Thelma Regina Alexandre Sales
Conhecida como pica, picanismo ou alotriogeusia, a alotriofagia é um transtorno da ingestão e da conduta alimentar. O termo pica deriva da palavra em latim para o pássaro do hemisfério norte pega-rabuda (“pica-pica” ou “urraca”), conhecido por comer substâncias bizarras, sem nenhum valor nutritivo.
É uma condição rara em que a pessoa sofre de um desejo incontrolável de comer e lamber coisas ou substâncias não comestíveis como terra, tecidos, moedas, pedra, carvão, barro, gesso, cinza de cigarro ou o próprio tabaco, amido, tijolo, sabonete, sabão, cola, pasta de dente, borracha, bicarbonato, esmalte de unha, tinta, leite de magnésia, gelo, objetos pontiagudos, vômitos, sangue, urina, vidro, pelo, lã, linha, cabelo, unha, madeira, lápis, papel, fezes de animais ou humanas, brinquedos, botão, e tantos outros.
O transtorno é mais comum na infância, principalmente em crianças desnutridas ou com atraso no desenvolvimento. Cerca de 10 a 32% das crianças, com idades entre 1 e 6 anos, apresentam o problema, embora também surja em adultos e gestantes, sendo que na gravidez é atribuído à anemia.
Se uma criança é vista comendo elementos tão bizarros não significa que ela tenha a pica, uma vez que essa condição também pode ser vista no desenvolvimento normal da criança, na fase em que tudo é “experimentável”. Para que tais hábitos sejam considerados alotriofagia, o comportamento deve persistir por, pelo menos, um mês em uma idade em que comer certos objetos seja mentalmente inapropriado.
A causa da alotriofagia é incerta, mas tem sido constantemente associada a distúrbios mentais como esquizofrenia (psicose), autismo, retardo mental grave, onde a pessoa acaba comendo esses elementos por não distinguir o certo do errado; transtorno obsessivo compulsivo (TOC), depressão grave, ansiedade e desordens físicas – como a Síndrome de Kleine-Levin. Desencadeadores de estresse, como orfandade, problemas familiares graves, negligência de pais, deficiências nutricionais de ferro e zinco, gravidez, e estrutura familiar desintegrada estão fortemente ligados a alotriofagia. Nos países em desenvolvimento e nas áreas rurais pode ocorrer maior permissividade em comer substâncias que não são alimentos. Já nos países desenvolvidos é comum o desejo e o ato de lamber lápis. No sul dos Estados Unidos, nos anos 1800, a geofagia era uma prática comum entre a população escrava.
O quadro pode facilmente levar crianças à intoxicação e resultar em prejuízos no desenvolvimento físico e mental, cirurgias emergenciais (por obstrução intestinal) e sintomas mais sutis como deficiências nutricionais e parasitoses.
Não há um exame específico que possa diagnosticar a pica. Como essa condição pode estar associada à desnutrição, solicitar exames laboratoriais para verificar deficiência de ferro, zinco e hemoglobina é protocolo de investigação. Por precaução, deve-se checar níveis de chumbo em crianças que ingeriram tinta ou materiais cobertos por tinta. Toxiinfecções ou parasitoses devem ser investigados, principalmente se houve ingestão de solo contaminado ou restos animais. E ainda, obstrução gastrintestinal, desnutrição e obesidade. O consumo de substâncias estranhas e não nutritivas por pacientes psiquiátricos não é considerado diagnóstico adicional.
O tratamento depende da causa e inclui mudanças do comportamento alimentar, suplementação de nutrientes (se deficiência), suporte psicológico e apoio psiquiátrico, além de tratar as complicações.
Como a pica é uma condição multifatorial, não há apenas uma forma de preveni-la. Em geral, na gravidez, ela pode ser evitada se houver o consumo apropriado de nutrientes. Alimentação adequada, desde o nascimento, pode favorecer a não manifestação do quadro.
Thelma Regina Alexandre Sales – Nutricionista e Médica – Especialista em Psiquiatria – Especialista em Terapia Nutricional/SBNPE – Especialista em Nutrição Clínica/UECE – Especialista em Saúde Pública/UNESCO – MBA em Gestão de Negócios/UNEC – Mestre em Meio Ambiente, Saúde e Sustentabilidade/UNEC – Professora do Centro Universitário de Caratinga. Atua em Psiquiatria, Clínica Médica e Urgência.