosa, e vinha de muitos meses. Também não há que dizer do costume, que é velho e velhíssimo (…)”.
O trecho acima trata do episódio da visita de Natividade e Perpétua a cabocla Bárbara, vidente da narrativa. Apenas nesse pequeno trecho, já se tem material suficiente para uma discussão do ponto de vista sociológico e religioso. Natividade quer cobrir-se para não ser identificada: não ficava bem para uma pessoa de bem fazer uma consulta a uma vidente. O narrador usa o termo freguesia: está se referindo a um comércio de vidências; e aqui deixa escapulir sua opinião acerca do assunto. O narrador informa o numeral 1012 e diz ao leitor que não se pasme, pois o costume de consultar vidente é velho: usa ironicamente o termo velhíssimo. Bem, está problematizada a questão. A crítica sociológica-religiosa no texto de Machado veio à baila; então clareou, aqui, a relação entre sociologia, religião e literatura no texto machadiano.
No romance Memorial de Aires, no capítulo 25 de janeiro de 1888, durante a descrição e narrativa de uma festa de bodas de prata na casa dos Aguiares, percebe-se uma justificativa para uma infelicidade na vida. Tal justificativa é localizada no Divino: “(…) um dos convivas – sempre há indiscretos –, no brinde que lhes fez aludiu à falta de filhos, dizendo ‘que Deus lhos negara para que eles se amassem melhor entre si’”. Como se pode observar, nesse trecho, é evidenciada a tentativa de uma explicação para o fato de o casal Aguiar não ter conseguido ter filhos. E a única explicação encontrada de forma consoladora é uma intenção divina. São desses aspectos que precisamos nos ocupar, tentando fazer emergir da narrativa machadiana os traços religiosos.
Bem, sabe-se que diversas interpretações da religiosidade se multiplicam na tentativa de uma definição, porém, como palavra final e determinadora nenhuma se inscreve. A toda conceituação a religiosidade se escapa. Ela não se resume apenas ao conceito de religião. Assim, sugiro que a questão da religiosidade nos romances Esaú e Jacó e Memorial de Aires, de Machado de Assis, seja merecedora de muita atenção com o intuito de verificar as contribuições do discurso literário machadiano para a ampliação do horizonte religioso e da compreensão humana. Do ponto de vista hermenêutico pode-se dizer que há a necessidade de uma leitura que desmascare os textos machadianos e faça com que eles revelem o que neles há de sociológico e religioso.
De acordo com Creuza Capalbo, P. Ricoeur afirma que há dois tipos de hermenêutica. E aqui, deve-se fazer uso das explicações de C. Capalbo para que fique clara a concepção da leitura que sugiro: “A hermenêutica será compreendida com uma desmistificação, como uma redução de ilusões. Ela será uma interpretação redutora e destruidora. A destruição seria o momento necessário para se dar a nova fundação, na qual eu interpreto, decifro as expressões. Teríamos, assim, uma ciência mediata do sentido, uma visão do problema epistemológico numa perspectiva nova, pois ele deveria retirar as ilusões, as alienações, ele se definiria por uma tática de ação, tendo por base a suspeição, a luta contra os mascaramentos”. Nessa perspectiva, delimita-se, assim, o ponto de maior enfoque de leitura dos dois romances de Machado de Assis que foram citados: o de trazer para a superfície do texto do escritor/mago a mensagem escondida, contudo latente.
Há uma convicção, caríssimos leitores, de que uma leitura como a que propus venha contribuir para ampliar o debate sobre Religião e Literatura, levantando questões e, na medida do possível, propondo novas ideias. Espera-se que novos horizontes de compreensão sejam alargados e confirmem que Machado de Assis soube romper fronteiras e criar uma obra sempre aberta a novas indagações. Tudo isso porque precisamos compreender o papel do discurso literário de Machado de Assis como elemento de alargamento do horizonte religioso e da compreensão humana.
*José Geraldo Batista é Professor Titular do Centro Universitário de Caratinga – UNEC, membro da ACL – Academia Caratinguense de Letras e colaborador no NUDOC – Núcleo de Documentações e Estudos Históricos. E-mail: [email protected] Mais informações sobre o autor: http://lattes.cnpq.br/4880280760796122.