Mirene, que estava no prédio que desmoronou, e Tatiane, que perdeu a filha Lyz, contam como estão atualmente
CARATINGA – No último final de semana fortes chuvas caíram sobre Caratinga. As previsões eram as mais pessimistas, mas felizmente nada grave aconteceu. No entanto, muita gente se recordou das últimas grandes enchentes ocorridas em Caratinga. E personagens daquelas tragédias foram relembrados.
Não teve como não associar com 16 de janeiro de 2003, uma madrugada de pesadelo. Caratinga foi assolada por uma enchente que destruiu praticamente toda a cidade. Um prédio que ficava na Rua Inácio Tomás, no centro caiu inteiro e foi notícia em todo país, e outro que ficava do lado desmoronou. Dezessete anos depois, o DIÁRIO DE CARATINGA procurou duas mulheres que ficaram marcadas por aquela enchente. Uma delas é a Mireni Corrêa Viana, 46 anos. Naquele fatídico dia, Mireni ficou presa em cima do terraço do prédio que desmoronou. Ela estava com mais duas colegas e conseguiu sair com ajuda de populares que lançaram com muita dificuldade, algumas cordas.
Por muitos anos a tragédia assombrou a vida de Mireni, mas ela conseguiu superar. Atualmente é casada com Fábio Garcia, mora em Santa Bárbara do Leste e tem um filho de oito anos, o Lucas.
E a outra mulher guerreira que conta sua história nessa edição, é Tatiane Martins da Silva, 39 anos, mãe de Ícaro Martins Araújo Cerqueira, 15 anos e de Lyz Martins Araújo Cerqueira, falecida na enchente de 2003, como dois anos e meio.
Mesmo após tanto sofrimento, Mirene e Tatiane conseguiram superar o trauma e seguir com suas vidas, e são essas histórias emocionantes que o DIÁRIO conta hoje.
“Salvar a minha vida foi bom, mas salvar a vida delas foi melhor ainda”, Mirene Corrêa
Você viveu um pesadelo na enchente de 2003, como foi aquele dia?
Eu tinha acabado de chegar do serviço, vi uma minissérie gostosa de assistir, aí uma colega bateu na porta, me chamou para ir à garagem, porque o rio estava subindo muito. No que eu fui para a garagem, algum tempo depois fomos ver a claraboia, onde a água tinha baixado, então me chamou para ir ao terraço onde teríamos uma dimensão do quanto a água havia baixado.
E o que viram do terraço?
Quando chegamos lá em cima o prédio começou a virar conosco
Quantas pessoas estavam lá com você?
Éramos três
Qual horário do acontecimento?
Três da manhã
Quando sentiram que o prédio começaria a desmoronar, qual foi a reação de vocês?
Começamos a descer a escada, aí o prédio tornou a virar, e a gente caiu, uma das meninas ficou presa embaixo, aí eu tive que tirar força não sei de onde para subir com essa menina e voltar com ela para o terraço, porque a pressão que vinha, as instalações elétricas, o cheiro da enchente, aquilo parecia que levaria a gente pro chão.
Como foi para vocês saírem de lá?
Aí foi triste. À medida que as paredes iam desmanchando, o prédio ia dando aquela volta dentro do rio, apareceu alguém lá da BR dizendo que jogaria uma corda. A pessoa jogava a corda, a corda caía na enchente, fui descendo por aquelas telhas de zinco e consegui pegar. Colocaram uma pedra na ponta da corda, consegui pegar essa pedra, subi com ela pelas telhas, amarrei na pilastra do terraço. Daí colocaram uma tirolesa e fui puxando. Eu coloquei os coletes nas outras duas, na última não conseguia porque ela travou, ficou em estado de choque, aí um rapaz da Fervel atravessou e me ajudou a colocá-la na corda.
Todas as pessoas que estavam no prédio conseguiram ser salvas?
Embaixo tinham dois maridos das meninas que conseguiram sair e nós que estávamos no terraço também.
Em algum momento você teve medo de morrer?
Até que não, tinha certeza que o Senhor me livraria daquilo ali, mas tinha na cabeça o programa do Datena, que só passa desgraça, aí eu falava: ‘Senhor eu só via isso no Datena, e agora acontece comigo, o que o Senhor quer de mim’? Teve uma hora que esse repórter (Adenilson Geraldo), ele gritava assim: ‘Mireni, tenha calma’.
Como estamos falando de superação, o que mudou em sua vida depois daquele trágico dia no ano de 2003?
A vida não pode parar, terminei a minha faculdade de Administração, fiz a pós-graduação, fiz um processo seletivo no Cis-Mirecar, trabalhei 13 anos lá, casei, tive um filho que tem oito anos. Isso aí é um puxão de orelha que Deus deu para consertar a vida e andar certo.
Atualmente você reside e trabalha em Santa Bárbara do Leste?
Depois de um tempo vim morar na casa dos meus pais, me casei, porque sou daqui, moro na área rural, vim trabalhar na prefeitura com Wilma (prefeita), me sinto bem graças a Deus.
Nesses últimos dias fortes chuvas vieram para nossa região. Como foi para você, as lembranças de 2003 voltam à mente?
Coração ficou pequeno, tenho muitos amigos em Caratinga, o pessoal ligava para saber se aqui estava chovendo muito, aí quando vi aquele mundo de água o coração ficou apertado; lembrei de tudo, foi muito ruim.
Mas apesar de tudo, foi possível superar essa tragédia?
Sim, a gente supera, a gente coloca Deus na frente de tudo, isso serve de experiência pra gente se tornar um ser humano melhor, se colocar no lugar do outro, porque naquele dia fui a última pessoa a sair do prédio e as pessoas diziam que eu era doida, que eu poderia morrer, mas as meninas estavam piores que eu, se fosse eu, queria ter aquela ajuda, então a gente precisa se colocar no lugar do outro. Salvar minha vida foi bom, mas salvar a vida delas foi melhor ainda.
“ … era uma princesa, uma lindeza era a coisa mais preciosa que Ele tinha me dado”, Tatiane sobre a filha Lyz que perdeu na enchente
Como começou seu dia na enchente de 2003?
Tinha uma família no prédio que eu gostava muito, e essa família mudou na hora do almoço. Cheguei e o caminhão estava estacionado na porta, tomei maior susto, porque era minha amiga de porta, a Lyz brincava com o menininho dela. Aí eu cheguei e tomei um “sustão”, então eu falei assim: “ah fulana, você está mudando?”, aí ela falou: “Tati, meu pai de uma hora para outra resolveu mudar”. Aí eles já estavam terminando de carregar a mudança.
Já tinha começado a enchente quando eles estavam mudando?
Não, não tinha nem acontecido, a enchente foi de madrugada. Eu fiquei com aquele sentimento ruim, voltei do trabalho, almocei, na hora que eu cheguei ao trabalho novamente, eu lembro de comentar com uma amiga minha de lá assim: “gente, eu estou sentido uma coisa tão ruim no meu coração, uma tristeza tão grande, dessa minha vizinha está mudando, porque vou me sentir muito sozinha no prédio”. Essa menina que trabalhou comigo, hoje ela encontra comigo e ela fala: “Tati eu lembro direitinho do dia, você comentando que a menina sua vizinha tinha mudado e que você estava muito triste com aquilo”. Mas eu estava mesmo, parece que eu já estava sabendo que isso iria acontecer, mas eu não sabia, então assim o meu coração estava muito triste, eu estava muito entristecida com aquela mudança dela, e não era à toa. Às vezes a gente não sabe é discernir porque vem uma tristeza ou porque vem um sentimento no coração, mas é algo que vai acontecer.
Como foi o momento da enchente?
Então, eu estava em casa à noite e percebi que estava chovendo muito, o barulho da chuva era muito forte, mas eu não observei que às vezes podia estar chovendo tanto, que o nível da água poderia subir muito, não pensei nisso. Senti que a chuva estava muito forte, muito pesada, e eu coloquei minha Lyz para dormir e no momento em que eu fui dormir, lembro de ter sentido muito forte que aquele prédio iria cair. Isso veio sim na minha mente, antes de deitar, eu senti isso: “o prédio vai cair, eu escutei isso”.
E você lembra a hora que o prédio caiu, como foi?
Lembro de muito barulho, estremecendo tudo, e assim, como se eu tivesse caindo mesmo de um lugar muito alto. Na hora que eu me dei conta, já estava debaixo das águas com aquele mundo de prédio em cima de mim, e eu não conseguia sair de lá, eu não conseguia.
Quando foi que você deu falta da Lyz?
Dei falta dela depois que eu saí do prédio, eu estava muito presa e eu não conseguia sair, e depois eu consegui subir, sair de dentro das águas, eu creio que ali foi Deus mesmo me tirando dali, porque outro ser não poderia fazer isso, e quando eu senti que já podia respirar, a correnteza estava muito forte, me levou muito forte. Nessa hora eu comecei a gritar por socorro e tinha um pessoal na BR assim olhando o rio. Esse pessoal começou a escutar meu grito, aí como estava indo muita coisa na enchente, colchão, galho de árvore, essas coisas, eles começaram a tentar jogar algo pra eu pegar e sair de lá. Nessa hora que eles me ajudaram, quando eu cheguei e pisei em terra, eu lembrei dela, e queria voltar. Eu não queria prosseguir, eu não queria sair do lugar que eu estava, porque eu queria voltar para pegar a Lyz. Mas como? Aonde né? Não tinha nada, só tinha água, então foi a hora que eu percebi que eu não conseguiria achar ela naquela situação.
Como foi para achar o corpo da Lyz?
Aí eu passei por todo um processo médico e tal, e vim ficar na casa dos avós dela. Ela ficou desaparecida nesse período que eu fiquei ali na casa dos avós dela, o corpo de bombeiros estava procurando por ela. Procuraram o corpo por sete dias e não acharam. No sétimo dia eles vieram falar comigo: ‘Tatiane, a gente não pode mais procurar, nós já fizemos as buscas todas e nós não conseguimos achar o corpo, nós temos que parar as buscas agora’.
Aí para mim foi um desespero muito grande, porque havia uma esperança no meu coração deles acharem o corpo dela, e nesse dia eu não lembro, mas me parece que foi à tarde, tem uma casa ali em frente o mercadinho do Serginho (avenida Moacyr de Mattos), hoje ela está até para vender, na época tinha morador ali, aí a senhora que morava ali, ela contratou um rapaz para tá limpar porque tinha muita lama, quando esse rapaz foi limpar a lama do terreiro e tirar o mato, ele olhou e achou que era uma boneca que estava jogada no chão, e na hora que ele foi pegar, viu que era o corpo de uma criança, viu que era ela. Aí que nós achamos o corpo dela, sete dias depois.
Depois de tamanha dor de perder uma filha, como foi sua superação?
Passar por uma dor dessa, são poucos os que passam e conseguem superar. Você sabe que uma perda dessa é pro resto da vida, mas eu entendi que eu precisava superar aquilo, não foi fácil, o processo foi demorado, foi doloroso, por isso que eu falo que quem estiver passando por essa dor, não tenha pressa de sair, tenha um tempo de luto, você vai passar pelo processo de luto, que pode ser seis meses, um ano, dois anos, três anos, até 10 anos. Têm pessoas que permanecem no luto muitos anos, meu processo foi demorado. Lembro que em seis meses eu já tinha superado, mas eu já não conseguia ficar sem outro filho, isso eu acho que já foi uma superação, porque eu entendi que ela tinha ido, que o tempo comigo já foi determinado e já tinha se cumprido então eu comecei a pedir a Deus um outro filho. Deus me deu depois de sete meses da tragédia, o Ícaro, fiquei grávida, e ele já trouxe alegria ao meu coração. Ele já preencheu muito aquele vazio que a Lys deixou, que não é igual, mas supriu assim 90%. Creio nisso, que é uma superação e depois a vida começou a prosseguir, mas eu lembrava muito dela, foi um processo de muita dor. Mas Jesus é que supre tudo, o ser humano não pode suprir, nem com a vinda do Ícaro, parei de sentir falta da Lyz, mas Jesus supriu. Com o decorrer do tempo ele foi suprindo essa ausência dela, hoje eu já lembro dela com muita gratidão a Deus, por ter me permitido viver com ela dois anos e meio, era uma princesa, uma lindeza era a coisa mais preciosa que Ele tinha me dado.
Recentemente a cidade passou por fortes chuvas, você teve medo?
Não tenho medo mais, o medo da chuva foi superado, mas sinto tristeza, porque passar por isso é muito doloroso para qualquer um. Perda, todos os tipos de perdas, seja ela material, seja ela de um ente querido, é muito difícil passar por perda, mas eu sinto tristeza sim, compadeço dessas pessoas, peço muito à Deus que abençoe e que erga de novo essas pessoas que passam por perdas.
Qual o conselho que você deixa para as pessoas que estão passando por momentos difíceis com as chuvas?
O conselho que eu daria é que essas pessoas permaneçam em fé e esperança, porque tudo tem um propósito, a gente sabe que há um propósito pelas perdas, seja ela qual for, tudo tem um propósito. Então que essas pessoas permaneçam em fé e esperança no coração, que tudo vem para que aja uma melhora, talvez a pessoa não está vendo aquilo na hora, porque o estrago é muito grande, mas depois, com o decorrer do tempo, aquilo vai abrindo novas portas, a gente vai descobrindo novas coisas, e aí a pessoa começa a entender que aquilo foi também para o bem.