
Serge comprou um armário para usar como estúdio de rádio, assim evita o barulho. Conectado ao computador, ele permite entradas ao vivo com excelente qualidade, como se estivesse no estúdio do Canadá
Correspondente canadense esteve na região e fez reportagem sobre os casos de febre amarela. Ele ainda fala de suas impressões sobre o Brasil e dos rumos da imprensa
DA REDAÇÃO – Na tarde do dia 20 de março, uma ligação telefônica chamou atenção da redação do DIÁRIO. Do outro lado da linha, uma voz carregada de sotaque francês. “Olá, meu nome é Serge, ‘Sérgio’ para vocês brasileiros. Sou franco-canadense, vou fazer uma matéria sobre a febre amarela para a La Presse, vocês poderiam me dar algumas informações?”. No dia seguinte, ele esteve na região, foi até Piedade de Caratinga e fez o seu trabalho, que foi publicado nesta última semana. Durante essa breve estada, manteve outros contatos com a redação e novamente agradeceu a nossa colaboração.

Matéria sobre febre amarela foi publicada no site da La Presse. Correspondente Serge Boire esteve em Piedade de Caratinga
No decorrer daquela semana, falamos com Serge Boire e solicitamos uma entrevista, que foi prontamente atendida. Afinal não poderíamos perder a oportunidade de conversar com um correspondente estrangeiro e saber de suas impressões sobre a região, que inclusive já foi tema de reportagem da La Presse. A notícia em questão é insólita e trágica, pois no dia 11 de julho de 2013 um morador de Caratinga morreu depois que uma vaca desceu de um morro e pisou sobre o telhado de sua casa, que era feito de amianto. Por ser frágil, o teto cedeu e a vaca caiu sobre ele, que estava deitado na cama. A vítima chegou a ser socorrida com vida, mas não resistiu aos graves ferimentos. A La Presse assim noticiou “Brésil: un homme meurt écrasé sous une vache” (Brasil: um homem morre esmagado por uma vaca). A reportagem foi feita por François Van Hoenacker, a partir de informações de agências.
O CORRESPONDENTE
Serge Boire nasceu na cidade de Montreal, em junho de 1973. Em 1996, um ano antes ser diplomado em jornalismo, foi contratado para uma rede regional de televisão da província do Quebec. Diplomado, foi admitido pela rede de televisão e de rádio pública Ici Radio-Canada, que tem como meta, além do noticiário obviamente, promover a cultura e o idioma francês aos franco-canadenses.
Em seguida, durante seis anos, foi correspondente e apresentador de notícias em várias cidades de idioma francês da parte oeste do país: Regina, Saskatoon, Calgary, Edmonton e Vancouver. Depois, voltou para Montreal, na sede da Radio-Canada, onde trabalhou durante um ano.
Trabalhou depois para a Rede TVA como jornalista investigativo por três anos. Após esse período, usou sua experiência para a produção de documentários sobre grandes tragédias que aconteceram no Canadá ao longo dos anos. Em 2010, querendo concretizar o seu sonho de ser correspondente internacional, se mudou para Rio de Janeiro e passou a fazer o trabalho de cinegrafista para, sozinho, produzir matérias de TV. Ele também faz matérias de rádio e escreve artigos de jornais para várias mídias canadenses. Os seus principais clientes são o jornal La Presse, a Rede de Televisão e Rádio Ici Radio-Canada, as rádios 98,5FM (Montreal) e FM93 (Québec).
Acostumado com a ‘vida carioca’, ri quando brincam que sua aparência lembra Chris Martin, vocalista e tecladista da banda Coldplay. “Falam isso (risos), mas confesso que não gosto desse grupo”. Na seara do rock está mais para U2. No pop, cita Adele, Lady Gaga e Madonna. Ele também gosta de Celine Dion. “Não posso deixar de fora essa cantora pelo orgulho de ser franco-canadense”, conta, ressaltando suas origens. Dos artistas nacionais, seu preferido é Tim Maia, pai do soul brasileiro, que fez um “Que Beleza” em sua cabeça.
A ENTREVISTA
Na última segunda-feira (27) fizemos a entrevista, por telefone, com Serge Boire. Foi uma conversa agradável, onde ele falou de sua impressão sobre a região de Caratinga, de sua vida no Brasil e ainda abordou temas como os rumos da imprensa.
Na parte informal da conversa, que não é reproduzida nessa entrevista, falamos com que um pessoa ficou sabendo que entrevistaríamos um jornalista canadense e pediu para perguntar se a banda Rush realmente goza do mesmo culto que tem no Brasil. “Podem avisá-lo que sim, mas parece que no Brasil tem muita gente que gosta mesmo é de outro artista canadense, o Justin Bieber (risos)”.
No início desse ano, regiões de Minas Gerais registraram focos de febre amarela. Para muitos essa doença estaria sob controle. Essa notícia repercutiu no Canadá?
Na verdade ainda não repercutiu. Recentemente estive por cinco meses no Canadá, que é algo raro, geralmente passo apenas um mês. Voltei para o Rio de Janeiro no dia 24 de fevereiro e não ouvi falar absolutamente nada sobre febre amarela. Eu, como jornalista, sabia que alguma coisa séria estava acontecendo, mas não repercutiu no Canadá. As agências de notícias mandam coisas que talvez chamem atenção, mas eu acho que não tem nada melhor do que uma pessoa estar realmente no local e poder avisar. Isso que eu fiz sobre a febre amarela. Eu voltei e vi que estava piorando a cada semana e avisei a La Presse sobre a situação.
Posso dizer que depois das Olimpíadas e isso acontece em todas as cidades que sediaram esse tipo de evento, infelizmente os correspondentes internacionais deixam esses locais. Nos últimos anos, com a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, tínhamos bastantes notícias sobre o Brasil na imprensa internacional, pois muitos correspondentes se mudaram para o Brasil a partir de 2012. Pessoalmente percebi que poucos correspondentes ficaram, pois por aqui a festa acabou. Também tem esse problema que as mídias ouviram tantas coisas sobre o Brasil e desde outubro do ano passado não tem mais esse interesse pelo país. Agora as duas coisas que são graves é a questão da febre amarela e o escândalo da Carne Fraca.
O senhor esteve em Piedade de Caratinga para fazer uma matéria sobre vítimas da febre amarela. Como foi a receptividade e qual a impressão que o senhor leva de nossa região?
Impressão muito, muito positiva. Essa não foi a primeira vez que estive em Minas Gerais. Eu posso dizer isso e espero que o resto do país não leia, mas os mineiros são minhas pessoas favoritas (risos). Isso é verdade. São pessoas muito simpáticas, agradáveis. Em Piedade de Caratinga eu tive que quase almoçar em cada casa que eu fui. E você não pode falar um ‘não’, que é quase uma ofensa. Então comi bastante. Visitei três famílias que perderam parentes que morreram de febre amarela. Você entra na casa dessas pessoas para falar de um assunto que é emocionante, que não é agradável, mesmo assim os mineiros são abertos, a recepção foi muito boa. Resumindo, ‘senta aqui e vamos comer’ (risos). Então mais uma vez fiquei impressionado, a primeira vez que estive em Minas Gerais, foi em Belo Horizonte, encontrei pessoas num supermercado, uma mulher começou a falar comigo. Sou gringo, tenho sotaque e ela me convidou para jantar. Os mineiros são assim.
O senhor chegou ao Brasil em 2010. Qual a imagem que tinha do país antes de vir para cá?
Confesso que tinha a mesma imagem que a maioria das pessoas tem: carnaval, futebol, Rio de Janeiro, a ‘cidade do pega’. Fora do Brasil a maioria das pessoas pensa no Rio de Janeiro, porque é a cidade mais conhecida. As imagens que chegam, pelo menos no Canadá, são essas. Claro que depois mudou essa imagem. Comemorei seis anos de Brasil em dezembro passado
Foi fácil sua adaptação ao Rio de Janeiro?
Foi. Eu desenvolvi fascinação pelo Brasil na minha adolescência. O meu sonho era ser correspondente, não digo especificamente no Brasil. Após 15 anos de carreira no Canadá, vi que a televisão onde estava trabalhando eu não fazia planos do chefe para ser enviado como correspondente. Aí pensei, ‘se eu não consigo fazer isso nessa empresa, vou pedir demissão e fazer isso do meu próprio jeito’. Aconteceu que em outubro de 2010 que a Rádio Canadá tinha um escritório aqui no Rio de Janeiro, mas fechou em um mês. Cheguei ao Brasil com minhas malas, uma câmera e um tripé, e vi que aquele era o momento. Só que quando cheguei não falava uma palavra sequer em português. Ao alugar um quarto, no meu pensamento canadense, achei que ele estaria mobiliado, mas ao ter contado com o locador do imóvel, o cara falava um pouco de inglês e francês, abriu a porta do quarto e só tinha o chão e a janela (risos). Se adaptação foi fácil, no início não, tinha a barreira do idioma, só que o povo brasileiro é bastante similar ao povo franco-canadense. As pessoas do idioma francês são latinas também. Leciono francês e todos os meus alunos que agora estão na parte francesa do Canadá me falam a mesma coisa, ou seja, a adaptação lá está sendo fácil.
Ao longo deste período no Brasil, parece que o senhor já passou por alguns sustos. E um deles refere-se a um assalto onde um dos autores era um menino de rua que o senhor ajudava. Depois disso pensou em se mudar do Brasil?
Claro, mas as pessoas daqui não entendem, porém eu não vejo o problema da criminalidade da mesma forma que as autoridades, as pessoas ricas e a nova classe média veem. Geralmente falam que quando são assaltados é por falta de policiamento e que essas pessoas deveriam ser mortas ou colocadas na cadeia. Eu vejo um problema maior do que isso, que é a falta de Educação e Saúde pública de qualidade, além de chance para todo mundo. Na minha terra, em 1959, graças a Deus tivemos um político que resolveu, pois era igualzinho aqui. Em 1959 os franco-canadenses eram os pobres, os negros. Trabalhavam numa espécie de escravidão e os ingleses eram os exemplos. Então esse político franco-canadense decidiu que se o povo queria, o povo iria mudar isso. Em 15 anos criamos um sistema de educação e de saúde de qualidade e de graça para todo mundo. Atualmente o Canadá é um dos melhores lugares do mundo para se viver. Isso aconteceu porque juntos mudamos essa situação.
Eu fui vítima desse morador de rua, já me deram ‘boa noite Cinderela’ num outro assalto, mas atrás da criminalidade tem um problema social. Se essas pessoas tivessem acesso a uma educação de qualidade teriam as mesmas chances. Sabe quantas pessoas são assassinadas em Montreal por ano? Entre 20 a 25 pessoas. Se chegar a 30, as pessoas começam a reclamar que tem problema de criminalidade. Mas lá tem educação, assistência social, todo mundo vai ao mesmo hospital público e todos frequentam as mesmas escolas. Chances iguais para todos independente se você nasceu numa familia rica ou pobre. Quando eu fui assaltado, o menino que me assaltou era drogado, eu vi nos olhos dele. Era a pessoa que eu dei comida todos os dias e foi ela que me assaltou. Como lhe disse, eu vi que estava drogado, mas vi que ele me reconheceu. Ele estava junto de outros cinco caras e todos drogados com crack. Mas vi nos seus olhos que ele não queria me assaltar. Tudo isso para falar que não gostei, fiquei muito triste, mas acho que essas crianças e adolescentes tem uma responsabilidade, mas não são responsáveis por tudo. Se eles tivessem acesso a um sistema de boa educação, com chances de acesso ao mercado do trabalho, você acha que eles morariam na rua, assaltando pessoas para comer e comprar drogas que os permitem esquecer que eles são condenados a ficar na rua para sempre? Quem vai contratá-los sendo que eles nem conseguem tirar a carteira de trabalho ? Esse é um grande problema da sociedade e não perece haver alguém que queira resolvê-lo.
Quando o senhor fez contato conosco e pediu informações sobre a questão da febre amarela em nossa região, ao se apresentar, disse que era da ‘parte francesa’ do Canadá. Assim como acontece no Brasil, existe certa rivalidade entre as regiões canadenses?
Sim. As diferenças são enormes. O Canadá foi descoberto em 1534 pela França e foi um território francês por mais de 200 anos. Para se ter ideia, quase a metade dos Estados Unidos na época era território francês. No meio da noite os britânicos chegaram na cidade de Quebec e nós fomos acordados por um número três vezes maior de soldados do que tínhamos. E essa guerra foi perdida em uma hora e meia. Não tinha como se organizar, pois todos estavam dormindo. Até 1960, os ingleses tentaram de tudo para acabar com a cultura francesa. E isso se deu de vários jeitos, como por exemplo, foi ilegal ser católico e falar francês. Houve uma época que se você não fosse protestante e falasse inglês, não tinha acesso a emprego. Historicamente os francófonos não se esqueceram disso e é por isso que essa parte do Canadá, que se chama Quebec, está tentando se separar e criar o próprio país. Já houve dois referendos. Nos últimos 15 anos as coisas estão mais tranquilas, só que não tem entendimento por parte dos ingleses porque uma parte do povo quebequense quer se separar. A maioria das pessoas não sabe que a constituição canadense, quando foi repatriada de Londres em 1982, todas as províncias assinaram como fazem parte do Canadá, mas Quebec não assinou porque tinha duas condições: Nos deem a certeza de que nunca vão fazer algo para acabar com a língua e a cultura. Nós precisamos de duas coisas na constituição e os ingleses não queriam fazê-las. Até hoje tecnicamente Quebec não faz parte do Canadá porque não assinou a constituição. Os ingleses não entendem as diferenças culturais e de idioma. O Canadá é um país bilíngue, mas você acha que os ingleses aprendem francês? Claro que não! Por isso faço questão de falar de onde eu sou. Falo com esse sotaque e a maioria não sabe que mais de dez milhões de pessoas falam francês no Canadá, numa população total de 35 milhões. Oito milhões falam francês em Quebec.
O senhor já participou de programas como o ‘Clube dos Correspondentes’, exibido pela Globo News. O brasileiro gosta de saber o que o estrangeiro pensa ao seu respeito?
Sim. Realmente não sei por que se preocupam com isso. Em minha opinião, o brasileiro, não generalizando, ainda tem o problema de confiança. Às vezes acham o que o gringo pensa a seu respeito é mais válido.
Poderia nos contar como é trabalhar para uma empresa como a La Presse, já que é tradicionalíssima e sua fundação data de 1884.
Muito bom. Trabalhei muito anos para Rede Rádio Canadá, que também engloba televisão. Fui correspondente da La Presse, hoje sou freelance. Vale ressaltar que a crise das mídias chegou ao Canadá e ainda não chegou ao Brasil, mas infelizmente vai chegar. Quando fecharam o escritório da La Presse no Brasil em 2014 por causa dessa crise das mídias, tinha a opção de voltar para o Canadá, mas preferi ficar aqui. Como disse, trabalho como freelance para a La Presse, mas também para a Rádio Canadá e outras imprensas.
Mas falando sobre a La Presse, é um jornal que acompanha o povo franco-canadense há muito tempo. E o mais legal é que ainda é o único veículo que acabou com a versão impressa. Tudo é on-line. Essa empresa investiu quase U$ 40 milhões para criar seu próprio aplicativo no tablet. É a única no mundo que dá o jornal de graça. Se você tem o tablet, pode baixar o jornal todos os dias. A La Presse está apresentando um novo modelo onde é dada a informação. Hoje em dia, a pessoa com conexão de internet vai querer comprar um jornal? A filosofa da La Presse é que nessa informação vai a publicidade. La Presse faz parte do clube dos grandes jornais do mundo, assim como New York Times ou Le Monde. O jornal canadense de idioma inglês que é muito conhecido é o Globe and Mail. No início disseram que era coisa de maluco, mas faz quatro anos que a La Presse adotou esse modelo e os outros estão começando a segui-lo. A La Presse é um grupo de mídia à frente dos outros.
Agora é o momento de pensar essa situação, porque tem muito jornais que fecharam porque não acharam uma solução e a encontrada pela La Presse é ótima. Não sei qual a situação do jornal de vocês, mas isso aconteceu com O Globo em relação ao número de leitores. A La Presse perdeu uma parte do público que comprava ou recebia o jornal em casa. O preço do papel fica sempre mais caro e o preço da impressão e da distribuição também. Isso se deu a partir do momento em que as notícias estão na internet. Então não tem como pagar por algo que é de graça. Hoje vivemos uma nova etapa das mídias. No Brasil eu não vi muitas mudanças até agora. Mas estava conversando com um colega e falei que quando chegar ao Brasil essa crise, ela vai ser dura. Hoje temos outras realidades, como Facebook. O dinheiro que foi investido pelas empresas em publicidade na América do Norte e na Europa era em jornais, mas agora investem no Google e no Facebook. Os recursos dos jornais caíram de quase 50%! Isso é muita coisa.
Para finalizar, qual a impressão que o senhor tem do brasileiro?
Eu tenho uma impressão muito boa do brasileiro. Apesar da crise, são calorosos, simpáticos e sabem como aproveitar a vida. Todos os dias, quando eu vou ao mercado, observo a vida no meu bairro, um sorriso aparece na minha cara e eu não me arrependo de ter escolhido o Brasil para morar. Agora, nada é perfeito. Aqui no Rio, não sei se é do brasileiro, mas é típica de muitos cariocas a coisa do ‘depois eu faço’. Esse negócio de atrasar e colocar as coisas para amanhã é algo que eu ainda tenho problema de me adaptar. Mas eu coloco isso na coluna das diferenças culturais e eu tento enfrentar com sorriso, fazendo piadas com isso.