A professora e escritora caratinguense Mírian Gomes de Freitas publica o estudo onde traça perfil das distintas identidades de um dos mais peculiares autores brasileiros
DA REDAÇÃO – O ano de 1987 parece hoje uma galáxia distante. E em 25 de março daquele ano, o antológico texto “A mais justa das saias”, de Caio Fernando Abreu, era publicado n’O Estado de S. Paulo. Noutro ponto dessa galáxia e nesse mesmo ano, em Caratinga, Mírian Gomes de Freitas ganhava de presente de aniversário de seu pai, o senhor José Basílio, algo que lhe daria a oportunidade de dar vazão aos seus sentimentos. O presente foi uma máquina de escrever Olivetti; em seguida, veio uma escrivaninha. Passados 34 anos, no tempo presente, Mírian Gomes de Freitas é professora, escritora e poetisa. Agora ela acaba de lançar um trabalho que lhe consumiu sete anos de pesquisa, trata-se do livro Caio Fernando Abreu: uma poética da alteridade e da identidade (Editora CVR). O título, autoexplicativo, aborda as distintas faces do escritor gaúcho que morreu em 25 de fevereiro de 1996.
CAIO F.
Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, dia 12 de setembro de 1948. Ele foi um escritor, dramaturgo e jornalista, considerado um dos maiores contistas do país. Dono de uma obra atemporal, Caio foi agraciado três vezes pelo “Prêmio Jabuti de Literatura”, mais importante prêmio literário do Brasil.
Interessante observar que as redes sociais deram vida nova ao trabalho de Caio F. Algo que poderia solapar a complexidade de sua obra, tornou-se fundamental para que uma nova geração conhecesse e venerasse sua obra.
Em entrevista para o jornal El País, na matéria ‘Caio Fernando Abreu é jovem como sempre, relevante como nunca’, a editora Alice Sant’Anna, responsável pela publicação de seus contos na Companhia das Letras, disse que “Caio é muito visceral, fala da angústia, do medo, do desespero”. “Ao longo dos anos, essa característica o marcou entre os leitores jovens. O contexto mudou, mas não a sua forma de falar a partir da contracultura. Ele continua sendo muito atual”, complementa.
Seu livro mais famoso, Morangos Mofados (1982 – Companhia da Letras), assim foi definido por Bianca Camargo de Lima, em artigo publicado na Revista Avessa em 17 de setembro de 20116: “O desejo de consideração do outro, de afeto, de atenção, de amor, em suma, traz a sensação de vazio interno. A procura eterna e insaciável em ter as vontades atendidas pode gerar mais dor do que compensação. Como visto nos contos dessa primeira parte, em especial “Terça-feira gorda”, o amor sem rótulos não será totalmente apreciado enquanto outros continuarem a enquadrá-lo e a desdenhá-lo. A questão não passa pela vontade de aceitação social. O problema consiste na intimidação e repressão violentas que a sociedade pratica. O mofo cobre e estraga aquilo que um dia já foi belo e apetitoso”.
MÍRIAN GOMES DE FREITAS
Mírian Gomes de Freitas é doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), foi professora da Framingham Public Schools, Massachusetts, EUA. Atualmente faz parte do corpo docente do IFSUDESTE, Juiz de Fora. Publicou o livro de contos Intimidade vasculhada (2006 – contos – Editora 7 Letras/Imprimatur) e os poemas de Exílios, naufrágios & outras passagens (2016 – poesia – Editora Patuá). Possui publicações em veículos de literatura impressos e digitais como Revista CULT, Mallarmargens, Acrobata, Ruído Manifesto, Palavra Comum, Diversos Afins, Reu4leituras e outros.
Ela fala da ligação com sua terra-natal. “Sou caratinguense e minha relação com a cidade sempre foi afetiva, por ter sido o lugar onde nasci e cresci. A minha trajetória de vida foi iniciada e, em grande parte, construída em Caratinga. Além dos familiares, há também os amigos queridos que ainda moram na cidade. É como diz estes versos da canção “Terra”, de Caetano Veloso: “por mais distante, o errante navegante/ Quem jamais te esqueceria?”. Guimarães Rosa, que disse sobre Cordisburgo, “… só quase lugar, mas tão de repente bonita…”, aprovaria tal definição.
Uma das citações mais famosas de Caio F. é: “Para toda angustiante interrogação, existe uma inesperada exclamação. Para toda vírgula que não te deixa ir adiante, existe um ponto final. Para toda reticência que dói para sempre, existe um novo parágrafo”. Sendo assim, Mírian Gomes de Freitas acaba de nos presentear com um belo e intenso ‘parágrafo’ sobre a obra de um escritor, que é descoberto e redescoberto a cada dia.
A ENTREVISTA
Por que escolheu analisar a obra de Caio Fernando Abreu?
O que me chamou muito a atenção na obra do Caio F. foi a experiência do autoexílio e o espírito nômade que ele possuía e que também está tão bem representado em muitas de suas personagens. Eu, que também vivi o autoexílio, senti-me atraída em conhecer de perto, as experiências pessoais dele. Isto, que, em um primeiro momento, fizeram-me elegê-lo como objeto de estudo no curso de doutorado em literatura comparada da UFF. Na verdade, senti que o que me conectava a esse gaúcho era justamente o nomadismo e este espírito irreverente e ousado de suas vivências. Caio F. não era do tipo que vivia em uma “caixa de fósforos”. Sua vida era intensa, cheia de altos e baixos como qualquer uma, mas era uma vida incomum em muitos aspectos, sem pertencimentos, sem definições. O Caio era sua própria obra, o que ele vivenciava estava lá nos livros dele. Portanto, essa conexão e afinidade com o autor e sua obra foram fundamentais para esta escolha. Em um segundo momento, eu achei que deveria, com zelo e compromisso, dimensionar e desdobrar os estudos sobre a obra dele. O aspecto insólito e inacabado de suas narrativas e da própria linguagem, estilo muito parecido com o de Clarice Lispector que tanto me apetece (tema de minha pesquisa no mestrado), tudo isso me influenciou muito na decisão de optar em analisar a obra literária do Caio.
Quanto tempo durou a pesquisa para este livro e como se deu a escolha das fotos?
Foram quatro anos e meio para escrever tudo e mais dois e meio para selecionar as imagens, organizar o livro, contatar fotógrafos, a família do autor, os responsáveis pelos arquivos do espaço de documentação DELFOS PUCRS e a agência Riff que gerencia os direitos autorais do autor. A escolha das fotos foi direcionada à trajetória de vida dele, desde a infância até os últimos dias antes de sua morte. Todas as imagens estão contextualizadas na obra, ilustrando-a.
Os trabalhos de Caio Fernando Abreu foram quase todos publicadas durante o regime militar. Como a repressão e censura influenciaram a obra deste escritor?
R: Este assunto é um dos temas desta pesquisa realizada por mim, registrados em dois momentos: “O biógrafo das emoções pós-modernas e “Ditadura militar e contracultura: formação das identidades”. As obras que foram publicadas nos anos 60 e 70 foram definitivamente muito marcadas pela repressão do golpe militar. Muitos de seus contos escritos naquela época foram censurados e, portanto, não saíram da gaveta até os anos 90, quando publicou Ovelhas negras, cujos textos são nomeados pelo próprio autor de “marginais, bastardos, deserdados”.
Em seu primeiro livro, Inventário do irremediável, escrito na década de 1960, já fica muito evidente as consequências e marcas do regime militar no cotidiano das personagens. Por isso, temas como morte, loucura, medo e melancolia estão presentes nas narrativas como “O ovo” e “Os cavalos brancos de Napoleão”. Em seu segundo livro de um impactante vigor literário, intitulado O ovo apunhalado, traz em seu próprio título a marca do autoritarismo daqueles tempos. O “ovo” é algo frágil, simbolizando a vida dentro da casca em seu anonimato e “apunhalado” nada mais é do que a violência contra esta vida embrionária. Na apresentação deste livro, o próprio Caio escreveu: […] este Ovo talvez sirva como depoimento sobre o que se passava no fundo dos pobres corações e mentes daquele tempo. Amargo, às vezes violento, embora cheio de fé”.
Existe uma diferença de estilo do Caio Fernando Abreu dos anos 70 para os anos 80?
Evidentemente foram duas décadas marcadas por momentos culturais distintos. Nos anos 70, a obra de Caio F. abordou, nos aspectos temáticos, mais assuntos relacionados à ditadura, ao medo e à solidão. Porém, como nas abordagens temáticas dos anos 80, um dos focos das narrativas deste gaúcho escritas na década de 1970, foi a contracultura, retratando o universo hippie em “Retratos”e “ Noções de Irene”. Portanto, pode-se perceber que houve certa equivalência temática quando o assunto é contracultura, abordado em ambas as décadas. Mas o estilo literário em si, envolvendo a linguagem, a estrutura narrativa, segundo alguns críticos e estudiosos de sua obra, sofreu mudanças, principalmente quando mencionamos Morangos mofados, uma das obras mais lidas e, por isso, populares do universo literário caioferdiano. Nesta obra, publicada em 1982, foi marcada por uma linguagem mais pungente e libertária, ao contrário do estilo adotado nos escritos de 1970. Os contos de Morangos mofados são o retrato da grande desilusão da chamada “década perdida”, marcada pelo endividamento e por muitas das experiências de indivíduos que sofreram as consequências da repressão do regime militar. A contracultura é fortemente abordada nos contos deste livro e também nas histórias de Os dragões não conhecem o paraíso.
Uma outra abordagem em suas narrativas escritas nos anos 80, é a liberação sexual que marcou este período, retratada em “Dama da noite”, sinalizando de forma, talvez premonitória, a presença do vírus HIV. Bem como em “Linda, uma história horrível” e “Sapatinhos vermelhos”, que já abordam o assunto (AIDS), mesmo que de uma maneira velada e simbólica, mas que já dá ao leitor a “pista” de que o assunto principal da narrativa é a “peste”, como era nomeada a Aids naqueles tempos.
Nos anos 90 ele foi diagnosticado com o vírus HIV. Como a AIDS influenciou as narrativas dele?
Há dois capítulos do livro que abordam a influência da AIDS na literatura do Caio. Um deles é “A AIDS como alteridade e identidade nos contos de Caio F. Abreu”. Nele há uma entrevista concedida por Caio ao escritor e jornalista José Castello, em que ele diz que a ideia da contaminação já aparece, indiretamente, nos livros dele desde 1983. Tanto seus contos e crônicas tiveram forte influência do HIV, que passa a assumir, de uma forma ou de outra, uma identidade em suas narrativas. As crônicas escritas, à época, para O Estado de São Paulo, já fazem uma abordagem do assunto de maneira mais direta, assim como vimos em “Cartas para além dos muros”, em que o autor se autodeclara portador do vírus HIV.
É importante destacar que a literatura caioferdiana não se vitimizou diante da doença do autor; ao contrário, suas narrativas se tornaram mais potencializadas, dimensionadas no sentido de contemplar e descrever a vida tal qual ela é, sem eufemismos ou intenções supérfluas, que podemos identificar facilmente em literaturas clichês, de enredos homogêneos, como estas fabricadas para vender, somente. Em face da descoberta de um Caio soropositivo, José Castello afirma que “Caio, quando tinha todo o direito de permanecer pessimista e infeliz, encheu-se de vida”.
Por isso, o último capítulo deste meu estudo se intitula “A identidade condenada que se transformou em arte de viver”, pois mesmo se arriscando a ser condenado pelo olhar casto e esmerado da crítica ao incorporar, em suas narrativas a identidade de aidético, este “gaúcho de fronteira” nunca se esquivou de produzir sua literatura desafiando “os padrões bem comportados de tradição, regularidade e brasilidade”.
A presença da AIDS na vida do escritor gaúcho, foi sem dúvida, um processo de alteridade/identidade em sua vida pessoal e literária, fazendo com que ele assumisse uma postura infinitamente melhor no sentido positivo da vida, como o mesmo escreveu à sua amiga Maria Lídia Magliani:
“[…] me sinto privilegiado por poder vivenciar minha própria morte com lucidez e fé […]”. Assim, este ciclo da AIDS traz para suas narrativas, marcas da experiência com a doença e a morte, retratando-o como um sobrevivência pela resignação e pelo autoperdão.
Os maneirismos pop de Caio Fernando Abreu confundiram a crítica da época. Sua obra é mais valorizada hoje do que quando ele estava vivo?
No Brasil é muito comum e até mesmo cultural, valorizar um autor depois de morto. O sucesso póstumo é um modismo por aqui. Uma grande maioria dos escritores que hoje são considerados talentosos, eram, em vida, desconhecidos ou não tão conhecidos como se tornaram após morrerem. Este é o caso da Hilda Hilst, amiga de Caio, que em vida, não era lida, mas após sua morte, tornou-se um boom da literatura brasileira. Caio chegou a ser traduzido na Europa antes de morrer, estava começando a ser lido no Brasil como merecia, mas não chegou a ver o sucesso real que se obra alcançou no Brasil e no exterior. Portanto, digo, com toda certeza, que hoje sua obra é mais valorizada do que antes.
Outro dado interessante que temas como angústia, medo e desespero estão presentes em suas obras. Ele era um autor denso, mas ele também era fissurado em novelas. Como seria uma novela escrita por Caio Fernando Abreu?
Certamente não seria nada parecido com os enredos novelísticos “água com açúcar”. Seria algo mais parecido com os enredos impactantes e indefinidos como os filmes de Pedro Almodóvar, do tipo “Tudo sobre minha mãe”, “Fale com ela”, “Má educação” e outros. E se fosse alguma história de cunho amoroso, seria algo como a relação de Frida Kahlo com Diego Riviera; de Rodin e Camille Claudel. Ou seja, nada de happy end.
Ele foi um grande frasista. Qual delas é sua preferida?
São muitas! Porém vou citar uma de que gosto muito e utilizei como uma das epígrafes do meu livro Exílios naufrágios e outras passagens.
“Depois de todas as tempestades e naufrágios o que fica de mim e em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro”.
Hoje notamos muitas frases dele nas redes sociais. A senhora acha que esse tipo de exposição pode dar uma suavizada no lado complexo e obscuro dos temas tratados pelo autor?
Eu acho que é justamente esse lado dito “complexo e obscuro” do Caio é que mais atrai os jovens, que buscam nas redes sociais por frases dele que definam algum estado de espírito ou sentimento vivido no momento. Não creio que Caio possa ser “suavizado” em nenhum sentido, nem deva ser, pois sua essência era dada a este sabor do indefinido, do incerto; ou seja, destas tantas faces “nada suaves” com as quais a juventude de hoje tenta se identificar. Este Caio “complexo e obscuro” é uma porção de cada um de nós, em determinados momentos da vida. Não tem como fugir disto ou mesmo mascarar essa face caioferdiana que é tão nossa, tão universalizada.
A obra de Caio Fernando Abreu é atemporal e qual seu impacto na cultura brasileira?
Sem dúvida a literatura de Caio F. é atemporal. Pôde ser lida naqueles tempos de chumbo do regime militar, da revolução sexual, nos anos 80, e também nos anos negros da AIDS. Bem como também pode e dever ser lida hoje, num Brasil aprisionado pelo conformismo, pelo fascismo, pela violência sistêmica. Portanto, a obra deste autor não está confinada a uma determinada época. Ela será sempre atual e sem dúvida, é um dos grandes expoentes da literatura brasileira, tanto que hoje há constantes reedições de sua obra, peças teatrais, filmes e documentários têm sido baseados em seus livros; sua obra tem sido tema constante de dissertações e teses nas universidades do país, assim como também seus livros têm sido leituras obrigatórias em vestibulares, e nos processos seletivos seriados das universidades.
A senhora é poetisa. Algum de seus poemas definiria Caio Fernando Abreu?
Sim, há alguns poemas (ou vários!) que poderiam traçar um perfil “incompleto” e “momentâneo” do Caio, que sempre se intitulou como um ser “indefinido”. Este “Solidão II” é um deles, já que o sentimento de solidão sempre esteve presente em muitos momentos de sua vida, principalmente quando jovem se mudou para São Paulo e depois para Londres.
SOLIDÃO II
Sozinho vida adentro permaneces
na mudez deste fim de século.
Não tens desejos nem possuis mais a lâmpada da sedução.
O mundo apagou-se por completo.
Enquanto os navios zarpam carregados de medo
o rosto ainda sujo de ausências
queima-se nas labaredas ruivas da mágoa:
– a face junto ao coração
sente a dor de todas as ruas vazias.