Para Fernando Vieira, “o apoio de Bolsonaro a Trump vai provocar um distanciamento no contato pessoal entre os dois presidentes. No entanto, os interesses econômicos mútuos manterão o convívio entre as nações”
DA REDAÇÃO – Na edição de 13 de novembro de 2016, o DIÁRIO publicou a matéria ‘Show de Trump’, onde tratava da vitória do candidato republicano sobre a democrata Hillary Clinton. Na ocasião entrevistamos o professor Fernando Vieira, doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), que desta forma analisou a vitória de Donald Trump, “num país dividido e com uma base conservadora centrada no ideário de um fundamentalismo cristão, Trump agradou ao resgatar valores considerados típicos dos homens brancos entre 40/50 anos”.
Agora novamente entrevistamos o professor, que fez suas ponderações sobre o resultado da eleição para presidente dos Estados Unidos e seus reflexos no Brasil.
A frase do embaixador Juracy Magalhães ‘o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil’, que foi muito reverberada e também criticada nos anos 70, ainda é atual?
Em nenhum país do mundo, atrelar sua política externa a outro país representa um posicionamento correto. Juracy Magalhães quando embaixador em Washington nomeado pelo General Castelo Branco, sinalizava uma aproximação estratégica na contenção ao comunismo. Tornou-se o símbolo da subserviência do país. Pensar nela hoje, explicita a pobreza de nossa política externa no atual governo.
Se observarmos as últimas eleições presidenciais americanas, Bill Clinton, George W Bush e Barak Obama foram reeleitos. Por que Trump não obteve sucesso ao tentar a reeleição?
O negacionismo ante a COVID num país em que inexiste um sistema universal de saúde pública com as centenas de milhares de mortos cobrou seu preço. Sua postura contrária aos atos contra o racismo e a violência policial contra negros provocou uma onda contra seu governo. Além disso, a pandemia afetou a recuperação da economia permitindo aos democratas recuperar o cinturão industrial de Winsconsin, Michigan e Pensilvânia.
Com a vitória de Joe Biden, como ficam as relações entre Estados Unidos e Brasil? Sobre o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro, que sempre declarou apoio à Donald Trump, pode haver distanciamento entre essas duas nações?
Ocorrerá uma necessidade de reordenação da política interna e externa. O Brasil se isola mais no contexto internacional. Biden é compromissado com a causa ambientalista e reintegrará os EUA ao Tratado de Paris. A ausência total de uma política ambiental terá que ser revista ou ocorrerá maiores e reais pressões. A vice de Biden é uma mulher compromissada com as questões de gênero. A agenda fundamentalista cristã contra os direitos de mulheres, a oposição ao aborto, os direitos de casais homossexuais perde força. O Brasil participou de um evento organizado por Trump em defesa da família patriarcal, contra o aborto que defendia maior ação em defesa dessas pautas em órgãos internacionais. Morreu o movimento. O apoio de Bolsonaro a Trump vai provocar um distanciamento no contato pessoal entre os dois presidentes. No entanto, os interesses econômicos mútuos manterão o convívio entre as nações.
Ainda sobre o posicionamento do presidente Jair Bolsonaro, nesses dois anos de seu governo, houve alguma melhoria nas relações diplomáticas e comerciais entre Brasil e Estados Unidos ou continua tudo como era antes?
A subserviência do Brasil aos EUA, a bem da verdade ao presidente Trump, na era Bolsonaro não trouxe nenhum avanço concreto ao país. Pelo contrário, nos esvaziou como maior liderança na América do Sul e tensionou a relação com nosso maior parceiro comercial: a China. E não se vê sinais de que o governo vai modificar sua política externa. A repulsa ao multilateralismo trumpista e bolsonariano se esvai. Biden pretende recolocar os EUA no Acordo de Paris, na UNESCO e na OMS. Aliás declarou defender uma ação mundial em conjunto para vencer a pandemia. O oposto da visão que embala o governo brasileiro.
Como essa vitória de Biden influencia a política na América Latina?
Em nada. A América Latina continua sendo periférica para os EUA. Os avanços na relação com Cuba que retrocederam com Trump podem ser retomados, a Venezuela continuará ameaçada e isolada e o México continuará a ser o guarda da fronteira.
O Brasil vive um período tão, digamos, estranho, que para alguns, Joe Biden seria de esquerda. O senhor poderia nos explicar como é o posicionamento do Partido Democrata?
Os democratas assumem a defesa de um papel regulador maior do Estado junto ao mercado, se posicionam em favor dos direitos das minorias, combatem a agenda moralista religiosa, querem implementar algumas proteções sociais e, para isso, costumam defender a carga tributária do país. Externamente se posicionam de forma dúbia defendendo a democracia em países não aliados e fechando os olhos para aliados, como a Arábia Saudita.
Qual sua análise sobre Joe Biden? Quais predicados ele tem?
Perto de Trump, todos os predicados, adjetivos, verbos e pronomes. Na prática é um tradicional político democrata, um homem do status quo.
Nos últimos dias surgiu o temor do mercado financeiro diante de uma possível recusa de Trump em aceitar o resultado das eleições. Esse tipo de atitude poderia abrir uma crise institucional e nivelaria os Estados Unidos a outros países que já foram denunciados por fraudes em eleições, principalmente na América Latina? Como o senhor avalia a atitude de Donald Trump ao não aceitar a derrota?
Steven Levitski e Daniel Ziblattd autores de ‘Como as Democracias Morrem’ alertavam para esse risco. No entanto, as tradicionais lideranças republicanas entendem os riscos para o ideal de democracia do país. Ao fim, se manter tal postura, Trump sairá humilhado e isolado. Creio que ele mudará a postura para se manter no cenário político. Cabe realçar que a sua recusa em reconhecer a derrota, revela o risco de se eleger figuras com baixo ou nenhum compromisso democrático. Para ele e Bolsonaro, por exemplo, a democracia é um instrumento para chegar ao poder e só. Depois pode ser descartada.
Para analistas de Política Internacional, Trump perdeu as eleições, mas isso não significaria o fim do Trumpismo. Quais qualidades essa grande parcela do eleitorado americano vê em Donald Trump?
Trump falou ao homem branco, de baixa qualificação, operário fabril afetado pela decadência industrial do país. Contou ainda com o apoio de mulheres e homens vinculados ao mercado financeiro e na gestão de empresas. E principalmente, com grupos fundamentalistas cristãos. Assim como no caso brasileiro, é um eleitorado volátil. Uma minoria mais radical vai manter o apoio a ele. A maioria tenderá a realinhar seu olhar para outras lideranças que surjam nos republicanos.
Outra questão muito abordada e muito criticada é a respeito do processo eleitoral americano. Como o senhor avalia o sistema eleitoral dos Estados Unidos? Esse sistema seria o maior perdedor nessas eleições?
Eu diria que nosso sistema é que é o maior vencedor. As medíocres tentativas de políticos conservadores em desqualificar a urna eletrônica sofreu duro golpe. No entanto, as eleições nos EUA são organizadas por estados, não existindo uma coordenação nacional. Como o voto não é obrigatório e se dá sempre na primeira terça de novembro que não é considerado feriado, criaram-se mecanismos para estimular o eleitor a votar, como o voto antecipado ou o caso do voto por correio que funciona lá. Creio que o país vai evoluir para o voto on-line permitindo reduzir tensões. Após o fiasco da Flórida em 2000, o então governador Jeb Bush introduziu melhorias no voto que agilizaram e deram melhor organização e transparência ao processo. Ele defende uma padronização do sistema nos 50 estados.